domingo, 26 de julho de 2009

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A CAÇA E OS CAÇADORES
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"Oryx gazella" - O Guelengue do deserto do Namibe

Quem não viveu em África até aos anos cinquenta ou sessenta deste século, não pode imaginar o que era caçar. Nada ou pouco se falava em ecologia, meio ambiente, extinção de espécies, destruição de florestas, poluição, etc. Havia consciência de que algumas espécies estavam a caminho da extinção, e os governos faziam quanto podiam para evitar, ou retardar esses desastres. Os caçadores também, apesar de sempre ter havido gente inescrupulosa e que continua a destruir tudo, e todos, que lhe surja pela frente. Aliás o animal homem também está incluído nas espécies em extinção, basta ver os genocídios na Croácia, na Somália, Ruanda, Sudão, Afeganistão, o turismo-tráfego-de prostituição infantil que os humanos de países ricos compram dos pobres, e muitas outras aberrações, para se imaginar que a nossa espécie está longe de se querer manter na face da terra. O bicho homem é um ser miserável.
Mas enfim, naquele tempo caçava-se, e de um modo geral o caçador tinha uma profunda consciência do que fazia. Não era um matador de animais. Ele sempre procurava escolher o maior macho do grupo, não só porque atraído pelo troféu, como pelo mesmo orgulho do pescador, que sempre amplia o tamanho do peixe apanhado, dando assim hipótese a que um outro macho, mais jovem, levasse sangue novo e passasse a chefiar a manada. Evitava abater fêmeas, o que em algumas espécies era muito difícil de distinguir, por serem machos e fêmeas quase iguais, respeitava a época do defeso e sobretudo respeitava e amava todo aquele maravilhoso ambiente, vivendo intensamente cada momento do imenso sertão, do "mato".
Quem naquela época, mesmo que só tivesse ido a África por alguns dias, teve oportunidade de participar de uma caçada, pode viver mais cem anos que não vai nunca esquecer essa experiência. Foi a emoção, por vezes o medo, mas sobretudo o espaço, a grandiosidade das matas, das savanas, do deserto, o silêncio, o piar ou cantar de uma ou outra ave, o restolhar de um animal ou mesmo de uma manada inteira correndo dentro da mata, quantas vezes sem que alguém conseguisse enxergá-la, a travessia de um rio em cima de jangadas que Deus sabe como não viravam, e tanto mais. Tudo aquilo não se esquece como ninguém esquece o primeiro ou o maior amor da sua vida.
Os atrativos da caça eram, além do óbvio, a possibilidade de caçar um animal qualquer que proporcionasse um bom troféu, ou uma bela carne, ou só o passeio, mas sempre umas horas ou dias com boa companhia, alegre e em contato com a natureza selvagem, primitiva, quantas vezes quase intocada. Havia algo que se sobrepunha a tudo o mais, que faz parte da genética do homem, caçador desde todos os tempos: a espera, a perseguição, o seguir um rasto, o adivinhar através do menor sinal ou ruído onde se encontra a presa que se persegue. Tudo isso. Eram momentos, quantas vezes horas e horas, de grande tensão, e de profunda, total comunhão com a natureza.
Tanto fazia ser uma caçada aos elefantes como somente às rolas ou perdizes, que o entusiasmo era o mesmo. O que variavam eram os preparativos, o tempo que teria que se dispor para uma ou outra, com acampamento ou não, as armas a levar, a distância a percorrer para alcançar as áreas de caça, já que elefantes e outra caça grossa só bem longe das cidades, enquanto que perdizes e rolas, na época certa havia-as por quase todo o lado.
Caçar, ninguém conseguiu definir se é vicio, se paixão. E uma pessoa ou se apaixona ou é indiferente. Em África era assim. O caçador era um apaixonado pela caça, e como esta é inseparável da própria África, o caçador era um apaixonado por África.
