(continuação...)
segunda-feira, 31 de agosto de 2009
(continuação...)
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
sexta-feira, 14 de agosto de 2009
O Sebastião além de pisteiro era um companheirão formidável. Sempre alegre, já avô, tinha mais resistência do que muitos rapazes de vinte anos que lhe passaram por perto.
Consciente, sabia que seguir pacassas feridas dentro da mata era temeridade a evitar. Mas chega sempre o dia em que o inevitável acontece.
Depois de algum tempo de procura, seguindo trilhos já muitas vezes pisados, o encontro com a manada, ainda campo aberto, capim seco mas muito alto, que mal dava para ver as costas das pacassas correndo, o jeep avança e de cima sai um tiro que derruba um dos animais. Quando o carro se aproxima e pára, aquele reúne forças, levanta-se de novo e foge para dentro da mata sem dar tempo a que alguém volte a atirar, porque com o capim alto a visibilidade era quase nula.
No meio do capim alto, era difícil atirar!
- Aiué! Aiué! Não atira, patrão. Não atira, patrão!
Bicho bravo!
- Mulhé, eu moria! Mulhé, eu moria! Quero tudo bêbo! Eu moria mêmo!
Belo exemplar! (talvez 450 a 500 kg) - (foto Sapo)
A maioria destas caçadas acontecia quase sempre nos fins de semana. A região onde o Sebastião morava e que tão bem conhecia, ficava a menos de cem quilometros para norte de Luanda, na chamada faixa costeira. Saía-se da cidade cerca do meio dia de sábado. Uma hora e meia depois atravessava-se o rio Dande, onde perto da foz havia uma fazenda de palmar. Paragem quase obrigatória, nessa fazenda bonita, bem organizada, as ruas ladeadas por laranjeiras que davam o que deviam ser as melhores laranjas do mundo. O administrador deixava que se apanhassem quantas quisessem, o que ajudava a matar a sede durante a caça. Ali ao lado, na foz do rio, um imenso viveiro natural de magníficas ostras. Contratava-se um trabalhador da fazenda para as ir apanhar no domingo de manhã, que no regresso da caça, se levariam para casa.
Normalmente dois sacos cheios delas! Em Paris custariam uma fortuna! Ali uma gratificação ao apanhador que ficava todo contente e nada lhe custara. Tanta coisa boa naquela terra à disposição de quem quisesse!
Pode ser difícil de acreditar mas em Moçâmedes havia uma variedade de mexilhão, que chegava a atingir trinta e mais centímetros de comprimento! A parte comestível parecia um ovo estrelado! Mas era mexilhão! Delicioso. As conchas eram tão bonitas, parte transparente como madrepérola, que se guardavam depois dentro das casas como objeto de decoração. Lindas.
Voltemos à caça.
Mas o Ninocas... hiii! O Ninocas e seu irmão Antoninho! Duas figuras de legenda nas caçadas, sobretudo às pacassas! Todo o fim de semana, fizesse chuva ou sol lá iam estes dois, sempre com alguns agregados, às pacassas! Caçavam bem, mas sobretudo transformavam qualquer caçada no maior, no mais alegre e descontraído acontecimento. Muito bem dispostos, maluquissimos, quando avistavam uma peça de caça corriam com o jeep em qualquer terreno, fosse ele plano, esburacado, pedregoso ou com precipícios! O carro voava, tombava, os passageiros apesar de ficarem com pernas e braços cheios de decorativos hematomas, aquela inesquecíveis marcas arroxeadas, miraculosamente não eram projetados para fora, mas não desistiam nunca da perseguição. Entrava-se com o carro na mata, donde tantas vezes depois se viam em séria dificuldade para o tirarem de lá, rasgavam-se nos espinhos, não só os retos mas aqueles horríveis em unha de gato” que esfacelava as roupas e os braços que apanhasse, mas nada disso tinha mais importância do que caçar!
