Quissange
Benguela. 1954.
Falar da musicalidade de África, sobretudo do ritmo dos negros, é quase pleonasmo! O africano tem o ritmo no corpo, na alma, na vida. Levou com ele essa musicalidade que lhe é congénita para todos os lugares do mundo para onde a diáspora os carregou.
Criou os blues, o jazz, o samba, o reggae, guardou em sua casa de Luanda a massemba, aquela sensacional dança das sembas, umbigadas, a rebita em Benguela, que ainda não há muitos anos se dançava em baile mandado por um marcador, às vezes em francês, como En promenade, Encore, etc., os batuques espantosos, a morna e a coladeira em Cabo Verde, a marrabenta em Moçambique, e muito mais ainda, que os eruditos de música já devem ter contado para quem se interessou em ouvi-los.
Mas há situações a que possivelmente poucos estudiosos de música tenham tido oportunidade de assistir, como eu por exemplo, na África do Sul, numa fábrica de equipamento agrícola, seção de caixotaria, de onde praticamente tudo era expedido embalado em caixotes ou grades de madeira.
Num armazém grande, meia dúzia de operários, preparavam esses caixotes. Recebiam as tábuas já cortadas, e de acordo com planos estabelecidos só tinham que as pregar para as transformar em caixas, de diversos tamanhos.
Cada homem em sua caixa, martelos e pregos para cada um. Todos em silêncio. A voz ali não fazia falta.
Um deles, à vez, dava a primeira martelada e logo em seguida, em ritmo de batuque, de dança, todos martelavam o mesmo numero de pancadas nos pregos. Quando um terminava, terminavam todos. Novo prego, novo sinal de partida, mais um pouco de batuque, e sempre por aí adiante.
Na visita que fiz a essa fábrica, acompanhado de mais oito visitantes, foi tal o meu espanto, admiração e entusiasmo por esse concerto de música que me deixei ali ficar uma porção de tempo, e acabei por me perder do grupo. Mas foi um espetáculo sensacional, e único, que não dá para esquecer.
Se fosse numa caixotaria de europeus, seis homens a martelar, ao fim de algumas horas esse pessoal deveria ficar surdo, com uma barulheira infernal, e mais os que tivessem a infelicidade de ter que os ouvir. Mas em África não era assim. Aquele martelar não era barulho, era música.
Em Benguela, no pequeno cais do caminho de ferro, cinco homens, filhos da África negra, fortes, descalços, descarregando um vagão de milho ensacado, cada saco pesando sessenta quilos. Tiravam os sacos do vagão para os colocar num caminhão.
O mesmo tipo de música dos carpinteiros da África do Sul, só que desta vez os instrumentos musicais eram os pés! Sim, os pés.
Arrastando os pés no chão, o barulho que faziam é uma espécie de sshhii, sshhii, sshhii. Difícil de explicar por escrito um som diferente. Pior ainda um ritmo para quem nada sabe de música, nem ler uma pauta! Tentem lembrar o som que faz uma locomotiva de caminho de ferro, das antigas, a vapor, que no Brasil chamam de Maria Fumaça. É algo como sshhii... ffuu... sshhii... ffuu... e aí vai o trem! No mesmo ritmo e imitando maravilhosamente essas locomotivas, assim aqueles homens iam descarregando o vagão. Um dentro do vagão para ajudar a levantar o saco que os outros colocavam nas costas. Quando todos estavam prontos um deles fazia o primeiro sshhii... com o pé, e lá iam os quatro imitando o Maria Fumaça lá da terra, começando por compasso mais espaçado para irem acelerando até ao caminhão! Tal como faz o comboio quando começa a andar!
Combóio (trem !) no interior de Angola
Fiquei ali um bom tempo, esquecido do resto do mundo que me rodeava, a apreciar este outro espetáculo, aquele ritmo incrível, inusitado, super original, que os homens faziam com a mesma naturalidade com que respiravam! Lembro que acharam graça ver-me a apreciá-los e ainda capricharam mais, se possível isso fosse! Trabalho pesado que a música aliviava e disfarçava. Quem já viu brancos fazer isto?
Estação do "CFB" em Benguela
E os Marimbeiros do Zavala? Em Moçambique, a uns trezentos quilometros para norte da capital, fica a região do Zavala, célebre pelos seus marimbeiros. Marimbas, xilofones, feitas de madeira, algumas com quase dois metros de comprimento. Instrumentos lindos, com uma elegância e beleza de fazer roer de inveja os mais renomados designers mundiais! O som, o ritmo, a musicalidade dessas marimbas é alguma coisa que precisa ser ouvido. Não dá para descrever.
