O SOLITÁRIO
Depois
que me mandaram para casa, aposentado, velho imprestável, tenho saído pouco de
casa, pelo menos para andar pelo bairro, e agora, bem menos. Uma das coisas que
gosto de fazer é tentar uma conversinha com alguém, desconhecido, normalmente
com vendedores ou vendedoras de lojas várias, e muitas vezes com gente,
simples, que encontro no supermercado. Aconselho um vinho, peço orientação
sobre o melhor peixe, e sempre recebo em paga um belo sorriso. Também não
esqueço o que aprendi no primeiro terço do século passado: dar sempre
prioridade a senhoras, ricas ou pobres, velhas ou mais novas, brancas e
escuras.
À entrada
ou saída, por exemplo do banco, portas rotatórias, sempre digo às senhoras:
“primeiro as senhoras; foi assim que eu aprendi”! Se é gente humilde, a maioria
do bairro, faz um sorriso que parece terem com isso, tão simples, ganho o dia!
Uma manhã
fria, como tem feito aqui no Rio, desde há quase dois meses, sol bonito, em uma
das minhas raras saídas de casa, sem que a pandemia tenha muito a ver com isso,
mas mais a ver comigo que pouco tenho que ir xeretar lá fora, encontrei, mais
de uma vez, um homem idoso, sentado na borda dum baixo muro, olhar longínquo e
triste, sem nada mais fazer do que ali estar.
Gente, e
muita passava por ele, alguns olhavam, outros nem o viam, mas se preocupava.
Era normal ver gente apanhando um pouco de sol, nestes dias em que o frio nos
fez parecer que estávamos no norte da Europa.
Roupa
decente, via-se que não era um mendigo, não falava com ninguém, nada tinha nas
mãos nem um jornal ou um folheto, e imaginei que ali estivesse à espera de
alguém que tivesse entrado numa das muitas lojas daquela lugar, e segui em
frente, mas com um peso dentro de mim que não sabia explicar.
No dia
seguinte tive que passar no mesmo lugar e lá estava o homem. Mesma posição,
mesmo olhar para lugar nenhum. Estava ali, simplesmente.
Fui buscar
o resultado de umas análises a um laboratório e quando voltei continuava o homem,
imóvel. Quase uma estátua.
Parei ao
seu lado, nem me olhou.
Perguntei
se estava bem, se precisava de alguma coisa. Agradeceu, disse que não precisava
de nada.
Sentei a
seu lado e comecei a “puxar” conversa, inclusivamente convidando-o para, mesmo
ali em frente irmos tomar um café ou um suco de frutas. Podíamos nos sentar
numas cadeiras. Gosto de conversar com esta gente, e por vezes aprendo muito,
Agradeceu
novamente e disse que estava bem, para onde vinha habitualmente, quando o tempo
permitia, e que o sol que fazia lhe estava a saber muito bem.
Fiz-lhe
algumas perguntas como, se se estava a sentir bem, se precisava de ajuda,
doente, idade, família, etc., a que ele foi respondendo com cortesia, parecendo
que ia ficando mesmo mais animado, porque no seu olhar aparecia já algum
brilho.
Conversa
vai e vem, disse-me que tinha nascido no Rio, o pai era português da região das
Beiras, estava com 89 anos, casara, teve vários filhos, todos espalhados pelo
Brasil, e que hoje só um, desquitado, é que vivia com, ele, mas continuava a
trabalhar. E ele, ficava o dia todo sozinho em casa. Quando o tempo e as pernas
lho permitiam, saía para dar um giro, gostava daquele canto, gozando o sol que
lhe sabia muito bem, coisa que raramente tem acontecido nesta cidade, que
normalmente, mesmo no inverno, é quente.
Quando o
vi mais animado tornei a convidá-lo para tomar um café. Aceitou.
Sentámo-nos
numa mesinha, ali na calçada e o bom idoso (da minha idade) começou a
desenferrujar a língua.
Contou-me
onde morava, numa rua ali perto, onde tinha estudado, por onde andou na vida
profissional, aposentou-se com 60 anos mas trabalhou mais quase 15, e hoje, com
as forças a faltarem, nada fazia. O maior trabalho que tinha era encarregar-se
de preparar alguma comida para, à noite, ele e o filho jantarem. Coisas leves.