Outro fim de semana. Saída de Luanda já tarde, num sábado. Desta vez a região da caçada era a caminho do interior lá para os lados de Zenza do Itombe, onde haveria, haveria, uma baixada cheia de caça! Dois jeeps, do Ninocas e do Antoninho, sete malucos dentro, chegam já ao anoitecer perto da tal baixada. Chovia um pouco, e tinha chovido bem durante o dia, mas jeep é jeep e pode sair da estrada. De repente, como sempre acontece nos trópicos, é noite, acende-se o farolim à procura de olhos que brilhem. Nada. Não andaram muito e logo um dos jeeps se atola na lama. Engata os dois diferenciais, marcha reduzida, um pouco atrás, um pouco à frente, o carro vai-se enterrando cada vez mais. Toda aquela área, de baixada, com a chuva que tinha caído nos últimos dias, estava um lamaçal só. Noite escura como breu. O outro jeep, um pouco afastado, é chamado com o foco do farolim. Não pode chegar muito perto para não se atascar também. Passa-se uma corda de um para o outro, experimenta-se rebocar, quebra a corda, e por fim acaba o segundo jeep por ficar de barriga na lama! Os dois imobilizados. Noite, mas cedo ainda.
Única solução: vamos passar aqui a noite e de manhã se vê o que fazer. De repente voltava a chover que Deus a mandava, a única vantagem para deixar os mosquitos quietos. Jeep é coisa desconfortável. Quatro dentro de um e três no outro de onde nem sair podiam para esticar as pernas porque a chuva não parava. Perspectiva para o dia seguinte safarem os carros era fraca, mas naquele momento nada mais podia ser feito.
Ninguém conseguia nem dormitar. O incomodo era mais do que permitia a fraca força humana, sendo ainda preciso considerar que os jeeps tinham capotas mas não tinham janelas!
E assim se passou a noite toda. Quando os primeiros alvores da manhã que se avizinhava permitiu fazer o ponto da situação todos meteram mãos à obra para saírem dali. Corta paus, levanta uma das rodas com o macaco, coloca paus por baixo, levanta outra, repete, e por aí vai! Uma canseira que só o entusiasmo das caçadas consegue aguentar!
Safou-se o primeiro carro e a seguir, com a ajuda deste, o segundo.
Acabou a caçada!
Todos mais mortos do que vivos a única coisa que conseguiram caçar foi um belo matabicho em Zenza do Itombe antes de voltarem para casa tão moídos como café para máquina Expresso! Mas foi ótimo. Ninguém se lamentou.
As noites de sábado para domingo eram sempre passadas no maior desconforto, procurando cada qual dormir um pouco dentro do jeep ou no chão, duro e irregular. Impossível. Mas a paixão pela caça tudo justificava e perdoava. Depois do pôr do sol no sábado, normalmente já com alguma peça de caça abatida procedia-se ao seu preparo. Quantas vezes junto à cubata onde vivia o Sebastião e parte da sua família. Esfolava-se o bicho, dividia-se a carne pelos moradores da sanzala, acendia-se o fogo e preparava-se ali um jantar opíparo! Carne de caça, uma delicia, temperada com sal e vinho tinto, e como acompanhamento raras vezes mais do que pão, um pouco de pirão ou umas batatas a murro. À sobremesa as laranjas do Dande. Para beber o mais usual era cerveja ou vinho de garrafão, daquele, do bom, com capacete de gesso, e tudo o que sobrava, e era sempre quantidade apreciável, era reserva do Sebastião, cuja provisão nunca faltava. E ficavam-se horas esquecidas sentados junto ao fogo depois de comer, conversando, ouvindo, contando e repetindo histórias de outras caçadas, estórias e lendas que os pisteiros e até os sobas vinham por vezes compartilhar e contar sob um céu estrelado e tranquilo. Sunguilando. Todos sempre ofereciam as suas cubatas - palhotas de pau a pique - para que lá dentro pernoitassem também os patrões, o que alguns aceitavam, enquanto outros preferiam deitar-se debaixo de alguma árvore, esticados (?) num banco do jeep, ou simplesmente junto ao fogo, dormitando umas escassas horas sob o efeito da ceia e da cerveja, acordando normalmente todos empenados!
Ainda noite, levantar de novo, procurar esticar as pernas, massagear as costas doloridas pela falta do colchão, pescoço meio torcido, passar um pouco de água na cara, reavivar o fogo para preparar um café, e de volta para cima do jeep continuar a caçada.
