quinta-feira, 7 de maio de 2009

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João Driesel Frick e Camões

CARTA DE LONDRES

Tradição não é história
1 de Fevereiro de 1907

Faz cinco anos que escrevo estas cartas de Londres, e já são 167. Quantos assuntos focados, e quanto desencontro de idéias com as que tem muita gente. Mas nunca a pena me passou do tinteiro ao papel com outro intento que não fosse fazer bem; nunca transmitiu um pensamento que não viesse da consciência, levando sempre a ideía de não errar.
Na atmosfera onde escrevo há muitos elementos de informação, e tão bem organizados, que está ao alcance que qualquer obtê-los. Não os há tão abundantes em outra parte do mundo! Sucede, muitas vezes, não ser necessário procurá-los, apresentam-se de si mesmo todos os dias.
Sem intento definido, ou quase por acaso falando da marinha portuguesa n’estas cartas, saíu-me da pena dizer que o nosso cantor Camões nunca esteve em Macau e que a tradição da Gruta, onde ele, desterrado, ali escreveu Os Lusíadas, é uma ficção.
O assunto não pertence à natureza destas cartas e eu não voltaria a falar n’ele; mas de Macau pedem mais esclarecimentos! Como os factos pertencem à história das nossas colonias, com certeza interessarão também os raros leitores que eu posso ter em Portugal, e por isso vou justificar o que aventurei dizer na minha penúltima carta.
A ficção de que Os Lusíadas foram escritos na gruta de Macau, deu origem a trechos dos mais poéticos na biografia de Camões; penas das mais dextras, e em todas as línguas, teem sempre enfeitado a parte aventureira do poeta na Índia, com o seu desterro para a China. Dizem que ele foi mandado para ali como castigo e por Francisco Barreto, então governador de Goa; e a gruta é de há muito visitada, com empenho, por todos quantos vão a Macau, e já são muitas as poesias dos viajantes que publicaram as suas impressões de viagem.
Não faria mal a ninguém que a tradição assim continuasse; mas não poderia durar indefinidamente, porque a história de Camões já esta escrita; acha-se, é verdade, esparsa; mas o tempo está todos os dias aproximando os documentos, e a confrontação de documentos ou confirma os factos e fica a história, ou os rejeita e ficaria a tradição; e as tradições infundadas, por mais poesia com que as enfeitem, não teem elementos para se manter, caem, e para sempre.
Não houve, nem há até este momento, um só português ilustrado, que lesse as biografias de Camões, e não admitisse como história a tradição de que o nosso cantor escreveu os Lusíadas na solidão d’uma gruta, e em Macau; e foi sempre repetido e aceire que o poeta fora para tão longínquo degredo por mandado de Francisco Barreto em castigo da ofensa que fizera às autoridades de Gôa coma a sátira Disparates da Índia. N’essa sátira, em julho ou agosto de 1555, condenou mordazmente, a administração dos governadores.
E não há um português ilustrado, que não ache, de principio a fim, nos Lusíadas, que o poema foi todo escrito no reinado de d. Sebastião; portanto, desde 11 de junho de 1557, quando morreu d. João III, até 4 de setembro de 1571, quando, tendo-se submetido á censura régia o seu poema, Camões entregou o manuscrito na topografia de Antonio Gonçalves. Basta contudo confrontar datas, para ver que elas não sincronizam. Se Camões esteve de castigo em Macau em 1556 e 1557, durante o governo de Francisco Barreto em Gôa, não poderia nessa época ter escrito um poema, dirigindo-se de principio a fim a um rei que não era ainda rei, e só tinha três anos de idade. Existia ainda d. João III no tempo de Francisco Barreto.
Ponhamos porém de parte esta controvérsia; é um anacronismo que desapareceria, se pudéssemos corrigir datas. Mas há elementos mais fortes do que este facto, para corroborar a indicação de que Camões nunca esteve em Macau, e para contrariar a tradição, de que foi mandado para ali por Francisco Barreto. O argumento é fortíssimo; pode-se provar que não havia ainda Macau em 1556 e 1557, quando a tradição já ali dá o poeta escrevendo os Lusíadas, sossegadamente, retirado na solidão d’uma gruta.
Nenhum escritor português nem de outra língua, dos muitos que me foram acessíveis na riquíssima biblioteca do Museu Britânico, e eu os procurei com empenho, dá notícia de Macau antes de 1557; encontrei, pelo contrário, nas cartas S. Francisco Xavier, ou Fernão Mendes Pinto, em frei Francisco de São Luis, em Montalto de Jesus, em Pinheiro Chagas, em Innocencio da Silva, e não poucos outros, provas de que, até 1557, o lugar, que mais tarde se chamou Macau, era, n’esse tempo e havia muito, um covil de piratas, terror de todas aquelas paragens; e os chineses não tinham então forma de os expulsar.
N’aquele tempo, os navios do comércio português tinham artilharia e marinheiros armados, e não era fácil achar a linha que separava os mercantes dos corsários, porque, não poucas vezes, os navios portugueses, tanto de guerra como mercantes, também eram piratas; mandavam onde estavam e não tinham de portugueses senão a bandeira; não obedeciam a ninguém. O seu comércio era autônomo. Foi como tais, que os capitães e os sobre-cargas dos navios portugueses, n’aquele ano de 1557, ajudavam com a sua artilharia os mandarins de Cantão a expulsar os piratas, sobretudos malaios e japoneses, para fora das enseadas que mais tarde se chamaram Macau. Os negociantes portugueses foram então, pouco a pouco, instalando-se ali, tolerados, mas a contragosto dos mandarins.
