sábado, 20 de abril de 2024

                                          Novo Encontro de Escritores

(Continuação - 2ª Postagem)

O primeiro, ar tímido, que parece nunca foi, dirige-se a Gomes de Amorim:

 - Nunca nos encontrámos em terra, o que eu sempre lamentei, porque poderíamos ter conversado sobre o Brasil que marcou muito a sua vida e parte importante da minha, onde eu deixei algumas obras de que me orgulho. Eu estive no Sul, e a sua vivência mais rica foi entre os índios da Amazônia. Mas o Brasil tratou-me mal e eu retirei-me para Inglaterra. Mais tarde, já no nosso etéreo lugar fiquei encantado em ir vendo que as nossas famílias se uniam, e aí estão descendentes de nós os dois.

 - João Frick eu já não tive tempo de ler o que escreveu sobre Camões, com muita pena, porque foi assunto que sempre me interessou muito, que, como sabe, até cheguei a publicar “Os Lusíadas”, não para corrigi-los, mas sobretudo expurgá-los dos muitos erros dos primeiros que os transcreveram e da “liberdade” que usaram para alterar palavras!

 - Eu sei que continuam a insistir que a primeira edição foi de 1572, é tudo estranho porque a autorização de publicação é de 1571, e em 1572 aparecem duas edições, uma mal copiada da outra ou até ambas copiadas do original manuscrito! Até o frontispício é diferente. Tudo foram cópias, e cópias e copistas... muito se enganam e quando não entendem a letra original  decidem inventar alguma coisa!

 - Eu passei anos a procurar erros e tentar expurgar “Os Lusíadas” desses erros, e publiquei. Foi o segundo livro que eu li, ainda menino, tinha somente 11 anos, e tanto me entusiasmei que em pouco tempo já sabia inúmeros cantos de cor! Mas sabe que também chegou a Lisboa a notícia maravilhosa da sua Sociedade de Emancipação de Escravos no Brasil, com a libertação de quatro escravas. E dessa eu tomei conhecimento na altura. A primeira em todo aquele país que desde há anos vinha lutando, mas... pouco! Quem vai gostar de conversar sobre isso será o André Rebouças, o José do Patrocínio, o meu amigo António Gonçalves Dias, e outros; foi um trabalho extraordinário, uma obra que depois se foi agigantando.

 - É verdade, meus amigos, gostei de ouvir essa primeira conversa, mais ainda porque posso considerá-los “compadres”, já que esses vossos descendentes de que falastes são também meus! Uma neta minha e neta do João, casou com um neto do Gomes de Amorim! Desconhecia esse trabalho do João Frick, mas acompanhei um pouco a vergonha dos “catedráticos” em se arvorarem em “donos” da verdade e da língua portuguesa para criticarem o imenso trabalho do Amorim, que infelizmente também não tive o prazer de ter conhecido na Terra. Conhecia-o bem de nome e fui amigo de alguns amigos dele.

 - Mas eu cheguei a tomar conhecimento do seu trabalho em prol do desenvolvimento do Ensino Técnico, António Arroyo, e até tive notícias suas pelo grande Camilo, com quem parece que fizeram uma pequena viagem de comboio! E mais, era grande a fama das suas ligações com a música, como toda a família Arroyo.

 - É verdade. Eu envergonhado em frente dele, já célebre romancista e eu ainda jovem, mas ele foi extremante simpático!

 Estavam os três bisavôs nesta conversa quando GA abre os olhos entusiasmado e se dirige a um novo personagem:

 - Meu querido amigo, como eu chorei com o teu desastre! Eu que tanto ansiava por cartas tuas, acabei recebendo essa horrível notícia. Talvez nem tenhas recebido algumas das que te escrevi. E eu sempre a pedir-te que me respondesses.

 - A minha vida foi muito corrida e muito sofrida. Corri a Europa em estudo e trabalho e à procura de cura para os males que me afligiam. Nem sempre tinha disposição para escrever e raras cartas tuas me chegaram às mãos. Eu não parava em lugar algum.

 - Eu soube pelo Ferdinand Dennis que te viu em Paris quando saíste do hospital, que estarias a passar mal e tudo quanto desejavas era regressar a casa, ao teu Maranhão. Mas, na viagem, descansaste dos teus infortúnios quando a vida tanto mais tinha ainda para dar. Deixaste-nos poemas que encantam as gerações, como o “Canto do Exílio”, que até dizem que eu quase copiei!

 - Não copiaste nada. Eu só publiquei esse poema no meu livro “Cantos 1” em 1847, e o teu poema, saudoso da tua linda Avelomar, terá sido escrito, como dizes, com 15 anos, na foz do Rio Negro, portanto em 1842. Imagino somente que depois o terás podido polir, se necessário foi!

 Entretanto entra um pequeno grupo que se tinha reunido em frente a Lisboa.