O nascer do dia nos locais de caça é mais uma imagem que o tempo não apaga.
quarta-feira, 5 de agosto de 2009
Um homem especial. O caçador. Que pertence a uma classe à parte dentro da estrutura social em África. Não é qualquer um que é caçador. Quanto mais primitivo o homem mais em harmonia com a natureza ele consegue viver. Respeita e teme as suas forças que em grande parte deste continente ainda se impõem como uma espécie de religião. Mas em África como em qualquer outro lugar do planeta nenhum ser humano hesita em se sobrepor ao que hoje se chama de equilíbrio ecológico, ao ambiente. Basta que a população cresça, que os pastos do gado faltem, que lhe proporcionem qualquer negócio, para ele derrubar a mata, esgotar a terra, e se mudar para zonas mais intocadas. Assim se fez desde sempre, e fizeram-no brancos, amarelos, índios e africanos. Todos sabem que dependem desse equilíbrio, e enquanto as pressões não forem superiores à sua capacidade de resistir, a Mãe Natureza vai sendo mais respeitada. Fora disso...
Um homem "mucubal" no seu ambiente (foto do blog hunakulu)
O bom pisteiro sente no ar a presença da caça.
A cerca de trinta quilometros para norte da cidade de Moçâmedes, hoje Namibe, o nome do deserto, há uma praia, a Baía das Pipas. À sua volta nada mais do que praia, muita praia, quilometros e quilometros de praias intocadas, o mar a poente o deserto no nascente. Ali a corrente de Benguela, ainda muito fresca, o mar riquissimo em peixe, frutos do mar, águas azuis, transparentes. Poluição é palavra desconhecida. Um lugar maravilhoso. Paradisíaco.
Nessa baía se foram estabelecer no princípio deste século XX dois pescadores portugueses acabados de chegar a Angola. Nada, nada havia ao redor. Nem uma cubata, que eles tiveram que construir para morar. Foram pescar e viver disso. Precariamente, em termos econômicos, mas sem que nunca lhes faltasse comida.
Ambos se juntaram, talvez até tivessem casado de papel passado, com mulheres indígenas, uma delas irmã de um soba da região, de quem tanto um quanto o outro tiveram boa dose de filhos. Cinquenta anos depois só um dos casais estava vivo, velhote, uns quantos filhos, sobrinhos e netos à volta. Moravam nessa altura em cinco ou seis casas já de alvenaria. A cidade mais longínqua que tinham conhecido era exatamente Moçâmedes! Uma existência de faina e vida tranquilas.
* Esta fotografia com o velho amigo Alberto Gomes foi encontrada hoje, por um acaso sensacional, no blog princesa-do-namibe!
Um dos filhos, o Alberto, Alberto Gomes, um mulato grande, robusto, coração maior do que ele todo, uma mão enorme forte como uma torquês, simples, muito simpático, sempre sorridente e alegre, sorriso transparente como as águas daquele mar, uma figura humana que não se consegue esquecer.
Podia quem quer que fosse chegar à Baía das Pipas, a qualquer hora do dia ou da noite, que toda a família logo saía de suas casas para ver o que estava acontecendo! Quem os fosse visitar levava normalmente vinho e cerveja, batata, arroz ou algo de mercearia que pudesse complementar o que a natureza e o seu trabalho lhes dava. O deserto, onde às vezes se passa um e dois anos sem chover, junto à orla marítima tem um nível freático muito alto, o que permite manter o ano inteiro uma horta produzindo ótimos e frescos legumes. E aquela gente tinha-a. E muito mais: tinha o mar. Geladeira não havia nem dela muito necessitavam, porque o mar fornecia a qualquer hora tudo o que quisessem. Era só chamar alguns garotos, os sobrinhos, que corriam para a água e passado pouco traziam uma imensa variedade de peixes, camarão, lagosta, mexilhão, e um monte de outros frutos do mar. Imagine-se como eram frescos!
