Andanças
pela Europa - 1
Já
escrevi que foi uma viagem difícil e extremamente cansativa para os dois velhinhos.
Mas ainda deu para guardar alguns momentos, mais ou menos prolongados, que nos
encheram de alegria e de gratidão.
Não vou
fazer um relato cronográfico – não é um relatório – mas só lembrar e registar
(registrar!) alguns casos e/ou encontros especiais. Começo com este, mas tem
mais.
Há alguns
anos, pelo menos dúzia e meia deles, por razões que devo ao meu amigo Luis
Carlos Santos, comecei a interessar-me pelo Prof. Agostinho da Silva, de quem
até hoje sou profundo admirador, que me endossou para a Associação Agostinho da
Silva, ao cuidado da sua secretária.
Gentilíssima,
desde aquele instante foi-me esclarecendo e enviando publicações do tão grande
e famoso Professor, e mesmo que só através de e-mails, criámos uma ligação de
entendimento que se firmou em amizade.
Essa
Senhora veio há uns anos ao Rio de Janeiro, para um colóquio sobre autores
portugueses, e tivemos ocasião de nos conhecermos pessoalmente, mesmo num muito
curto espaço de tempo, nos intervalos das sessões do colóquio
Mantivemos
todos estes anos muita troca de ideias, sempre me tratando com o maior carinho,
e só voltamos a ter contato pessoal, este ano de 2022! Era importante não
faltar ao convite. E foi.
Entretanto
vim a tomar conhecimento que estava casada com um jornalista, grande escritor, que
fui conhecendo com a modernidade do whatsapp, e que (há uns três anos) muito
amavelmente me enviou uns quantos dos livros que escreveu, de que muito, muito
gostei (pelo menos três comentados neste blog em 2019), e que já considerava fundamental
ser também um dos amigos a ter que abraçar.
Na ida a
Portugal um dos primeiros objetivos era estar com este casal que ainda por cima
nos havia já convidado para passar uns dias em sua casa.
É difícil
referir o quanto nos soube bem aquele tempo, infelizmente pouco, que passámos
(minha mulher e eu, e até o nosso secretário-geral, o filho Luis) naquela
casa.
Abraçámo-nos
como amigos de sempre, sabendoque a amizade não é obrigada a datas de nascença,
mas a postura e pensamento que se alinham e respeitam.
Receberam-nos
com uma cordialidade, lhaneza e à vontade, que se a amizade já existia (quase
toda via internet!) a verdade é que nos deixou uma saudade imensa e o coração
cheio de carinho. Lembro uma frase do grande Solnado quando esteve no Grande
Hotel da Huíla, há... muitos anos: “Levo as minhas malas cheias de saudade”!
E não foi
só a amizade que se evidenciou: recebi mais uns livros do jornalista, que num
deles escreveu uma dedicatória que só consegui entender depois que li o livro
“Azimute de Marcha”, escrito ainda em Moçambique em 1973 (2ª edição em 1988).
Diz a dedicatória; “Para ... ler devagar e
recordar a terra onde aprendemos a filtrar o sol quando
o negro negro brilha e o futuro já
foi.”
Assim que
cheguei a casa comecei a lê-lo. Não consegui. Cheguei muito cansado, a cabeça
esgotada e nem devagar estava em condições de captar o que o livro nos queria
transmitir, quase sem alcançar também a própria profundidade da dedicatória.
Tive que esperar alguns dias.
E
deparei-me então com um livro de poemas. Não poemas tipo Fernando Pessoa ou
Carlos Drummond de Andrade, os dois grandes poetas da nossa língua, mas gritos
de alma de quem estava a viver o terror de uma guerra de horrores sem nada
poder fazer. Só assistir.
Tinha que
ler devagar. Muito devagar. Reler. Procurar sentir em cada palavra uma alma em
gritos de desespero quando se vê rodeada por uma loucura insensata,
despropositada, bruta, e até por vezes covarde.
Um dos
livros de maior profundidade que li em toda a minha vida.
Um livro
que fere pela profundidade e frieza daqueles gritos.
Se entre
nós já existia uma amizade e um respeito mútuo, passei a conhecer um poeta
ainda hoje ferido pelo que viveu, e que teve a gentileza de ser, aliás ser o
casal, duma amabilidade e carinho para conosco que jamais poderei esquecer.
Moram numa
área que dantes era considerada terra de saloios, hoje cheia de belas moradias
e até prédios – como aliás por toda a parte – área que eu conheci bem porque
ali ao lado o meu avô materno teve um casal. (Tinha gasto o muito dinheiro que
ganhara na vida, comprara um pouco de terra junto a uma parte de uma jovem “saloia”,
mais nova do que ele uns trinta e tantos anos, e ali viveu os últimos anos da
sua vida.)
Região bonita, plana, saudável, tranquila, uma dúzia de kms a norte da
Ericeira. Barril. A 1.000 metros dali está a Assenta onde o meu avô morou, e
quis lá ir ver. Já lá não ia há mais de 60 anos!!! Era uma povoação rural, hoje
cheia de belas casas, ruas comerciais, prédios, etc.
Ali a
nossa hospedeira quis apresentar-me uma pessoa que possivelmente teria algum
conhecimento desse avô. Assim que me apresentou ele perguntou em que dia e ano
eu tinha nascido e uns segundos após diz-me: numa segunda-feira!
E foi
mostrar-me onde tinha sido a casa do avô, que entretanto demoliram e tem hoje uma
bela “maison”.
No
caminho, sem que alguém lhe pedisse, com voz baixa, pausada, sentida, foi
recitando um poema que me deixou comovido.
Um homem
de idade, aí meio século, modesto, modestíssimo, humilde, que me levou a
África onde encontrei muitos homens, sobretudo de idade mais avançada, homens
simples, humildes, que nos deixaram aquela terra penetrar fundo nas nossas
almas.
Um homem
de vida muito modesta e de alma muito grande, que teve depois o cuidado de
passar a papel o poema que recitou e mo mandar.
Uma beleza.
Obrigado
meu amigo José Ferreira. Jamais o esquecerei.
Toda esta
extraordinária vivência ficámos devendo aos nossos anfitriões, Helena Briosa e
Mota, especialista em Agostinho da Silva e ao muito carinho que demonstrou e ao
GRANDE poeta Ricardo de Saavedra, nascido no Norte de Portugal, mas africano de
alta vivência e muito sofrer, com quem teríamos podido conversar dias e dias
sem fim, a quem seria ofensa dizer-lhes “Obrigado”. É pouco demais.
Importante:
Muito
perto destes amigos vive um “jovem”, já perto da minha idade, com a saúde
abalada, que foi meu colega de trabalho entre os anos 65 a 69.
Consegui
encontrá-lo e passarmos uns curtos, curtíssimos, momentos juntos.
Um rápido
recordar desse tempo, a forma como sempre nos entendemos tão bem, uma rápida
ideia do que cada um passou pós Angola, e a certeza de que o respeito mútuo e a
amizade que criámos nesse ido tempo, continuam a dar-nos a certeza de que tudo
se transformou em amizade, mesmo tendo estado mais de meio século sem nos
vermos.
Foi
gratificante. No abraço de despedida ambos saímos com os olhos marejados.
Como é
bom ter amigos e mantê-los, mesmo longe, sem nos vermos, por tantos anos.
Saúde,
amigo Guilherme Valadão. Um outro dia nos encontraremos, com mais vagar, nem
que seja para “jogar conversa fora”, mas continuarmos a ter a certeza que só na
amizade existe a paz.
Obrigado
pelos momentos que me ofereceu.
24/03/22