O que
recebia de aposentadoria dava-lhe para viver, evidentemente sem luxos, mas o
grande problema era o isolamento, pior ainda quando o abrigavam a andar de
máscara e, pior, o tempo que teve ficar em casa – quase um ano – que lhe davam
a sensação que o tinham ali deixado para que morresse!
Eu também
lhe fui dando alguns dados da minha vida, tão longa quanto a dele, o quanto
tinha sido, e ainda deste maldito confinamento, que tinha dificuldade em me
entreter, em ver o tempo passar sem poder contatar com frequência filhos e
netos, mas que estava esperançado que este Covid, que veio para ficar, dentro
em breve a vida das pessoas voltaria a ter a mesma liberdade de sempre.
Em
política não se falou, um pouco de futebol, porque ele não deixou de se
manifestar que sempre fora torcedor “Vascaíno”, onde o seu pai chegou a jogar!
Eu que pouco sei de futebol, e não torço por clube nem país algum, só pelos que
ganham, por aí a conversa não avançou.
Um pouco
mais de uma hora se passara, e eu tinha que regressar a casa. Perguntei-lhe o
nome, Viriato Pereira. Ainda comentei que beirão de verdade tinha mesmo que
recordar o grande Viriato!
Antes de
me despedir perguntei-lhe se aceitaria ir num próximo dia almoçar em minha
casa. Sem cerimónia alguma, que é coisa que na nossa casa não se usa!
- Podemos
beber uns copitos de vinho, lá da “terrinha”. O senhor gosta, não?
- Gostar,
gosto, mas não posso beber muito.
- Nem é
preciso. E que tal um bacalhauzinho “à Gomes de Sá” que é tão fácil de comer?
- O
senhor está a estragar-me com mimos!
- Não. Eu
gosto de companhia, e um almoço com amigos sabe sempre melhor.
Hesitou
em responder, com cara de espanto. Sosseguei-o, dizendo-lhe que o ia buscar no
meu carro, nos daria muito gosto, poderíamos continuar o nosso papo, beber um copito
de vinho – português – e o bom Viriato, depois dizer várias vezes que não
queria dar trabalho, nem incomodar, acabou por aceitar.
Marcámos
para dois dias depois. Deu-me o seu endereço que anotei numa folha de papel.
Despedi-me
dele e dei-lhe um abraço, que pareceu que ele tinha gostado, e ainda lhe disse:
- Seu Viriato,
foi um prazer conhecer o senhor e conversar consigo. Depois de amanhã, pelo
meio dia, passo em sua casa.
Não sei
se voltou para o seu “assento” apanhar mais um pouco do gostoso sol.
Ao chegar
a casa contei o encontro à minha mulher e pedi-lhe que preparasse um almocinho
simples, leve, porque o bom Amigo me pareceu um tanto debilitado.
No dia
aprazado lá vou à procura da rua, rua de uma só “mão”, que me fez dar uma volta
bem maior do que se tivesse ido a pé, e ao chegar, vejo que havia gente
entrando e saindo da casa.
Estranho!
Parei o
carro e aproximei-me. Logo na entrada pergunto se era ali que morava o senhor Viriato.
Era, sim.
- Era?
- Era,
sim. O meu pai. Faleceu esta noite. Estava muito animado porque um senhor que
conhecera ali na rua o tinha convidado para ir almoçar em sua casa. Foi-se
deitar desejoso de ver chegar a manhã para ir a esse encontro. Mas durante a
noite faleceu, tranquilo. O senhor conhecia-o?
- Um pouco,
sim. Vinha até saber se ele estava bem.
Não tive
coragem para dizer mais nada. Duas lágrimas passaram pela minha cara.
Voltei
triste para casa. Sozinho, mas quase a pensar que teria proporcionado um fim
menos doloroso à solidão daquele homem, o que me deixava envergonhado. Parecia
que me queria enaltecer.
Nada
disso. Foi um amigo simples, simpático, que conheci, conhecimento que poucas
horas durou.
Fiquei
bastante abalado.
Descanse
em Paz, amigo Viriato.
19/07/2021
QUANTOS HÁ !!! Abraço
ResponderExcluirMas que pena o desenlace, ficámos sem saber o que teria sido interessante saber do percurso da vida do seu Viriato. Abraço.
ResponderExcluirTio Chico obrigada pela partilha, comovi-me.....um abraço e este senhor que sorte teve com a sua solidariedade. Bjs grandes
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