Depois, acender o fogo, esperar um pouco e deliciar-se com tudo aquilo! Entretanto o Alberto pegava na sanfona tocava uns fa-ri-funs em ritmo misto da terrinha dos velhotes com influencia angolana e saía um bailarico, porque mesmo que os visitantes não fossem de ambos os sexos, o que era raro, tinham como par as filhas, sobrinhas, uma irmã e até os pais, velhotes e engelhados os dois, que sempre davam o seu pé de baile!
A vida naquele canto quase esquecido do mundo era de uma pureza impressionante, e ninguém conseguia dali sair sem lá deixar um pouco do seu coração!
A velhota, talvez com setenta, oitenta anos, ainda se enciumava ao ver o marido dar um pé de dança com alguma jovem visitante! Era uma cena engraçadissima, ternurenta.
A inocência, o carinho e a alegria dessas festas deu como resultado levar a fama do Alberto a expandir-se Angola fora, pelos amigos dos amigos. Todos queriam conhecer essa rara espécie de homem! Chegou um dia ao pessoal da marinha de guerra portuguesa, que patrulhava a costa.
Uma bela manhã com tremendo susto e espanto, aqueles simples moradores assistem cheios de pasmo a um imenso navio de guerra, uma fragata, fundear em frente à baía, coisa absolutamente inédita. Os maiores navios que ali tinham ido eram algumas traineiras de pesca, a pescar ou comprar o peixe ou o marisco que aquela gente apanhava e criava em viveiros. Um navio de guerra foi além dum espanto um temor: o que quereriam?
Do navio sai um bote com dois marinheiros e um sargento, que ao desembarcarem são rodeados por toda a população local, que não devia ultrapassar umas vinte pessoas, entre adultos e crianças.
- Quem é o senhor Alberto?
Alberto, desconfiado, apresentou-se.
- O senhor comandante Navarro manda convidar o senhor para almoçar a bordo.
- A mim??!!!!
O humilde e grande Alberto convidado por um comandante dum navio de guerra para almoçar a bordo, era o máximo que ele nunca tinha esperado que a vida lhe proporcionasse! Correu a casa vestiu uma roupa melhorzinha e seguiu no bote. À chegada ao navio, a cerimonial guarda de honra, apitos, continências e apresentações, que todos queriam conhecê-lo, e o Alberto, grande e humilde, espantado e confuso, sem compreender bem o que lhe estava acontecendo, sempre com o mesmo sorriso aberto, franco.
O comandante, amigo de amigos, quis também conhecê-lo e achou que face à fama do Alberto esta seria a melhor maneira de lhe retribuir a simpatia que ele difundia.
Visita ao navio, surpresa e espanto atrás de espanto e surpresa, que finaliza com o almoço na sala dos oficiais. O Alberto não cabia em si de felicidade. Durante o almoço contou inúmeras peripécias da sua vida simples. Todos se divertiram e saborearam aquela alma.
No fim, o convidado, comovido com tanta honra que pareciam lhe prestar, e prestavam, abre os braços e só consegue exclamar:
- Eu, e os meus oficiais!
Foi a apoteose.
Se ele um dia pudesse ler esta singela homenagem que com muita saudade e respeito também para ele aqui fica...
Mas, lá na Baía das Pipas, se fosse madrugada ou já de tarde aproveitava-se para dar uma volta pelo deserto, que generoso também, sempre fornecia alguma peça de caça para complemento daqueles manjares divinos.
Numa das vezes saíram num Fusca dois dos visitantes e o Alberto que conhecia aqueles trilhos todos como as suas próprias mãos, apesar destas serem enormes! Nesse dia a caça parecia teimar em não aparecer. Uns cinquenta quilometros adentro do deserto encontraram um caçador mucubal, da tribo Cuvale habitante aquela região, que seguia tranquilo o seu caminho, aparentemente sem destino, porque parece que o deserto nunca leva a lugar algum! O deserto parece não ter fim.
Alberto mandou parar o carro e foi consultar aquele homem. Saber se ele tinha visto alguma caça ou se sabia onde encontrá-la. O homem, figura de legenda, pele escura como a noite, rosto sereno de máscara, sempre em silêncio, afastou-se uns vinte metros do carro, esteve quase imóvel por algum tempo, virou ligeiramente a cabeça para um lado, depois para o outro e quando se aproximou de novo, levantou um braço, apontou numa direção e disse secamente, na sua língua:
- Ngongo. As zebras estão ali.
