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Atira agora! Atira!
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Mais caça em Angola
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Muito se caçou de cima de jeeps, de dia, tal como se vê no filme Hatari estrelado por John Waine, em 1962, e até de noite com farolim. Visto a mais de quarenta anos de distância dá até a sensação de que se maltratavam os animais. Para os apanhar vivos ainda não se tinha desenvolvido a técnica dos tiros com anestésicos, que mais tarde se passou a utilizar, e que sem duvida é muito mais fácil para o caçador e bem melhor para o caçado. Os tempos eram outros, as técnicas mais elementares, e se não fosse natural aquele modo de proceder certamente que um astro como John Waine não teria consentido em colaborar.
É verdade. Caçava-se muitas vezes de cima de um jeep, e até se atirava com ele a correr pelo mato! Aos saltos. Tudo era fruto do enebriamento e entusiasmo que a caça produzia.
Em Angola chamavam-se aos donos ou diretores de empresas que viviam em Portugal, e que ali se deslocavam em viagem de teórica inspeção, mas sobretudo de passeio e férias, pagas, os inspetores do cacimbo! Cacimbo era a designação genérica da época mais fresca, teoricamente o inverno, mas cacimbo é especificamente a névoa matinal que só aparece naquele período. Uma espécie de orvalho. Em São Paulo é a garoa. Esses tais inspetores de cacimbo normalmente não apareciam em África nos meses mais quentes quando o clima era pesado. Ar condicionado não existia, e sobretudo as noites eram difíceis de suportar. Tudo afinal uma questão de hábito.
Habitual era proporcionar a esses visitantes alguma caçada, sobretudo caça grossa, visto que muitos deles, lá em Portugal caçavam já perdizes, coelhos e pouco mais.
Um deles, um ricaço metido a esperto, Manuel Vinhas, caçador em Portugal, que ia com frequência a Angola, onde se sentia o dono único de uma companhia de cervejas, comprou nos Estados Unidos uma magnifica carabina Winchester .375 Magnum, arma de calibre pesado, muito versátil tanto para antílopes grandes, como para búfalo, elefante e rinoceronte.
Homem influente nos meios industriais, não faltava quem o quisesse convidar para ir à caça. Sentado no banco da frente de um jeep, carabina na mão, lá vai o importante senhor no meio de uma turma de malucos procurar emoções. O primeiro tiro, por cortesia era sempre reservado ao visitante. Chegados à zona da caça, deixa-se a estrada e segue-se por trilhos mais ou menos conhecidos, devagar, todos os olhos disponíveis perscrutando a savana, a orla das matas, o capim alto, à procura de sinais de caça, que podiam ser somente a ponta de um chifre, um daqueles pássaros companheiro inseparável de algumas espécies, e que denunciam a sua posição, um movimento estranho no capim, etc.
Se algo aparecia, o jeep começava a correr direto ao local indicado, e por muito plano que o terreno fosse o carro saltava quase sempre que nem corça. Todos agarrados com unhas e dentes para se segurarem, incluindo o único passageiro que seguia sentado. Quando a caça ficava ao alcance de tiro, e não havia tempo de parar o jeep porque os animais se esconderiam na mata, era então preciso atirar mesmo em andamento no meio daqueles tombos, o que requeria muita prática e perícia. O convidado era intimado a atirar de qualquer jeito para não deixar fugir a presa.
- Agora. Atira. Fogo. Depressa que estão a fugir. Atira. Atira!
Sob esta pressão de todo o grupo, o convidado tentava meter arma à cara, continuava pulando no assento e sem conseguir apontar acabava disparando de qualquer jeito. Desta feita o tiro seguia o seu destino na maioria das vezes ninguém sabia para onde. Outras vezes sabia-se: um desses tiros da 375 atravessou o capô do jeep e saiu por um dos faróis! Grande tiro! Não matou nada, mas no regresso da caçada foi muito comentado e comemorado! O Manuel Vinhas depois desta demonstração um tanto vexatória e pouco venatória, vendeu a arma!