Um grupo de cinco, dez, vinte homens tocando todos ao mesmo tempo as suas marimbas é um concerto inesquecível, digno de se apresentar em qualquer Carnegie ou Albert Hall por esse mundo fora. Entusiasmaria um Bach, um Mozart e até Beethoven.
Esses Marimbeiros do Zavala são já conhecidos em alguns países. Infelizmente em poucos. Quem perde é quem os não conhece, não os ouve.
Em África até o vento quando passa nas imponentes mulembas nas banzas dos sobas, agita as suas folhas ao ritmo quente e tranquilo do sol poente. Sem cadência é que não pode passar. Seria uma ofensa ao compasso do coração d’África.
Quissange é um pequeno instrumento de música africano. A descrição deste instrumento para quem nunca o viu é o mesmo que descrever o gosto de um fruto a quem também nunca o viu nem provou.
A minha primeira ida para África, para Angola, foi de navio. Avião naquele tempo, demorava dois dias, era caro, e não permitia levar mais dos que uma a duas malas, quando de navio, incluído no preço do bilhete tinha-se direito a um metro cúbico de bagagem, o que dava para muita coisa. Além de se poderem levar mobílias e até automóvel, por preço razoável. Fui no “Moçambique” um paquete misto de carga e passageiros, confortável, muito estável mesmo com mar mais instável. A viagem de Lisboa para Luanda demorava dez dias, passando ao fim de dia e meio na Ilha da Madeira, no Funchal, e seis dias depois em São Tomé.
Poucos passageiros aproveitavam aquelas escalas, sempre de muitas horas, para ir a terra. Uns porque enjoados do mar, outros por não conhecerem por ali ninguém, outros com medo que o navio depois zarpasse sem os levar, alguns porque não tinham no bolso mais do que o insuficiente para sobreviver nos primeiros tempos no destino, etc. Mas quem foi, teve oportunidade de conhecer lugares lindissimos.
A Madeira é um jardim acidentado, florido, alguns lugares mais altos com vistas deslumbrantes, comida e vinho de primeira ordem, magníficos hotéis, um clima temperado sempre muito agradável o ano inteiro e por ser uma das jóias da coroa portuguesa foi objeto de diversas tentativas de roubo por parte da Inglaterra que chegou um dia a apoderar-se da ilha. Roubou-a, ocupou-a, hasteou ali a sua bandeira, mas pouco tempo depois foi obrigada a arriar a sua arrogância e devolver aquela maravilha. Os ingleses sempre foram uns grandes sócios de Portugal!
São Tomé é outro jardim, mas um jardim em plena linha do equador. Parece um cone perdido no meio do oceano, com o seu ponto mais alto que se eleva a 2024 m. Devido ao calor equatorial tem sempre nuvens mantendo as terras baixas abafadas, muito úmidas. A temperatura não é muito elevada, mas o ambiente sempre saturado de umidade, permite que se desenvolva uma vegetação exuberante. Exuberante e luxuriante.
Quando se avista do mar aparece por cima dessas nuvens o pico, e lembra, visto de longe um imenso chapéu mexicano. Vive, mal, da agricultura, tendo já sido o maior produtor mundial de cacau. No meio das plantações nascem antúrios, begónias e outras maravilhas que se capinam para limpar o terreno! Ao longo dos caminhos daquelas plantações, sobretudo de cacau e café, cheira a baunilha, apanham-se cocos e bananas, e vê-se a água correr encosta abaixo, sempre límpida, mesmo nas épocas em que pouco chove. É inesquecível um passeio por dentro de São Tomé. É como entrar numa estufa de plantas exóticas, só que ali os únicos exóticos somos nós! Os homens.
Quando embarquei em Lisboa, fui convidado para me sentar durante as refeições à mesa do comissário, o mais antigo de todos os comissários dos navios portugueses, que poucos anos passados se aposentou. Era um homem que conhecia o mundo, por onde navegou dezenas de anos.
Naquele tempo a Europa não estava, como hoje, abastecida de frutos tropicais frescos, com exceção da banana que se cultiva em zonas temperadas como Madeira, Açores e Canárias.