As zebras ninguém iria matar, mas ver valia sempre muito a pena. Meteu-se o carro a caminho, andando com facilidade já que o terreno plano permitia correr a sessenta ou mais por hora. Andados uns quinze minutos, dez ou quinze quilometros, lá estava uma manada de zebras. Uns trinta animais. Exatamente na direção que o caçador mucubal indicara! Como ele o soube? Só ele sabe!
Valia muito a pena ir à caça só para ver o pisteiro conduzir os caçadores. Sempre em silêncio, passo ligeiro, nenhum detalhe por muito ínfimo que fosse escapava à sua atenção.
Muitos homens se ofereciam para acompanhar os caçadores, mas se não fossem pisteiros, a caçada não rendia, e até se chegavam a perder no mato!
Uma classe de gente muito especial.
Aahh! Baía das Pipas! Onde o Alberto guardava religiosamente num pequeno barraco coberto a chapa de zinco um velho Ford A, bem enferrujado com o ar do mar e com mais de 30 anos (isto em 1962 ou 3!). Era o orgulho dele: “o melhor carro para andar no deserto!” Devia ser mesmo. E prosseguia: “é só pôr um pouco de gasolina no depósito que ele pega logo”. Dizem-lhe os amigos visitantes: “Trabalha assim bem? Então vamos tirar do nosso carro que tem bastante”.
Comentário final do Alberto: “Só tem um problema. Falta-lhe a bateria”. Há quanto tempo?
“Bem, a última vez que o pus a trabalhar foi há uns nove anos”!
Grande Alberto!
in "Contos Peregrinos a Preto e Branco" de Francisco G. de Amorim, 1998
terça-feira, 4 de agosto de 2009
A conotação ideológica da palavra kilombo, que em kimbunbu significa junta, união, está relacionada com uma das mais importantes instituições políticas do século XVII, em toda a região entre os rios Zaire, Kwango e Kuvo. A sua importância foi especialmente significativa nos antigos estados do Kongo, Matamba, Ndongo e nos estados Ovimbundu do actual Planalto Central angolano, onde provavelmente teve a sua origem.
Segundo Childs, que assinalou a semelhança entre alguns costumes Ovimbundu e os dos "Jaga", kilombo é sinónimo de Kakonda ou Cilombo, nome de um dos principais grupos Ovimbundu. O mesmo autor diz-nos ainda que Cilombo era a designação da "mulher" do herói-civilizador mítico Kakonda, fundador do estado com o mesmo nome. De origem Ovimbundu ou não, esta instituição foi assimilada por muitas forças políticas e militares da África Central ocidental, entre as quais os "Jaga"/Mbangala e os titulares Ngola-a-Kilwanji, tomando-se para a rainha Jinga e também para os Portugueses e para os "Jaga", num instrumento político e de organização militar decisivo.
A importância do kilombo como forma de organização militar, transparece na legenda histórica sobre a origem dos "Jaga" e das suas instituições. Segundo a tradição histórica oral recolhida por Cavazzi, Temba Ndum-ba, heroína-civilizadora, resolveu um dia restaurar as antigas leis do "pai" e dos "antepassados", convencida que a rigorosa observância das mesmas tornaria o seu nome glorioso e temido. Para assegurar o sucesso na guerra, Temba Ndumba impôs a kijila, que em kimbundu quer dizer "proibição" e que consistiu num conjunto de leis proibitivas, que implicavam certos tabus, como por exemplo a abstinência das carnes de porco, de elefante e de serpente. Segundo as leis kijila, os membros do kilombo eram também obrigados ao comprimento de certos rituais de guerra, assim como a observâncias de cariz religioso, estas a cargo do xinguila, especialista adivinho.
Um dos rituais do kilombo, obrigava ao sacrifício de uma criança que devia ser pisada no pilão e reduzida a uma «massa informe», à qual se juntava ervas, raízes e uns pós. A massa de carne humana, depois de fervida e atingir a consistência desejada, era chamada maji-a-osamba, a «pomada milagrosa», com que os homens se deviam untar antes de partirem para a guerra. Acreditava-se que os rituais, em conjunto com a aplicação da maji-a-osamba, conferiam uma invulnerabilidade mágica aos iniciados, que de outra forma estariam expostos às susceptibilidades das forças naturais.