Essa do "Agora. Atira. Já. Não deixes fugir", e outros gritos semelhantes era o que mais berravam os que iam a conduzir, agarrados ao volante, muito mais seguros do que qualquer outro! Os que iam em pé, no jeep ou nas caçambas das carrinhas tinham que se largar para meter a arma à cara, e isso era difícil e perigoso. Mais ainda em cima de uma carrinha Chevrolet aí dos anos cinquenta e tal, sem estrutura de tubos de proteção. Os que iam lá atrás, logo que se deixava a estrada e se começava a andar por picadas e atalhos que não foram feitos para carros, ou mesmo a corta mato, a procurar caça, tinham que se agarrar de qualquer jeito. Se fossem dois, um de cada lado, ainda tinham as janelas das portas, mas se havia um terceiro a segurança ficava complicada.
Daquela vez ia só o condutor, o Antonio Nuno, um conceituado condutor no mato como se verá pelas cenas seguintes, e em cima um caçador, com uma caçadeira de dois canos. Tinham ido dar um passeio e ver se caçavam qualquer coisa. Terra de imbondeiro, regra geral pobre, que um dito comum, em rima, dizia que em Angola não dava dinheiro, capim ralo e pouco mato. Um ou outro muxito. Mas por todo o lugar sempre aparecia o suficiente para não desiludir os tais passeios, e não tardou muito tempo a surgir um bando de Pintadas ou Galinhas de Angola (Numida meleagris). O carro pára o caçador dispara o primeiro e o segundo tiro, caiem duas galinhas e o resto do bando levanta vôo para pousar umas centenas de metros adiante e continuar a correr pelo chão. As duas galinhas abatidas ficaram imóveis em local visível havendo assim hipótese de tentar caçar mais uma ou duas. O caçador abre a arma para voltar a carregá-la e nesse instante, o Antonio Nuno, entusiasmado com a visão do bando a fugir, arranca com o carro, em curva, acelerando para não o perder de vista! O caçador, agarrado unicamente à arma, desprevenido, voa projetado pelo ar e com muita sorte, porque descontraído, cai e rola no chão sem uma beliscadura. O motorista seguiu em perseguição das galinhas! Novamente estas à vista e a boa distância para atirar. Sem parar, porque os animais alertados fugiam, Antonio vendo que não sai nenhum tiro grita de dentro da cabina:
- Atira. Agora. Atira. Depressa. Olha que vão fugir.
É verdade. Caçava-se muitas vezes de cima de um jeep, e até se atirava com ele a correr pelo mato! Aos saltos. Tudo era fruto do enebriamento e entusiasmo que a caça produzia.
Em Angola chamavam-se aos donos ou diretores de empresas que viviam em Portugal, e que ali se deslocavam em viagem de teórica inspeção, mas sobretudo de passeio e férias, pagas, os inspetores do cacimbo! Cacimbo era a designação genérica da época mais fresca, teoricamente o inverno, mas cacimbo é especificamente a névoa matinal que só aparece naquele período. Uma espécie de orvalho. Em São Paulo é a garoa. Esses tais inspetores de cacimbo normalmente não apareciam em África nos meses mais quentes quando o clima era pesado. Ar condicionado não existia, e sobretudo as noites eram difíceis de suportar. Tudo afinal uma questão de hábito.
Habitual era proporcionar a esses visitantes alguma caçada, sobretudo caça grossa, visto que muitos deles, lá em Portugal caçavam já perdizes, coelhos e pouco mais.
Um deles, um ricaço metido a esperto, Manuel Vinhas, caçador em Portugal, que ia com frequência a Angola, onde se sentia o dono único de uma companhia de cervejas, comprou nos Estados Unidos uma magnifica carabina Winchester .375 Magnum, arma de calibre pesado, muito versátil tanto para antílopes grandes, como para búfalo, elefante e rinoceronte.
Homem influente nos meios industriais, não faltava quem o quisesse convidar para ir à caça. Sentado no banco da frente de um jeep, carabina na mão, lá vai o importante senhor no meio de uma turma de malucos procurar emoções. O primeiro tiro, por cortesia era sempre reservado ao visitante. Chegados à zona da caça, deixa-se a estrada e segue-se por trilhos mais ou menos conhecidos, devagar, todos os olhos disponíveis perscrutando a savana, a orla das matas, o capim alto, à procura de sinais de caça, que podiam ser somente a ponta de um chifre, um daqueles pássaros companheiro inseparável de algumas espécies, e que denunciam a sua posição, um movimento estranho no capim, etc.
