quarta-feira, 17 de abril de 2024

 

Novo Encontro de Escritores

 Imaginem uma coisa destas: desde há uns seis anos que, volta e meia, sou perturbado durante a noite, com sonhos estranhos, eu que normalmente chego ao fim do dia já todo arróinado (mesmo com “o”), fruto desta longa viagem que começou há um monte de decénios, e a essa hora quando tudo que almejo é cair na cama e adormecer como um justo (que talvez não tenha sido, tanto quanto a consciência me está sempre a lembrar).

Aparecem uns sujeitos, a maioria bigodudos e/ou barbudos, vestidos à moda antiga, que berram comigo porque reuni uma quantidade de ilustres escritores da língua portuguesa para que pudessem ter uma conversinha entre eles, na eternidade fora desta Terra, e ainda por cima, além de terem estado no mais belo mosteiro beneditino de toda a Europa, ainda tiveram a prova de que o planeta continua a dar coisas boas, porque beberam vinhos especialmente selecionados para esse convívio. E alguns até beberam bem!

Zangados comigo por não terem sido convidados!

Faltaram muitos, e alguns especiais para mim, e outros tantos que não tiveram tempo para conversar porque o dia estava a nascer e as suas condições etéreas não lhes permitia ali ficar depois do sol nascer. Além disso o refeitório teria que estar aberto para os monges!

Quando acordo, por vezes meio estremunhado, tento reconhecer quem esteve a perturbar-me, e não consigo recordar nenhum, até porque os sonhos são sempre confusos e precários.

Decidi que tinha que os atender. É evidente que uns tantos desses autores lusófonos são muito interessantes, mas o espaço que disponho para reunir alguns outra vez é exíguo.

Mas esta noite vi nitidamente dois deles que, não estando bravos comigo, muito pelo contrário, foram até de um carinho e ternura especial. Primeiro foi o meu bisavô e homónimo, que tanto escreveu sobre o Brasil, a Amazónia e seus povos, e que me dizia o que fixei:

 - Tu meu muito estimado bisneto, tens que dar um jeito nesses Encontros. Eu mesmo quero voltar a estar com alguns que conheci bem e outros com quem no tempo troquei bastante correspondência. Aqui, onde estou, no éter, não se podem fazer essas coisas. Eu sei que tu tens iniciativa de sobra para organizares outro Encontro. E gosto muito de ir sabendo o que tens feito durante muitos anos para que o meu nome não ficasse mais esquecido.

 E sumiu. O curioso é que escutando esta conversa, aliás monólogo, porque eu nem abri a boca, outra figura cuja cara nunca vi, nem em fotografia, pôs a mão nas minhas costas sussurrando no meu ouvido:

 - Tu, que te interessaste também pela minha vida, e divulgaste muito interessantes atos que pratiquei, tens que me chamar também para esse Encontro. Sou também teu bisavô, João Frick. E sabes que escrevi algumas coisas! Até sobre Camões, polémicas, mas sempre discutíveis.

 Não vi a cara dele, mas sei alguma coisa da sua vida.

E antes de despertar, outra figura se aproxima, barba cerrada, porte digno, que também me quis dizer algo.

- Sabes bem que eu fui o único bisavô que te conheceu. Sou o outro, o Arroyo, a quem a tua mãe tanto queria, e não digas a ninguém mas ela era a minha neta preferida. Tu eras muito bebé, e tanto gostaria de te ter visto crescer, mas... o meu espírito foi chamado para outa dimensão e deixei-vos tinhas tu pouco mais de dois anos. Nada escrevi sobre o Brasil, ou África, que parecem ter sido os temas de maior interesse, já que a história foi bem conversada, mas vê se me dás um cantinho para assistir a um novo Encontro e aproveito para conhecer os teus outros antepassados.

 Moral da história: tenho que arranjar outro Encontro, nova gente, mas resta decidir onde será, com quem e como será, etc., e não posso deixar de chamar os bisavôs. Eles depois que conversem sobre o que quiserem que isso já não será minha responsabilidade.

Vou tentar. Juntar uns tantos de lusófonos, sempre será muito interessante vê-los, nos seus trajes da época, e ouvi-los conversar.

Uma vez que vou fazer isto “a pedido” de meus antepassados, terei que lhes dar um lugar com algum destaque e, já que eles podem aparecer em qualquer lugar, sem terem que reservar lugar em aviões ou foguetes, elegi um lugar aqui no Rio de Janeiro, maravilhosamente adequado: o Real Gabinete Português de Leitura, e, ainda por cima na rua Luís de Camões!