Fizeram ali o seu centro, porque o porto era de bom abrigo; mas durante os reinados de d. Sebastião, de d. Henrique, e ainda muitos anos depois do domínio espanhol, não obedeceram nem ao governo da Índia nem ao de Lisboa; a tal ponto nunca tomaram conhecimento do domínio espanhol; continuaram com a bandeira portuguesa; eram portugueses independentes; não eram rebeldes; eram donos de si; rei de Espanha, rei de Portugal e vice reis de Goa não mandaram nada em Macau durante os 16 anos que Camões esteve na Índia, e nesse tempo, por cortesia, talvez por hospitalidade, toleravam em Macau a entrada do combóio português bem armado que ali passava nas margens do Japão,e, por consideração, davam ao Capitão da frota autoridade de momento, chamando-lhe Capitão do mar, não por ser autoridade reconhecida, mas, e somente, porque não tinham força para lhe fechar a porta!
Quem ficou sempre governador de Macau, depois da expulsão dos piratas em 1557, foi a mão dada dos jesuítas que se seguiram a S. Francisco Xavier e outros sacerdotes dirigidos pelo seu bispo, e todos, em bom acordo, ou tanto quanto possível, com a autoridade dos mandarins, com o Capitão de terra, escolhidos pelos homens bons, e um senado eleito em fórum de câmara municipal.
Mais ou menos era esta a forma de governo, e, como se vê, independente da Índia, e ainda mais independente de Portugal. E durante todo o tempo que precedeu os Filipes, mais de 24 anos, conservou sempre a autoridade de governador de Macau um comerciante rico e muito estimado de nome Diogo Pereira, que fora amigo de S. Francisco Xavier.
Era a primeira autoridade; Lisboa e Goa faziam esforços para meterem em Macau autoridades suas; não o conseguiram nunca. Em 1502, para afastarem Diogo Pereira de Macau, foi ele nomeado embaixador português na China, e, com grandes promessas, mandaram-lhe que seguisse para Pekin; mas ele não aceitou tantas honras; respondeu que fora eleito, e se conservaria Capitão de terra, vivendo com os seus amigos.
A sua recusa desagradou muito ao governo de Lisboa, e foi logo no ano seguinte um decreto real de d. Sebastião (em 1563), abolindo em Macau o posto de Capitão de terra; clero, homens bons, bispo mandarins e o próprio Capitão de terra tomaram em tal consideração o decreto, que o Diogo Pereira conservou-se Capitão de terra por mais 24 anos, até 1587, já 7 anos depois da entrada dos Filipes em Portugal. Imagine-se como as comunicações eram naquele tempo, e como Portugal, de longe, poderia mandar em Macau, e chamar-lhe colônia, se as notícias da derrota de Alkacer-Kibir e morte de d. Sebastião só chegaram a Macau ao fim de 4 anos.
Estes factos e estas datas são forçados e já históricos; estão documentados, e eu os tenho por muitos lados, que não cabe nesta carta indicar; mas estão no Museu Britânico aqui em Londres. Está pois, mais que explicado o facto de Camões não se referir ao seu poema, nem aos seus sonetos e outras poesias, à cidade de Macau.
A conjetura do Visconde de Jurumenha, que Camões, desterrado de Goa, estava em 1547 na esquadra que expulsou os piratas de Macau, e ajudou na peleja, é quase pueril; não podia Francisco Barreto ter mandado em 1556 um funcionário público para Macau, já nomeado para provedor de defuntos, quando ainda aí estavam piratas, o lugar não tinha portugueses, e...ainda não se chamava Macau. Outra conjetura, ainda mais sem fundamento, é Jurumenha achar no soneto CLXXXI, sem data nem local, referência à gruta de Macau, como às margens do Mondego, algum retiro que o poeta conhecesse em Marrocos, ou a um lugar imaginário, como ele os sabia imaginar. Peço ao meu leitor de ler o soneto.
Em vista do que fica dito, haverá alguém que possa admitir o facto de Camões ter sido degredado para Macau, por Francisco Barreto, antes de haver Macau? E que nos dois anos de degredo que ali passou tenha escrito na gruta, então ocupada por piratas, o grande poema de dez cantos que dirigiu ao rei d. Sebastião, que então ainda não era rei!
Não tinha eu nenhum dos dados que agora dou, quando pelos Lusíadas e outras obras, que tenho lido do poeta, disse, há mais de dez anos, a amigos de Macau, então em Londres, que Camões nunca estivera em Macau; e hoje, pelo trabalho que tive estudando Camões nos numerosos livros que manuseei para me certificar da sua não estada em Macau, tenho outro pensamento, depois de muita atenção nos documentos publicados pelo Visconde de Jurumenha.
Escutai:
O final do canto décimo apresenta Camões tão soldado e tão poeta, que ele não podia ficar, não havia força que o segurasse em Lisboa, quando d. Sebastião e os seus homens de armas partiram para Marrocos. Escutai mais:
Camões morreu, com a espada na mão, ao lado do seu rei nos campos de Alcácer-Kibir. Os documentos até hoje apresentados não são bastante fortes para provar o contrário:
............ , Tradições não são história.

Gonçalo da Gama - pseudónimo de João Driesel Frick
Publicada em “Portugal - Diário Catholico” 1° Anno - Nr. 2, 6 de Fevereiro de 1907, Quarta-feira
Transcrita do Brasil, por Francisco G. de Amorim

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