Se algo aparecia, o jeep começava a correr direto ao local indicado, e por muito plano que o terreno fosse o carro saltava quase sempre que nem corça. Todos agarrados com unhas e dentes para se segurarem, incluindo o único passageiro que seguia sentado. Quando a caça ficava ao alcance de tiro, e não havia tempo de parar o jeep porque os animais se esconderiam na mata, era então preciso atirar mesmo em andamento no meio daqueles tombos, o que requeria muita prática e perícia. O convidado era intimado a atirar de qualquer jeito para não deixar fugir a presa.
- Agora. Atira. Fogo. Depressa que estão a fugir. Atira. Atira!
Sob esta pressão de todo o grupo, o convidado tentava meter arma à cara, continuava pulando no assento e sem conseguir apontar acabava disparando de qualquer jeito. Desta feita o tiro seguia o seu destino na maioria das vezes ninguém sabia para onde. Outras vezes sabia-se: um desses tiros da 375 atravessou o capô do jeep e saiu por um dos faróis! Grande tiro! Não matou nada, mas no regresso da caçada foi muito comentado e comemorado! O Manuel Vinhas depois desta demonstração um tanto vexatória e pouco venatória, vendeu a arma!
Essa do "Agora. Atira. Já. Não deixes fugir", e outros gritos semelhantes era o que mais berravam os que iam a conduzir, agarrados ao volante, muito mais seguros do que qualquer outro! Os que iam em pé, no jeep ou nas caçambas das carrinhas tinham que se largar para meter a arma à cara, e isso era difícil e perigoso. Mais ainda em cima de uma carrinha Chevrolet aí dos anos cinquenta e tal, sem estrutura de tubos de proteção. Os que iam lá atrás, logo que se deixava a estrada e se começava a andar por picadas e atalhos que não foram feitos para carros, ou mesmo a corta mato, a procurar caça, tinham que se agarrar de qualquer jeito. Se fossem dois, um de cada lado, ainda tinham as janelas das portas, mas se havia um terceiro a segurança ficava complicada.
Daquela vez ia só o condutor, o Antonio Nuno, um conceituado condutor no mato como se verá pelas cenas seguintes, e em cima um caçador, com uma caçadeira de dois canos. Tinham ido dar um passeio e ver se caçavam qualquer coisa. Terra de imbondeiro, regra geral pobre, que um dito comum, em rima, dizia que em Angola não dava dinheiro, capim ralo e pouco mato. Um ou outro muxito. Mas por todo o lugar sempre aparecia o suficiente para não desiludir os tais passeios, e não tardou muito tempo a surgir um bando de Pintadas ou Galinhas de Angola (Numida meleagris). O carro pára o caçador dispara o primeiro e o segundo tiro, caiem duas galinhas e o resto do bando levanta vôo para pousar umas centenas de metros adiante e continuar a correr pelo chão. As duas galinhas abatidas ficaram imóveis em local visível havendo assim hipótese de tentar caçar mais uma ou duas. O caçador abre a arma para voltar a carregá-la e nesse instante, o Antonio Nuno, entusiasmado com a visão do bando a fugir, arranca com o carro, em curva, acelerando para não o perder de vista! O caçador, agarrado unicamente à arma, desprevenido, voa projetado pelo ar e com muita sorte, porque descontraído, cai e rola no chão sem uma beliscadura. O motorista seguiu em perseguição das galinhas! Novamente estas à vista e a boa distância para atirar. Sem parar, porque os animais alertados fugiam, Antonio vendo que não sai nenhum tiro grita de dentro da cabina:
- Atira. Agora. Atira. Depressa. Olha que vão fugir.
Tiro... nada. Antonio insistia, e como não ouvisse o estrondo da resposta olha pelo vidro traseiro e não vê o caçador. Pára o carro, sai para verificar onde este se tinha metido, e vê a caçamba vazia.
A uns centos de metros, sentado no chão, coberto de terra e pó, espingarda no colo, esperando paciente que o carro voltasse, lá estava o parceiro! Foi uma grande caçada!
Pelo menos cada um tinha uma bela "angola" para levar para casa. Ainda por ali andaram algum tempo sem ver mais nada, quando já no regresso, perto da estrada principal, dão de caras com uma Palanca Vermelha (Hippotragus equinus), um grande macho solitário, cerca de um metro e quarenta de altura, altura sempre medida na espádua, que devia pesar mais de duzentos e cinquenta quilos. Um tiro certeiro, cai o bicho. Espera-se para ver se está mesmo morto, ou se é necessário ainda um tiro de misericórdia, o que não aconteceu.