Não cabe muita gente, mas... os etéreos não se chocam uns com os outros!

Em vez de lhes dar vinhos de Portugal... terão um bom café, poderão escolher entre caipirinhas e frutas variadas, e não faltará bom vinho brasileiro, selecionado por um renomado sommelier que irá recomendar e encomendar o necessário (!).

Também estão designadas quatro testemunhas que depois, além de serem os garantes do que acontecerá, farão os seus comentários, e que serão conhecidas pelas siglas ARS, AVC, HBM e TPA.

Conversado, o administrador do Real Gabinete, a quem foi complicado fazê-lo acreditar no Encontro havido há uns sete anos em Alcobaça, finalmente autorizou, disponibilizando as salas, garantido que ficou a segurança e a impecável limpeza posterior, e a autorização para entrarem somente os organizadores do Encontro, dois, e as testemunhas.

Marcada a data para um sábado após saírem todos os funcionários,  para  que  domingo  se  possa  deixar  tudo

impecavelmente limpo e arrumado.

Marcou-se a data, para daqui a uns quantos dias.

Entretanto tive que novamente chamar o São Pedro (que ele não gosta que lhe chamem santo!). Conversa, silenciosa, meditada, que lá no Alto, onde não há santos, é Simão, o pescador, que me dá a entender que podia convidar quem quisesse. Lembrava-se bem do Encontro em Alcobaça, onde ateus, cristão e judeus tão bem confraternizaram. Era só elevar o pensamento que eles viriam, mesmo que alguns, eventualmente, tivessem ainda no seu curriculum eterno algumas pequenas dúvidas, sempre perdoadas, porque amaram  o Outro e foram, na Terra, mal compreendidos.

Tudo preparado - caipirinhas, frutas que alguns talvez nunca tenham provado em vida, e alguns docinhos, como os quindins da Iáiá e os vinhos das boas vinícolas do Rio Grande do Sul, sobretudo o Prossecco que arrefece a garganta e convida ao papo!

Chegou o dia. Entretanto o parceiro que colaborou na organização deste Encontro, decidiu esperar pelos convidados em Lisboa, e descreve assim o aparecimento de alguns:

A sombra amiga do enorme pinheiro manso disse-me que o seu dono há muito ali estava no topo da arriba de Almada, a ver Lisboa na outra banda do Tejo já salgado e quase mar. Abri a cadeira de praia que anda sempre na bagageira do meu carro e sentei-me.  Se Augusto Gil por ali andasse, diria que «nem uma agulha bulia na quieta melancolia dos pinheiros do caminho». Mas não, aquele não era lugar para melancólicos, é sim poiso de sonhadores, com barcos a caminho da esperança e na volta de aventuras.

Estava eu nestas cogitações quando vejo, a certa distância, um homem alto e forte que se aproximava em passo lento e quase solene. Postura de dono de sítio. Estava eu aqui tão tranquilo e vem agora aquele correr comigo daqui para fora. Aguardemos com a calma dos inocentes os convidados que preferirem por aqui passar... com saudade!

E lá vem um.

Nariz proeminente de cana em ângulo recto como os de quem não tem tempo a perder.

 - Já percebi que o Senhor é o dono do local.

 - Esta é a Quinta de Palença que herdei e deixei aos meus descendentes. O meu nome é Fernão Mendes Pinto.

- Eu estou aqui a gozar o panorama e para informar os convidados que o Encontro dos Escritores é no Rio de Janeiro no magnífico Real Gabinete Português de Leitura. É uma beleza. Por favor queiram para lá se dirigir. Vão chegar bem a tempo porque o dia lá está a nascer.

                                                                   * * * * *

Bem cedo estavam a chegar ao Real Gabinete os primeiros convidados, e nós, quietos num canto, à espera.

Já lá estão uns quantos no meio da grande sala, alguns admirados da beleza do lugar, outros que com ela estavam já familiarizados.

Sem quase passarem da porta aguardavam, mudos e quedos os dois organizadores e as quatro testemunhas, que podiam ver e ouvir os convidados, mas impossibilitados de os contatar.

Alguns convidados foram direto tomar um cafezinho e ouviram-se:

 - “Ahhhh! Que saudade!”

 Outros, que não saíram nunca da Europa, estranharam algumas bebidas e frutas que desconheciam, atreviam-se, provavam e se deliciavam, saboreando enquanto se entrosavam com os brasileiros.

 - Que frutas lindas. E que aroma! Delícia.

 

Nota: A continuar, em poucos dias

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