Pode ter sido obrigado por falta de visão de futuro e erros políticos cometidos pelos países colonizadores a abandoná-la, mas com certeza que os anos que depois viveu fora dali sempre estiveram impregnados de uma saudade imensa, presa, entre outras, às recordações de tão grandes momentos.
De uma forma genérica dividia-se a caça em: caça grossa quando se tratava de animais grandes, a começar pelos elefantes, rinocerontes, búfalos, pacassas - uma variedade de búfalo menor, mas mais agressiva e talvez mais perigosa do que aquele - onças, etc. e caça ligeira a pequenos antílopes, lebres, rolas, patos, perdizes, e outros.
A caça às rolas era um tipo de caça especial. Própria. Elas dormem em árvores junto às lagoas e de manhã bem cedo saem, aos milhares, para se irem alimentar nas matas, percorrendo praticamente sempre o mesmo trajeto. Os caçadores colocavam-se sob a linha de vôo e atiravam de passagem. Parece, dito assim com esta simplicidade, coisa fácil, mas só para quem nunca caçou! A trajetória ziguezagueante e a velocidade incrível do seu vôo que o vento de favor ajudava, dificultava o tiro que tinha que ser muito rápido. Assim, enquanto um grande atirador como era o Zé Neto, chegava a matar uma centena, um mediano não passava de dez ou vinte, dando o mesmo ou até maior numero de tiros! Mas ambos gozavam do mesmo modo. Para ir às rolas saía-se de Luanda bem cedo, ainda noite escura, para estar no local de caça ao nascer do dia, antes das aves começarem a sua faina. Pelas nove ou dez horas da manhã estava a festa acabada.
Quando era uma caçada familiar, em que a família participava do passeio, levava-se farnel que se comia debaixo de boas sombras, e por vezes até a sesta ali se dormia estendido no chão ou nos bancos dos carros, e duas horas antes do pôr do sol voltava a caçar-se novamente, com o regresso das rolas ao local de pernoita. Por fim dividiam-se as peças abatidas entre todos e regressava-se a casa com a agradável sensação de se haver passado um dia soberbo.
O horário para toda a caça é sempre o mesmo, iniciando logo que o dia começa a despontar, parando assim que o calor impede a permanência sob o sol escaldante, cerca de duas a três horas depois do seu levante quando os animais se vão abrigar. Ficam quase sempre imóveis à sombra, escondidos dentro das matas, para voltarem a locais mais abertos, duas a três horas também antes do pôr do sol para de novo se alimentarem.
As perdizes eram caçadas de salto, com cães, que não só as obrigam a levantar como sobretudo não as perdem no meio do capim ou do mato, depois de feridas ou mortas. Todo o caçador sabe que uma das principais características de qualquer animal selvagem é a sua capacidade mimética. As perdizes com a coloração das suas penas matizadas de castanhos e beges, se ficarem imóveis no chão quase sempre passam desapercebidas. Ao caçador europeu. Ao africano é difícil que escapem, de tal modo ele está integrado ao seu ambiente!
Em muitas das áreas desta caça, o capim chega a atingir a altura de um homem, dificultando ou até impossibilitando a caçada, quantas vezes com arbustos espinhosos escondidos pelo meio, que obrigavam o caçador a vestir-se com roupas de tecido forte, apesar do muito calor tropical, se não queria ficar com as pernas arranhadas ou até rasgadas! Isto ainda era muito bom quando comparado a outras áreas de caça, donde se saía carregado de minúsculas carraças, carrapatos, os causadores da febre da carraça. Se andasse por estas áreas, ao chegar a casa era aconselhável tomar um bom banho de imersão misturando um pouco de amoníaco na água e pedir a alguém que o inspecionasse em todos os cantos, sobretudo nas áreas traseiras onde nem com espelho se enxerga! Isto para evitar deixar ficar um desses miseráveis bichinhos que poucas horas depois já se estaria alimentando do seu sangue. Eram as condições do jogo que todos de bom grado aceitavam. Nunca alguém se lamentou por isso! O amor é assim!