 - Belo, lindo lugar este que os portugueses construíram. Magnífico. Todos sabem como é fácil denegrir o trabalho dos outros. Eu levei séculos a ver, mesmo lá de Cima, como me chamavam mentiroso, para finalmente se certificarem que tudo quanto escrevi nada mais era do que a verdade. Foram milhares os que me leram e só há pouco concluíram que não havia fantasia nem mentira nos meus escritos

- Fernão Mendes Pinto, foste realmente muito mal tratado, até insultado porque te consideravam mentiroso, mas não deixaram de ir publicando os teus trabalhos durante todos esses séculos e era leitura obrigatória nos colégios! A inveja ia minando os deturpados crâneos de gente inferior com pobres graus académicos, que não podiam aceitar que um homem tivesse percorrido e escrito tanto e tão preciso quanto as “Peregrinações” nos deram.

 - Um neto meu, que ainda leva o meu sobrenome, Fonseca, e um dos organizadores deste tão simpático encontro, andarilho pelo mundo já esteve em muitos dos locais a que te referes. E eu, taxado de comunista, que jamais fui, e até muito contra aquele odioso regime, mas anarquista porque não suporto o domínio de quem quer que seja sobre um outro, sempre me deliciei a ler as tuas viagens.

 - Aqueles que pensam, infelizmente raros, procuram a verdade e a coerência, e concluem que a verdade está somente na liberdade. Eu que vivi em Angola e presenciei cenas indignas da triste humanidade também acabei por me considerar um anarquista. Não conseguia assistir a cenas desumanas e manter-me calado. Tive que sair do país por ser contra a administração colonial.

 - Mas os teus livros, Castro Soromenho, continuam a ser elementares para quem quiser conhecer e compreender como eram os tempos de África, no anos 20 e 30 do século XX.

 - Livros que foram ensinamento para os que vieram a seguir. Eu que com o Ernesto Lara Filho fundámos a coleção “Bailundo” para expormos as nossas ideias para uma Angola melhor, e nunca deixei de escrever até ao fim da vida, sempre com Angola na cabeça e no coração, expondo os males da administração colonial e procurando valorizar os elementos nativos!

 - Inácio Rebelo de Andrade, o meu percurso foi menos literário, mas ainda escrevi um pouco sempre com a saudade a querer molhar-me os olhos. Tivemos pelo menos um grande amigo comum, fizemos parte da diáspora dos portugueses que mesmo nascidos em Angola tiveram que sair. Corri mundo à procura dum teto para a família, chegando a sentir-me como o Fernão Mendes Pinto andando pela China!

 - Oh! Guilherme Valadão. Sofreste, mas o pouco que escreveste é de um mestre, filósofo. Enquanto andaste pela Terra, pensaste, faculdade rara, porque a maioria não pensa, diz que “governa” e essa é a causa da razão do atraso dos povos.

 - É certo, daí o anarquismo, hoje sinónimo de destruição, luta, etc., é o modo de pensar de quem realmente pensa. Aqueles que não odeiam ninguém, não destroem obras, não promovem distúrbios, mas os que lutam para transmitir o entendimento, a verdade, que é a liberdade. Muitos assim procederam, e, olhem ali está uma das primeiras médicas portuguesas, considerada anarquista por ser contra instituições de poder que pouco ou nada resolviam. No seu tempo era vedado às mulheres o voto. Viúva requereu ser considerada “Cabeça de casal” porque vivia só com a sua filha, e assim foi-lhe concedido  também o recenciamento. Votou, a única mulher a votar (!) o que foi um escândalo nacional, e mais uma vez os homens alteraram a lei para privar as mulheres do voto. Infelizmente faleceste muito nova, mas foste uma lutadora, Carolina Beatriz Angelo.

 - Tens razão Tomás da Fonseca, não imaginam a quantidade de tabus que tive de combater desde o início até ao final do curso. A começar pelo escândalo de uma jovem solteira observar um cadáver masculino anatomicamente exposto, até aos dichotes de colegas e perguntas embaraçosas de professores… Na prática médica dediquei-me sobretudo à clínica feminina e cada mulher que observei foi menos uma que se teve de expor a um homem que não era o seu marido. Sim, iniciei a banalização da mulher