- Belo animal. Bom tiro.
Abre-se a barriga para retirar as vísceras, que além de melhor ajudar a conservar a carne, é menos lixo que se leva para casa e bem menos peso a carregar. Depois então é só carregá-lo. Aí começou um problema complicado: os dois sozinhos iam ver-se aflitos para colocarem o animal em cima do carro. Além do peso, imenso para dois sujeitos que não eram nenhuns atletas, nessas ocasiões dá a sensação de que estes antílopes, pesados, têm vinte pernas, porque há sempre uma que empanca na carroceria, outra que em vez de subir fica por baixo ou presa no pára-choques, e quando ao fim de um esforço imenso se consegue já ter metade do animal em cima da caçamba, ele escorrega para fora como se estivesse untado de óleo, e cai de novo! Enfim, uma canseira. Mas não se pode desistir. Dessa vez foi uma luta titânica, que deixou os dois tão arruinados que poucas forças sobraram para conduzirem o carro de volta a casa! Mas levaram para eles e para os amigos um monte de carne principesca, que o Paulo, um empregado faz-tudo do Zé Neto, e também um grande pisteiro, foi ajudar a preparar. Esfolar o bicho e cortar a carne, não era para qualquer amador. Precisa de saber.
Noutro local, a Cela, hoje Waku Kungo, Antonio Nuno ao volante dum jeep Land Rover. Sentados no tejadilho, com os pés em cima do capô, dois caçarretas de primeira linha: Miguel Nuno e Manuel Teixeira de Abreu. Um com o farolim, outro com a arma. Dar uma voltinha para ver o que se apanha! Seguem devagar por uma picada na espera de aparecerem uns olhos brilhando na noite, sempre limpa naquela região. De repente o condutor vê, ninguém até hoje soube bem o quê, e estaca de repente. Os dois caçadores voam por cima do carro, estatelam-se no chão, sem ferimentos, e... acabou a caçada! Fica assim quase provado que o Antonio Nuno era um especialista em atirar com os caçadores pelo ar! Na caça era bom ter gente especializada em todas as áreas! Menos nisto.
Um dos mais suis generis dos tais inspetores de cacimbo, homem sereno, amável, companheiro ingénuo e alegre, magro e comprido, dois metros de altura, nariz suficiente, foi o Chico Manolete! Figura especial. Manolete foi a alcunha, apelido no Brasil, que lhe puseram quando ele um dia entrou numa garraiada. Já com alguns copos no buxo, enfrentou bravamente o valente garraio, e tanto sucesso fez que os aficionados que assistiam à corrida acharam que estava parecendo o grande matador espanhol, Manolo Rodriguez, El Manolete, e aplaudiram-no entusiasmados: Olé! Manolete! Ficou o Chico Manolete. Pois este chegou também a sentir o fogo de uma paixoneta por Angola, ao ponto de querer comprar uma fazenda para plantar café! Numa visita relâmpago que fez a esta região, tempo de chuva, o carro galgando subidas com dificuldade e descendo mesmo sem querer aquelas ladeiras barrentas, teve uma noite que dormir na mesma cama com o amigo que o levara. Não havia outra naquela casa simples, de madeira. Era a cama do dono da casa, que a dispensou aos visitantes e possível comprador da sua xitaca, mini fazenda de café. Chico, muito pudico, com medo que durante a noite o amigo tivesse alguma desagradável atitude sonambulista, em sua opinião sempre pouco aconselhável e nada cristã, colocou entre os dois o travesseiro! A cama já era estreita para um. Imagine-se com dois e mais um travesseiro pelo meio! Mas era o jeito!
Este Manolete também participou de algumas caçadas e começou a ficar animadissimo. Num dos fins de semana em que acompanhou uma das várias equipes de malucos da caça presenciou uma cena diferente: em vez de caçarem a tiro, atirando-se em vôo de cima do jeep em andamento, estes caçaram à mão dois filhotes de chacal (Canis adustus?), espécie rara na região onde foram encontrados! Rolaram pelo chão, sujaram-se todos, riram, divertiram-se, e acabaram por levar os filhotes para Luanda, de onde mais tarde foram enviados para um Zoológico em Nova Lisboa, hoje Huambo.