Aos patos a caçada era bem diferente, porque estes vivem nas lagoas. Quem morava em Luanda podia optar pela lagoa de Catete, que pertence ao sistema fluvial do rio Quanza, a uns sessenta quilometros da capital, ou do Panguila a metade da distância, no rio Bengo, que é o fornecedor de água a Luanda. Catete por ser mais longe e a lagoa bem maior, proporcionava sempre melhores hipóteses. Nas margens de ambas havia algumas sanzalas de pescadores que ali e dali viviam. Tinham os seus dongos, pequenas canoas, que levavam o caçador, e eram eles quem sempre sabiam onde se encontravam os patos!
Essas lagoas com muita vegetação, nenúfares rasteiros e caniços altos, que tanto protegem as aves da vista dos caçadores como estes daquelas, tinham o inconveniente de abrigarem miriades de mosquitos que compartilhavam o mesmo horário para caçarem o homem, às primeiras e ultimas horas do dia! O único jeito de que os caçadores se serviam para não serem caçados pelos hámua, era o de se equiparem convenientemente, usando chapéu colonial com rede, luvas, botas altas de pescador, e camisa forte porque os insaciáveis mordiam até por cima da roupa. Logo que o sol ia um pouco mais alto, como por encanto os mosquitos sumiam, e podia-se então gozar por completo aquela quietude. As águas serenas e frescas, um bando de marrecos ao longe, o aproximar do dongo com o pescador e guia a não fazer o mínimo ruído com o remo, ambos, pescador e caçador encolhidos para evitarem serem vistos de mais longe. O dongo avançava silenciosamente, impulsionado pelo remo ou por uma vara, o pescador ximbicando, muitas vezes sob densa neblina que se levantava da superfície das águas, dando a todo aquele quadro um aspecto de sonho e de mistério. A neblina, se mantinha os mosquitos mais tranquilos, também deixava poucas hipóteses de se verem os patos. Tudo isso era inalianável. Como um ritual. Apaixonante.
Uma das espécies que habitavam também as lagoas eram, como se pode imaginar, os jacarés, ciosos da sua propriedade e sempre prontos a enfiar aquela enorme dentuça em todo o petisco que aparecesse. Ao meter a mão na água para pegar um pato que se tivesse abatido, havia que o fazer com cuidado, porque o bichão podia se precipitar para apanhar o pato mais rápido do que o caçador, e por acréscimo levar a mão deste! Alguns pescadores foram vitimas de acidentes deste tipo, e com o Antonio Mariano, isso quase aconteceu. O pato caído na água depois de ter sido abatido, no momento em que lhe vai a deitar a mão para o apanhar, um daqueles jacarés quis a mesma refeição. Por muita sorte chegou ligeiramente atrasado e só conseguiu pegar a cabeça do pato, mas o susto foi de tal ordem que o caçador não só largou o pato como a arma e quase cai de costas para fora do dongo! O jacaré apanhou outro susto e o pato, sem cabeça, ficou boiando na água! Por pouco tempo.
O disfarce dos animais e a defesa das suas vidas tem cenas incríveis. Todo o pato abatido sem que o tiro seja mortal, procura sempre fugir e se esconder, muitas vezes mergulhando nas águas para só aparecer bem longe onde já se imagina longe do perigo. Outras vezes enganavam-se a si próprios, fazendo como a avestruz que, segundo versão popular, enfia a cabeça num buraco para não ver o que se passa à sua volta, escondendo só a cabeça debaixo de um nenúfar, certamente convencidos que estavam suficientemente camuflados, mas deixando o corpo todo de fora! Esses normalmente acabavam assados com laranja, uma ótima receita!
A caça grossa era outra coisa, mais complexa e emocionante, como é fácil imaginar.
(continua... para voltarmos a sonhar!)

in "Contos Peregrinos a Preto e Branco", 1998, de Francisco G. de Amorim

26 jul.09

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