O RETORNO DE DEUS
(escrito em 2010)
No
pequeno lugar ao sul de Inglaterra, Clayton, West Sussex, na sua simpática e
simples “cottage”, casa típica das áreas rurais inglesas, Peter vivia com sua família,
mulher e um casal de filhos na faixa dos
Homem
tranquilo, decidido e enérgico profissional, bom chefe de família, tinha,
aparentemente, tudo para estar de bem com a vida. Aos domingos acompanhava a
família ao serviço religioso, na antiga e linda igreja St. John Baptist, uma
preciosidade do século 11, e sempre de lá saía cumprimentando os vizinhos,
amigos e o pastor, mas com a estranha sensação de ter simplesmente perdido
tempo.
O
ambiente da igreja, com afrescos belíssimos, que ele conhecia desde há muitos anos,
e os sermões do pastor, não lhe diziam quase nada, mesmo procurando estar
atento, e isso acabou por se tornar para ele uma preocupação.
Num desses domingos, um lindíssimo dia de primavera, primavera com aquelas cores que só a Europa do Norte tem, nem um único fiapo de nuvem nos céus, tempo fresco, o ideal para gozar a beleza do mundo.
Peter
deixava o seu pensamento correr ao sabor daquela tranqüilidade, e teve então um
quase sobressalto que de há muito mexia com a sua cabeça: “Se Deus existe,
porque será que eu nunca me apercebi da Sua existência! Quanto gostaria de ter
um sinal, qualquer que fosse!”
Naquele
instante, do limpissimo céu claro, caiu um raio seguido de um trovão com um
poder imenso. Peter, na sua semi sonolência, não esperava tamanho estrondo e quase
cai da cadeira! Olhou em frente e viu que o raio atingira exatamente aquela máquina
abandonada e que a fizera
Peter
temeu! Seria este o sinal que ele esperava que o tal Deus lhe mandasse? A
verdade é que não havia nos ares a menor condição de formação de trovoada, e o trovão
deu-se assim que ele “pedira” um sinal. Ficou abalado. Que “sinal” estranho
aquele!
Não
conseguiu almoçar nesse dia, mal falou com a mulher e filhos deixando a família
receosa que algo estivesse a afetar a sua saúde. Quiseram levá-lo ao hospital,
mas ele respondia que estava bem. Podia estar bem, mas parecia um estranho no
seu próprio ambiente!
No
dia seguinte voltou à rotina de ir pegar o trem, mas ao chegar à estação
sentiu-se pouco firme, cambaleando, a custo voltou para casa e avisou a empresa
de que não estava passando bem. Jamais faltara por essa razão de modo que, se
profissionalmente isso não o afetava, os colegas e superiores ficaram
preocupados.
Assim
que entrou em casa foi sentar-se na mesma cadeira onde na véspera assistira ao
estranho fenômeno, e ali esteve quase todo o dia à procura de compreender o que
se tinha passado. Queria reagir, sair daquela espécie de torpor, e decidiu que
no dia seguinte, sentindo-se bem ou mal, teria que voltar ao trabalho.
Voltou.
O dia correu-lhe pesado, e até os colegas estranharam o seu silêncio e quase
absentismo. Não parecia a mesma pessoa, jovial, comunicativa. Como na véspera
avisara que não se sentia bem, o que era verdade, pensaram que seria ou o
começo ou final de algum resfriado mais forte.
No
final do dia, como de costume, saiu depois de todos os outros, e foi para Victoria
Station pegar o trem de volta a casa.
Sentado
num canto da carruagem, procurava nas páginas do “Evening Standard”, que sempre
lia nas viagens de regresso, algo que ocupasse a sua mente cansada, baralhada, nem
ele mesmo sabia exatamente por quê.
Na
sua frente sentou-se uma mulher jovem, muçulmana, a cabeça coberta com o tradicional
hijad, e ao seu lado um homem de origem africana, de meia idade, folheando
também o mesmo jornal.
A
viagem durava habitualmente hora e meia; dava tempo para, muitas vezes, ainda
cochilar um pouco, mas nesse dia era no jornal que procurava distrair-se.
Pouco
tinham andado, talvez trinta ou quarenta minutos e, de repente, um estrondo
imenso, atirou com todos os passageiros para fora dos seus lugares, sentiam-se
ferragens a torcer e a gemer até que a carruagem finalmente parou, fora dos
trilhos, e inclinada sobre um dos lados.
A
composição tinha-se chocado com outra parada irregularmente na mesma linha! Em
Redhill.
Ouviam-se
gritos de dor e pedidos de socorro. Grande desordem e caos dentro de cada
carruagem. Peter foi projetado nem ele mesmo percebeu para onde e como. Deve
ter perdido os sentidos por alguns momentos e quando começou a ter consciência
da situação, percebeu que tinha havido um grave acidente. Sangrava, mas nem
percebia de onde. À sua volta corpos espalhados, contorcendo-se e sangrando.
Perto, com um profundo golpe na cabeça, reconheceu a mulher que vinha sentada
na sua frente. Deslocando-se com dificuldade e muita dor em todo o corpo,
procurou ajudá-la. Com o seu casaco improvisou uma espécie de almofada onde
deitou a cabeça da mulher, depois de ter afastado o véu, rasgado, deixando à
vista uma ferida grande. Com palavras calmas ajudou a mulher a agüentar o
sofrimento e ajeitou-a num canto da carruagem.
O
homem que vinha a seu lado, jazia também, sem sentidos, uma perna torcida.
Tinha uma grave fratura exposta! Peter rasgou a sua camisa e fez um torniquete
na perna do desgraçado que sofria horrivelmente.
Ajudou
ainda alguns mais até que exausto se sentou num canto, aguardando socorros, que
não tardaram. Todos levados para o hospital mais próximo, Peter só pensava por que
razão ele havia socorrido primeiro uma mulher muçulmana e um negro! Podia ter
ajudado uns outros quantos, mas foi a esses dois que dedicou a pouca energia
que conseguiu reunir até cair exausto.
No
leito do hospital voltou a pensar que tudo quanto lhe estava a acontecer eram “coincidências”
demais! Primeiro o raio e o trovão, e depois o auxílio que prestara tão imediato
àqueles dois que considerava “semi” estrangeiros!
Seria
tudo aquilo “obra” de Deus que lhe queria mostrar que a vida só tem valor
quando a dedicamos, desinteressadamente, aos outros?
Tão
logo teve alta do hospital foi direto a um lugar sossegado, silencioso, a sua tão
antiga e bela igreja e, meditando com humildade, foi-se apercebendo que o “tal”
Deus, afinal, lhe dera um recado completo!
12-abr-10