Como nesse dia ainda se caçou um belo javali, carne deliciosa, o nosso Chico Manolete, achou que cada vez que tivesse apetite de carne de caça, era só ir dar uma voltinha, de preferencia à noite quando era mais difícil encontrar fiscais de caça!
Caçar à noite era proibido, como é de calcular. Mas o entusiasmo por vezes é mais forte do que qualquer lei, ou lógica. O Chico tinha nesse tempo uma carrinha fechada, Austin, amarela, gema de ovo, talvez a única dessa cor em Luanda, o que a identificava a quilometros de distância. Talvez o tipo de carro menos indicado para ir à caça. Mas era o que ele tinha. De vez em quando passava em casa do Francisco, também Chico, seu xará, depois do jantar. Parava o carro na rua, tocava a buzina e sem sair do carro:
- Vamos num instante ali à estrada de Catete apanhar um javali!
- Chico, além de não serem mais horas para caçar, javali nem os olhos dá à noite!
- Então vamos caçar outra coisa!
A caça era muito mais do que um vicio. Era tão bom que mesmo não caçando nada ninguém voltava para casa aborrecido ou arrependido!
Outro visitante, o João Salgado, solteirão ainda, experiente caçador na Europa, como não era diretor ou dono de empresa teve que ficar inspecionando Angola durante seis meses. Tempo mais que suficiente para por ela fatalmente se apaixonar. Várias e profundas foram até as suas paixões, terrestres e aéreas. Angola é assim, todos tinham que se apaixonar por ela e por algo mais. Sobrava paixão naquela terra.
Numa das primeiras caçadas em que participou, equipado com caçadeira calibre 12, dois canos, porque os animais visados eram de pequeno porte, teve o seu momento de glória. Ninocas conduzindo o jeep que corria num terreno irregular, João em pé na traseira no meio de dois companheiros, todos ferozmente agarrados à estrutura tubular que sustenta a capota, sempre retirada e dobrada no fundo do carro, vê aparecerem no alto de uma pequena elevação dois veados! Nome genérico dado às diversas espécies de antílopes de porte médio, até pouco maiores do que uma cabra e mais concretamente aos Golungos (Tragelaphus scriptus) muito bonitos, com cerca de noventa centímetros de altura de espádua e uns sessenta quilos de peso.
Os dois veados recortando-se imóveis numa posição quase desafiante, João sem se largar para não cair, instinto treinado, aponta, sai o primeiro tiro, um veado cai, segundo tiro e o segundo veado cai também.
- Hurraaah! Um duplo aos veados!
Mal tinha acabado de pronunciar este grito de justificada satisfação e glória, chegou a vez do jeep por sua vez cair num buraco e tombar de lado! João, como todos os outros cai também, e fica com os canos da arma, felizmente já descarregada, pressionando-lhe a barriga. Um parceiro por baixo, outro por cima, uma pequena confusão que logo se acalma, todos a quererem levantar-se o mais rápido possível. Num instante estão de pé, cada qual procurando certificar-se que nada mais que uma ou outra pancada ou esfoladela, coisa comum, os tinha atingido. Todos, exceto o João, que continua deitado, a gemer!
- O que foi? Onde te dói? Dá cá a mão que a gente te ajuda a levantar.
Os companheiros preocupados. João levanta-se bem devagar, confere com a mesma lentidão a completa integridade do físico e quando se certifica que nada lhe tinha acontecido, respira fundo.
- Estás ferido?
- Não. Não. Graças a Deus.
- Então porque estavas a gemer?
- Eu estava à rasca naquela posição, os canos da arma enfiados na barriga, sem saber se tinha quebrado alguma coisa, achei melhor começar logo a gemer, para o que desse e viesse!...
Gargalhada geral. Eram uma animação aqueles incidentes!
Foram procurar os dois veados que deveriam estar caídos a vinte ou trinta metros dali. A elevação onde foram vistos dava para uma profunda barreira em desnível, talvez com cinquenta metros de altura, onde por sorte o jeep não caiu porque o tal buraco o segurou primeiro! E os dois veados abatidos num brilhante duplo de mestre? Onde estão? Bem que os procuraram, mas é de crer que eles se assustaram com os tiros, fugiram barreira abaixo, talvez sãos e salvos, e até hoje não consta que tivessem sido encontrados! Um duplo aos veados!