Em todas as escalas o navio se reabastecia de produtos locais para alimentar passageiros e tripulação, e apresentar novas alternativas para variar e melhorar o cardápio. Chegava de manhã cedo, e zarpava à tarde. Sendo um navio de algum porte ficava fundeado em frente às capitais, e logo era rodeado de muitas e pequenas embarcações com vendedores de frutas, bonito artesanato, sobretudo na Ilha da Madeira, e com acrobatas que mergulhavam do convés superior do navio para agarrar as moedas que se lhes jogavam ao mar. Apanhavam-nas sempre já a dois ou três metros de profundidade, enquanto estas desciam oscilando lentamente para o fundo. Mesmo os passageiros que não saíam de bordo tinham com que se entreter.
Depois de sairmos de São Tomé, à noite, durante o jantar, o comissário, sabendo que alguns dos convivas da sua mesa nunca tinham estado em África, disse:
- Creio que aqueles que vêm para África pela primeira vez vão comer um fruto tropical que lhes é desconhecido. Só queria pedir-lhes um favor: que o provem e me digam a que sabe.
Ficámos curiosos, e quando serviram a sobremesa lá apareceu uma espécie de melão vermelho, que de fato alguns dos convivas nunca tinham visto. Cor bonita, muito mais que o melão de cor insípida, e quantas vezes de gosto também, e apesar de não ser muito polido cheirar a comida à mesa, havia que fazê-lo face à novidade e ao pedido do comissário. Para dar opinião sobre o paladar tem que se associar o olfato! Cheiro agradável. Provámos, e a todos soube muito bem. Era diferente. Ótima textura, fresco, sabor muito agradável. Está-se mesmo a ver que era mamão, ou papaia, como queiram.
- Digam-me lá a que sabe.
- A mim sabe-me a... flores.
- Tem graça - diz o comissário - ando por aqui há mais de trinta anos e nunca me souberam responder a esta pergunta. Realmente sabe mesmo a flores!
Foi a melhor comparação que consegui encontrar porque todo o aroma agradável normalmente provém de flores. Hoje sei muito bem que sabe mesmo é a mamão!
Algo parecido se passa com um quissange. É um instrumento tipicamente africano, só com cinco notas musicais, sem nada que se lhe possa comparar no chamado mundo ocidental, nem me consta que seja tocado em orquestras ou conjuntos mesmo os modernos. Só pelo povo simples de algumas partes de África, talvez com especial incidência na região de Benguela.
E o som? O som é produzido pela vibração de nove ou dez pequenas hastes de ferro forjado amarradas com arame recozido a uma base de madeira. Numa das bordas dessa base tem, enfiadas num arame mais forte, umas pequenas argolas de folha metálica que recebem a vibração e a transmitem numa espécie de eco. Toca-se com os polegares nessas hastes, como quem toca uma corda de violão, ficando os restantes dedos com o encargo de segurar a base de madeira que se pressiona encostada a meia cabaça, seca, que funciona como caixa de ressonância.
Deu para entender? É difícil. É ver a ilustração.
O som produzido é dolente, tranquilo e suave como a brisa daquele mar generoso de Angola que todas as tardes sopra do mar para terra.
Pouco tempo depois de ter chegado a Luanda, onde desembarquei, fui para Benguela, primeira cidade onde vivi em África. Cidade antiga, fundada em 1617, sede de Distrito, com porto pesqueiro e linha férrea, que naquela época teria poucos mil habitantes. Mar rico, o pescado daquela área era uma delícia! Cidade pequena, plana, calma, e que ficava ainda mais bonita quando a maioria das árvores que sombreavam as suas ruas se cobriam de flores. As Acácias Rubras (flamboyants) que foram tão pintadas, repintadas e cantadas pelos artistas e poetas locais! E ultimamente por visitantes poetas do Brasil!
As acácias em flor !
Cidade que descansava de noite com o silêncio e a brisa fresca vinda do mar.
Centro comercial com sólidas casas que estendiam a sua atividade e influência negocial pelo sertão adentro de onde compravam produtos agrícolas, como milho, massambala, feijão, cera, couros e outros e vendiam panos, alfaias, vinho, ferramentas, e muitas outras coisas. Pode-se dizer que dominavam o comércio de quase toda a metade sul de Angola.
Enquanto não aluguei casa para morar, hospedei-me num hotel que ficava no mesmo prédio do meu local de trabalho. Edifício novo, de dois pisos, sendo o térreo metade comercial, a outra metade com o restaurante do hotel e em cima os quartos. Hotelzinho simples, limpo, confortável.
Durante a noite à entrada do hotel ficava um guarda. Não havia necessidade de guardar o que quer que fosse, porque a vida era muito tranquila. A vida em Benguela era simples.
