ERNESTO LARA
Quem não o conheceu pessoalmente, pode ir fazendo
uma ideia da sua personalidade, através de alguns textos e poemas que nos deixou.
Foi um amigo, coração grande, e sempre ótima
disposição. Angolano a mais de 100%. Na sua querida cidade do Huambo, foi
atropelado e faleceu na hora. 1977.
Hoje dois poemas. Sempre de grande sensibilidade.
Merecem ser lidos mais do que uma vez.
Caminhos dos Musseques
Caminhos dos musseques
lá onde a areia entra pelos sapatos
daqueles que têm sapatos
lá onde o sol se filtra pelas fendas
pelos buracos dos pregos
dos tetos de zinco.
Caminhos antigos.
Caminhos antigos como o Mundo.
A cidade empurrou os musseques
e o cacimbo caíu mais de mansinho
escondendo as figuras esguias
e os rostos de chumbo.
Lá
onde a esteira cobre o chão varrido todas as manhãs
lá
onde a fuba substitui todas as claridades
lá
onde a cerveja escorre pouco
porque não há dinheiro de comprar.
Caminhos antigos
onde a eletricidade começa a fazer circular
"idéias estrangeiras"
onde os motores dos carros
acordam as madrugadas das crianças
que antigamente ouviam passarinhos.
As fendas, os muros, os tetos
os buracos dos caminhos
esboroando-se no passado
alcatrão penetrando e desmentindo a mudança
cimento e cal erguendo os muros cinzentos das fábricas
saias lutando contra os panos das velhas
telefone até.
Nas almas... um grande vazio
preenchido pelos merengues que vêm de fora.
Lá - caminhos da vida
Lá no mato. Lá no campo. Lá na floresta. Lá no estrangeiro.
Lá onde se nasce, vive e morre todos os dias
com kambaritókué ou sem ele
com um lençol simples ou uma vala comum
morrendo apenas é que tudo acaba.
A vida tem de ser dignamente vivida.
Vamos juntar as nossas cobardias
os nossos sofrimentos
as nossas ansiedades
nossas angústias
nossos sorrisos
nossos sarcasmos
a nossa coragem
nossas vidas.
Vamos
Lá - no musseque - areais vermelhos
onde passam os caminhos da vida
e vamos dizer
corajosamente
às crianças que esperam o nosso exemplo
que este quintal
tem de ser estrumado com sangue
adubado de sofrimento
cultivado com as dores
mangueiras
anoneiras
gindungueiros
frutificando ao sol e ao luar
para quê dizer mais versos
que só o povo entende?
(Antologia de poesia da Casa dos Estudantes do Império. Deve ter sido
escrito nos anos 60)
HUAMBO
a que depois de Stalinegrado, Barcelona,
Madrid, Londres,
também foi metralhada.
Depois das grandes cidades, também há
pequenas cidades.
Viemos encontrar-te destruída, na paz das
tuas ruas mortas,
desertas, mas não conformadas.
No teu arquejo de vida mais forte do que o
estoiro
dos morteiros e das bazookadas.
A tua fria vontade de resistir.
HUAMBO,
das casas abandonadas, de portas
arrancadas,
vidros partidos, destelhadas,
as belas cidades do Mundo contemplam-te com
tristeza
e silêncio,
débeis em face do teu pavoroso sofrer,
mesquinhas no seu esplendor de mármores
salvos e rios
não profanados com o sangue dos mortos,
as pobres e prudentes cidades, que se
entregaram sem luta,
aprendem contigo o gesto do fogo.
Também elas podem esperar.
HUAMBO,
quantas esperanças!
Que felicidade brota das tuas casas?
De uma apenas resta a escada cheia de
trampa,
de outras um cano de água partido, uma
torneira,
nem uma bacia de criança.
Não há livros para ler, nem um teatro, um
circo,
nem trabalho nas fábricas.
Uns morreram, outros estão estropiados,
os últimos como nós escrevem em
pedaços de parede
onde escrevem o que sentem.
Mas a vida em ti é prodigiosa, começaram as
chuvas,
está tudo a reverdecer, os insectos pululam
ao sol,
oh meu querido HUAMBO de menino, das
goiabeiras,
das pitangueiras, das mangueiras, dos
milharais,
dos mandiocais, dos morangais,
apalpo as tuas paredes, os muros das tuas
casas
desmanteladas,
caminho solitário pelas tuas ruas
Vejo as tuas crianças passarem de batas
brancas
para as escolas
uma criatura que não quer morrer e combate
nas bichas do pão, do óleo, da farinha de
milho e de bombó,
uma criatura que não quer morrer e combate
contra o céu, a chuva, as intempéries, o
metal das balas,
a lâmina das catanas traiçoeiras,
contra outras criaturas que combatem, que
nos combatem,
combatemos contra o frio, a fome, a noite,
combatemos sempre
Em teu chão regado pelo sangue dos que
tombaram,
onde apodrecem cadáveres,
hão-de florir dálias roxas como as que
colhi ontem
no meu quintal .
Ernesto Lara Filho Dezembro de 1976