Mais uma aventura de caça que dava muita luta, muito boa disposição no regresso a casa, ao fim do dia, quase sempre com aquela paradinha obrigatória no mesmo bar que ficava a uns dez quilometros de Luanda, no Cacuaco, uma pequena enseada de pescadores. Esse bar, misto de casa comercial, restaurante, etc. era paragem obrigatória para matar a sede e fome, e fechar o dia comentando com tremenda animação aquela e outras caçadas. Os petiscos habituais eram as gambas, um camarão grande de Angola, uma delicia, choquinhos en su tinta, e outras pequenas maravilhas que permitiam que a cerveja ainda melhor corresse pelas gargantas ressequidas.
A cerveja de Angola, naqueles tempos era a Cuca. E, para quem voltasse daquela zona de caça era quase obrigado a ir beber Cuca no Cacuaco. A cacafonia ajudava a divertir os bebedores, atraídos sobretudo pelos petiscos, sem duvida. Quantas vezes se chegava ali ainda de dia, só para lavar a garganta, cheia de pó do mato, e saia-se já noite adentro, bem petiscado e bem bebido. As tais paradinhas! Mas ao chegar a casa ainda havia muito a fazer: dividir e preparar a carne que se trazia, limpar e arrumar as espingardas, e por fim tomar um belo banho!
Como tudo aquilo era bom...
São inúmeras as histórias de caça com os tais visitantes, alegres e caricatas, e não só com estes como com angolanos, mais ou menos devotos uns de Santo Uberto e outros talvez da deusa Samba, a protetora dos caçadores angolanos. E até com caçadores experientes.
A Pacassa (Synceros caffer nanus), um búfalo de relativamente pequeno porte, que deve atingir trezentos quilos de peso, é um animal com uma vitalidade incrível, que defende ferozmente o seu território e a sua vida. Aquilo é o que se chama de um bicho bravo. Em Angola sempre foi considerado o animal que mais acidentes de caça causava, tanto a caçadores como à população rural. Perseguir uma pacassa depois de ferida, sendo obrigação do caçador não abandonar um animal que não possa restabelecer-se rapidamente do ferimento causado pelo tiro, é deveras perigoso. Ela esconde-se, espera o caçador e investe, sobretudo se essa perseguição não começar imediatamente após o tiro. Isso pode acontecer se a caçada se fez ao final da tarde e o animal se refugiou dentro da mata, onde não há possibilidade de entrar sem luz. Então deixa-se para o dia seguinte, o que nenhum caçador nem pisteiro gosta de fazer, mas que se impunha como obrigação.
Horas depois de ferida, se a pacassa não consegue acompanhar a manada, e se isola, o cuidado tem de ser total. O ferimento começou a infeccionar, e o animal sentindo que a vida lhe está a faltar, em vez de fugir do caçador ou de qualquer homem, enfrenta-o bravamente, e com os seus chifres fortes e aguçados pode causar muito dano. E é sempre pior dentro da mata onde o homem quase não tem defesa e o animal lhe pode surgir de repente a meia dúzia de metros correndo direito a ele!
Assim mesmo com um ou outro visitante alguma vez houve que seguir este procedimento.
Ao fim da tarde de um sábado atingiu-se uma pacassa, e ela fugiu para a mata onde procurava proteção. Matas de espinheiras, com espinhos enormes, retos uns e outros talvez piores, curtos mas tipo unha de onça, o que dificulta terrivelmente o andar lá por dentro. Na madrugada seguinte, logo que a luz permitiu a entrada na mata, andando quase de gatas, olhos e ouvidos no alerta máximo, seguindo o rasto deixado pelo animal, lá vão quatro homens, o pisteiro, dois caçadores e o convidado, também com uma arma na mão, mas em segundo plano porque o momento era perigoso, requeria muita loucura e seria covardia expor a isso um novato. A deslocação muito lenta e temerosa, o pisteiro encontrando cada vez mais frescas manchas de sangue a indicar a proximidade do animal ferido. A tensão dos caçadores no máximo, a respiração lenta e silenciosa, o pisteiro atento ao menor indício que o orientasse, passando essas informações, por sinais, ao caçador.