A primeira vez que me sentei numa esplanada para beber uma cerveja, ainda só importada porque não havia fabricação local, alemã ou holandesa, St. Pauli Girl ou Heinneken, as mais comuns nessa época, quando perguntei quanto devia, o criado, que não sei se alguma vez me tinha visto, traz-me um pequeno bloco de folhas em branco e um lápis.
- Para que é isto?
- P’ra pô na conta.
- Para pôr na conta de quem? perguntei brincando.
Mostrou os dentes alvissimos, rindo.
- Na conta do pátrão.
Nesse caso o patrão era eu! Toda a gente punha na conta, e no final do mês peregrinava pelas lojas onde tinha feito despesa, e pagava. Pagavam quase todos, uns com mais pontualidade do que outros, como sempre ocorreu e vai continuar. Raro alguém andar com dinheiro no bolso, e mais raros os que tinham o crédito... desacreditado. Tudo era feito na base da confiança. Imaginem como eram belos esses tempos.
Voltemos ao guarda do hotel. Talvez fosse para guardar a segurança psicológica dos hóspedes. Quem sabe? Ou como diz um poema de Neves e Sousa sobre Benguela que
os guardas da noite só guardam a noite
morna e negra, comprida noite tropical
Sékulo, preto véio, chegava silencioso ao principio da noite e com a mesma humilde mansidão ia embora de manhã.
Sentava-se em cima de um velho luando no degrau da entrada do prédio, encolhido, os joelhos quase encostando nos queixos, e envolto num também já coçado cambriquito ali ficava a noite toda.
Para não adormecer tocava no seu quissange. Música? É difícil chamar música ao que ele tocava. Talvez melodia ou ritmo. Nem isso. Simplesmente sons com uma cadência agradável mas monótona. Sempre muito igual acabava sendo incrivelmente monótono. Um chorinho triste, não o Chorinho musical brasileiro, este sim, alegre, mas, como dizia Vinícius de Morais, um chorinho de velhinho moribundo, né?
A janela do meu quarto ficava bem por cima da entrada. África, calor, no tempo em que ar condicionado estava a dar os primeiros passos no mundo dos ricos, e Angola era dos pobres, só se podia dormir com a janela toda aberta. Apesar dos meus vinte e poucos anos, boa saúde e somente algum nervosismo, normal para quem chega a um novo continente e vai começar nova vida profissional, sem conhecer vivalma naquela cidade, o sono não era tão profundo que não desse para escutar de vez em quando aqueles sons, uma espécie de gemidos, mesmo que suaves, mas sons, ininterruptos, e de timbre desconhecido. Sons que de começo até davam sono, mas o melhor som para dormir sempre foi o silêncio total, depois que se calaram as canções de ninar das nossas mães.
Acabei por ir à janela espreitar o que se passava, e ali mesmo por baixo, um vulto escondido debaixo de um pano, de formato estranho, emitia esses sons. Não disse nada, não fosse interromper a criatividade de algum génio musical, mesmo ignorado pela crítica, e adormeci.
De manhã cedo quando fui matabichar ainda ali estava o músico.
- Bom dia.
- Bom dia, pátrão.
Elogiei a sua aptidão musical, e pedi que me mostrasse o instrumento.
- Como se chama isto?
- Quissange, pátrão.
- Gostei. Toca mais um pouco para eu ver como é, toca?
Sorridente se prontificou. Deve ter sentido o mesmo orgulho de Chopin quando príncipes lhe pediam, por favor, que tocasse para eles! Eu estava curioso para ver como se fazia sair som de tão estranho objeto.
Depois de mais uma pequena exibição, interessante, perguntei-lhe se me venderia o quissange. Hesitou, mas por fim, uma nota já não sei de quantos angolares não teve dificuldade em convencê-lo.
A partir dessa noite o silêncio na rua foi magnifico. Apesar da alguma falta que faziam aqueles lamentos!
Esse quissange até hoje faz parte daquilo a que enfaticamente chamo a minha pequena coleção de recordações, curiosidades, para mim preciosidades, africanas. Meia dúzia, mas minhas, e importantes.
Já depois de estar morando na casa que aluguei, o mesmo guarda, que eu via quase todos os dias por ter o meu trabalho no prédio do hotel, acabou aparecendo com um novo quissange, feito por ele, e assim voltou a embalar as noites de outros hospedes com sono mais pesado e menos interessados em colecionar objetos curiosos.
Escrito em 1997