- Sobre o anarquismo posso contar-vos um caso, curioso, e passado não faz muito tempo. Como sabem, o Jorge (Amado) e eu, logo de entrada fomos comunistas, de que depois desistimos ao ver o descalabro soviético, a expressão máxima do anti anarquismo, mas a minha mãe era anarquista convicta e grande apreciadora do Tomás da Fonseca. Para além de ter todos os seus livros, assistiu a todas as palestras que ele proferiu quando veio ao Brasil. Ela morava conosco no Rio. Apesar das nossas diferenças ideológicas, nunca entrámos em confronto e sempre mantivemos um bom ambiente familiar. Então, o Jorge e eu decidimos fazer uma surpresa à minha mãe e convidámos o Tomás da Fonseca para jantar no nosso apartamento. Então, no dia e hora aprazados, o nosso convidado chegou.  Depois de cumpridos os protocolos das boas-vindas, fui dizer à minha mãe que estava na sala uma surpresa para ela. Não ligou e continuou a ler o que tinha entre mãos. Apenas fez um pequeno gesto como quem diz «Deixa p’ra lá». Desisti e fui pedir ajuda ao Jorge. E, sim, lá veio ela. Ao ver de quem se tratava, solta uma exclamação de espanto, cumprimenta efusivamente o visitante e começam uma conversa entusiástica que nem o Jorge nem eu ousámos interromper. E assim foi até que a hora determinou a chegada de quem vinha buscar o Tomás da Fonseca para o levar ao hotel. Moral da história: nada melhor do que dois anarquistas convictos para calarem dois comunistas militantes.

 - Tu Josué, por te teres dedicado a estudar a fundo o problema da fome, culpa universal dos homens, acabaste por indispor a ditadura militar. Cancelaram-te a embaixada e todos os cargos oficiais, mas não deixaste de ser apreciado por muitos países, onde foste professor, agraciado, reconhecido. Sabendo de casos como o teu, que há aos milhões, quem não deseja o anarquismo?

 - Foi um grande golpe que me deram, mas consegui sobreviver, e hoje ninguém mais sabe quem eu fui, o que estudei, e o que propus. Ainda agora fico perdido não compreendendo porque pelo menos não se ensinam os povos a comer. Seria o primeiro passo, o mínimo, e quase sem custos. Mas a quem interessa? Dará lucro esse trabalho? Toda a gente sabe que as antigas civilizações foram construídas sobre um excedente econômico tão limitado que não poderiam subsistir senão à base de uma extrema desigualdade na distribuição de seus patrimônios. Todas as civilizações foram apenas minúsculas ilhas de cultura, emergindo de um imenso mar de pobreza e de escravidão. A agricultura tem que estar a serviço da saúde coletiva; os considerandos econômicos têm que passar para um plano inteiramente secundário. Se a humanidade deseja sobreviver tem que mudar-se para planos mais elevados. A fome sempre existiu como sempre houve pobreza e miséria ao lado de pequenas ilhas de riqueza e luxo, que emergem de um imenso oceano de pobreza e escravidão. Enquanto os governos não se interessarem, a fome do mundo nunca acabará.

 - Tens razão, Josué de Castro. Toda a razão, e, sendo tão fácil e simples, parece impossível porque não se avança nesse sentido.

 - Josué, muito me impressionou o teu profundo trabalho sobre a Fome, a Geopolítica da Fome, e foi talvez essa importantíssima obra que me inspirou a escrever “Morte e Vida Severina!

- E é o mais realista e ao mesmo tempo o mais triste retrato do Brasil. Ninguém lê esse poema e fica com os olhos enxutos. E hoje que o Brasil exporta alimentos que vão tirar da fome quase dois bilhões de seres humanos, continua a ignorar umas dúzias de milhões de brasileiros que comem mal, às vezes, quando comem! Até quando?

 Aproxima-se devagar um africano, bem escuro, baixinho, cabeça muito redonda, batina branca e ar humilde.

 Depois que mudamos para a Vida Eterna acabamos por saber quem são todos os que nos rodeiam, mesmo os que não conhecemos na Vida Terrena, mas de qualquer maneira, devo dizer que estou aqui sem convite, e por isso vou já embora. Nasci e cresci num país colonial sempre com o estigma do colono, da administração colonial e tendo quase entrado na luta armada. Mas eu era já cónego, queria lutar, sim, pela paz e justiça. Um dia comecei a ter algum contato com indivíduos brancos, e contra as minhas expectativas fui muitíssimo bem recebido por todos. Olha, Gomes de Amorim os teus descendentes, ainda pequenitos, que ali viviam, gostavam tanto de me ver quando ia a casa deles que me chamavam de “tio”. Foi quando eu realizei que o problema não era a pele, eram os governos, as instituições, a ganância. Mas, nem a luta armada, nem o anarquismo conseguem consertar o mundo. Depois da independência, fui Arcebispo de Luanda, e quando pensava que tudo se ia começar a consertar, o novo governo, esmagado pelos comunistas, fez tudo quanto podia para destruir a Igreja. E não eram brancos. Foram anos de grande sofrimento e tristeza. Lutei, mas era uma luta em tremenda desigualdade. Adoeci seriamente e tive que resignar. Não adianta ser anarquista, comunista ou capitalista, se não começar por reconhecer no Outro um seu igual. Cristo foi o maior anarquista, mas só lutou com a palavra e o exemplo.

 Quando terminou o que tinha para dizer, desapareceu.

- De quem foi esta Alma grande?

- Dom Eduardo André Muaca, Arcebispo de Luanda e muito amigo de um dos que organizaram este Encontro. Uma figura notável.

A continuar... mais umas 4 ou 5 postagens

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