De repente um barulho de galope, ali, a dois passos dos que vão na frente. Adrenalina a mil! Armas à cara, mas pacassa... nada.
Não foi a pacassa. No profundo silêncio da madrugada o levantar vôo duma perdiz a três metros de distância acaba fazendo um barulho tal que os caçadores pensaram e temeram que fosse a pacassa a investir. Passou o susto. Respirou-se fundo. Com um sorriso meio amarelo entreolharam-se, abanando a cabeça com ar de quem diz safámo-nos desta!
Mas faltava um elemento do grupo.
- Onde está o convidado?
Tal foi o susto que largou a arma e subiu na primeira árvore. Um espinheira! Lá estava ele a pouco mais de um metro e meio do chão, verde! Subiu num ápice, mas com tanto espinho, acabou sendo difícil tirá-lo dali! E depois ainda deu trabalho arrancarem-se-lhe os espinhos e passar mercurocromo nos arranhões que sangravam! Acabou a perseguição a pé à pacassa ferida. Foi depois encontrada à saída da mata no lado oposto por onde tinham entrado, e somente a uns dez metros onde a tal perdiz levantara! Sem que alguém a tivesse visto, a pacassa esteve ali mesmo à frente deles, e de certeza a observá-los. Se tivessem avançado um pouco mais a situação poderia ter sido feia.
Um tiro quase de misericórdia, e uma imensa quantidade de carne, deliciosa, a dividir pelo pisteiro e pelos caçadores.
O susto quase sempre vale a pena. Se não termina em tragédia, como muitos, são lições que se tiram e recordações que se levam pela vida fora.
Ninocas trabalhava como vendedor de adubos para uma grande companhia. Um dia recebeu, vindo da metrópole, um novo diretor financeiro, o dr. José Marques. Baixinho, óculos, caçador de coelhos e galinholas e outras miudezas lá na terrinha, assim que chegou a Luanda quis logo ir ver como era uma caçada a sério! O pessoal da companhia, como não podia deixar de ser, recomendou-lhe o Ninocas, como o melhor parceiro que se podia encontrar. E era.
Lá vão os dois, sós, no jeep do Ninocas, este a conduzir, para deixar ao novo diretor a honra e o prazer de matar a sua primeira peça de caça grossa!
Carro no meio do mato, deslocando-se lentamente à procura de algum animal, o dr. Marques em pé agarrado com unhas e dentes à armação do carro e o Ninocas vasculhando toda a área com o seu olhar experiente.
De repente lá estava uma manada. De pacassas, é claro. O Ninocas habituado a meter o pé na tábua assim que avistasse alguma coisa, acelera, o jeep começa a correr, saltando que nem pipoca, com o dr. diretor financeiro apavorado para não cair, procurando arranjar mais mãos e braços para se segurar, sem poder largar a arma que levava.
As pacassas alertadas começam a correr em direção à mata. Ninocas sempre acelerando, grita:
- Ali, na frente, doutor. Ali. Ali.
O jeep corria, saltava, e o dr. não queria nem saber de ver coisa alguma. Ele não era equilibrista de circo e chacoalhava e batia com o peito e braços nos ferros do carro, mas largar-se é que nada.
Ninocas, quando viu que os animais estavam ao alcance de tiro, grita mais ainda:
- Agora, doutor. Atire. Atire, agora.
Qual atira. Segura, só.
- Atire depressa que elas vão fugir. Atire. Agora. Depressa.
Nada. Ultimo apelo desesperado:
- Atira que elas vão fugir.
Nada. Fugiram.
- FILHO DA PUTA, doutor. Perdemos as pacassas!
Pára o jeep, cai em si e dá-se conta da terrível ofensa que acabara de fazer ao seu novo diretor, e quando olha para trás para lhe pedir desculpa vê o homem lívido, grudado à armação do carro. Nem falava. Apavorado.
Sem mais uma palavra voltaram para Luanda.
No dia seguinte, quando se encontraram no trabalho, o doutor já descansado, esqueceram o insulto, riram descontraídos e marcaram nova experiência, mas um pouco mais devagar! E sem palavrões!
in "Contos Peregrinos a Preto e Branco" , 1998, de Francisco G. de Amorim
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