Uma outra lei kijila, que reflecte o cariz de especialização militar do kilombo, consistia na interdição de se criarem crianças dentro dos limites do acampamento, estipulando que os gémeos, que por razões de crença religiosa eram associados ao infortúnio e ao mau presságio, e os diminuídos físicos, fossem, por norma, sacrificados logo após a nascença.
A renovação do grupo era feita através da socialização de jovens prisioneiros que, ao unirem-se com as mulheres do kilombo, se tomavam membros de pleno direito.
O kilombo, como ideologia política, oferecia duas vantagens que, em muitos casos, foram decisivas para que fosse adoptado:
1. Era uma estrutura social em que os seus membros não se relacionavam segundo normas prescritas de parentesco consanguíneo gozando, por essa razão, de uma maior mobilidade social e de uma relativa equidade de estatuto e de oportunidades de promoção. Por essa razão, o kilombo tomou-se numa instituição supra-tribal, capaz de unir e aglomerar indivíduos de diversas origens étnicas.
2. O kilombo era também uma forma de organização militar rígida, apoiada num código moral vocacionado para criar guerreiros, conferindo, aos grupos que o adoptavam, um comportamento que muitas vezes se traduziu numa capacidade bélica superior.
A adopção do kilombo esteve ligada a grupos fraccionários, como foi o caso dos Kinguri, ou a chefes ambiciosos com projectos hegemónicos que, por insuficiente número de seguidores, não reuniam as condições objectivas para a realização dos seus projectos. Este foi o caso de Ngola-a-Mbandi, da rainha Jinga e dos Portugueses. Também os Kinguri, que aparentemente deixaram a Lunda sob pressão política e militar dos Luba, adoptaram as leis kijila do kilombo, como uma solução para os problemas de desintegração e divisão que emergiram quando ainda estavam submetidos à ideologia inerente ao título Kinguri. A sul do rio Kwanza surgiram alguns grupos de guerreiros chefiados por titulares kilombo, que incluíam títulos subordinados Lunda, Kinguri e Makota, denominados Mbangala, "Jaga"/Mbangala ou somente por "Jaga".
Um chefe em apuros, ou movido pela ambição, podia adoptar a organização do kilombo, ou/e reivindicar legitimidade à posse de um título que descendesse de um chefe kilombo.
Cerca de 1626-1627 a rainha Jinga, quando cercada pêlos exércitos de Ngola-a-Ari e dos seus aliados Portugueses, estabeleceu uma aliança com Kaza Ka Ngola, que detinha posições kilombo. "Casando" com "ele", a rainha Jinga adquiriu um título kilombo, tembanza, "primeira mulher", que lhe conferiu a legitimidade que porventura lhe faltava para preparar o maji-a-osamba. A apropriação desta posição kilombo por parte de Jinga, poderá explicar a forte influência que ela parece ter exercido ocasionalmente sobre alguns titulares, nomeadamente os "Jaga" Kalandula e Kabuku Ka Ndonga, entre 1640 e 1650.
Uma passagem da carta que a rainha Jinga escreveu ao governador Português Sousa Chichorro, datada de 13 de Dezembro de 1655, é bastante elucidativa quanto à circunstancialidade da adopção das leis kijila:
...«dou a minha palavra que, tanto que chegarem os reverendos padres com minha Irmã, tratarei logo de deixar parir e criar as mulheres seus filhos, cousa que até agora não consenti por ser estilo de quilombo, que anda em campo, o que não haverá, havendo paz firme e perpétua, e em poucos anos se tomarão minhas terras a povoar como dantes, porque até agora me não sirvo senão com gente de outras províncias e nações que tenho conquistado, e me obedecem como sua senhora natural com muito amor, e outros por temor».
In "Economia e Sociedade em Angola * Na época da Rainha Jinga * Século XVII", por Adriano Parreira, Editorial Estampa, Lisboa, 1987
Do Brasil, por Francisco G. de Amorim
04 jul 09