Há quase 70 anos
É
um pouco estranho de repente virem à memória histórias passadas há... bem mais
de meio século. Histórias que não foram notícia, não divulgadas, nem nos
jornais nem na rádio, já que televisão, nesse tempo, felizmente não havia, o
que nos permitia passar as horas de folga, os intervalos das aulas, a jogar o
futebol, o pingue-pongue (tênis de mesa, em Terras de Ver a Cruz), conversar e
mais tarde já homenzinhos, quando o tempo permitia, andar um pouco pelo campo,
na conversa ou a rever alguma matéria!
É
estranho, mas agradável porque conseguimos recordar colegas que perdemos de
vista mas continuaram a ter o seu cantinho no nosso coração, a maioria deles
que estará já “lá” em cima à nossa espera, e vai dar risada quando “se lembrar”
de algumas aventuras que vivemos juntos.
Nós
tínhamos um professor extraordinário. Um homem bom, inteligente, educado,
simpático, dono de uma boa propriedade agrícola, engenheiro agrónomo,
pesquisador, enfim, uma figura por quem todos tinham o maior respeito e simpatia.
Mas
distraído como ele, não recordo ninguém; sempre aproveitámos para fazer alguma
brincadeira. Por exemplo: ele via um de nós, alunos, a ler um livro, perguntava
se era bom e se lho emprestávamos. Claro que sim. Mas a malandrice era fingir
que tínhamos um livro bom mas que era uma porcaria qualquer, tipo romance
barato! Ele pegava no livro, começava a ler, e logo via o logro. Deixava-o no
primeiro lugar que calhasse, e depois ainda vinha perguntar porque nós líamos
aquelas porcarias!
- Não lemos, senhor engenheiro. Foi
uma brincadeira!
Lembro
que fumava os cigarros mais baratos que havia naquele tempo – Definitivos – a
que chamávamos, para dar um ar de importância “Definitaives”, à inglesa.
Durante
as aulas, nunca deixava apagar um cigarro que estivesse a fumar; acendia um
novo no que estava gasto, apagava este no cinzeiro e guardava a beata (as guimbas)
numa das gavetas da mesa do professor. Nós tentávamos contar quantos cigarros
fumava, mas para não perder a atenção à aula, perdíamos a contagem! Um dia, no
fim da aula fui abrir a gaveta e contar as tais beatas! Não lembro quantas
eram, mas muitas!
O
professo viu-me a fazer aquilo e, antes de sair da sala, perguntou-me: “Já contaste? – Já. – Bem, da próxima vez,
em vez de brincares com estas coisas, toma mais atenção na aula!”
O professor vivia na sua herdade em Monforte, também
no Alentejo, a uns 75 quilómetros de Évora.
Ía
para a Escola de Regentes Agrícolas, na Herdade da Mitra, às segundas feiras à
noite, e regressava a casa quinta, ao fim do dia.
O “Colégio Velho” – Uma jóia
Onde
está a capela e o claustro do antigo Convento do Bom Jesus de Valverde
Sempre
de autocarro entre as cidades, tomava o seu cafezinho da noite no vetusto Café
Arcada, e depois ia procurar o taxista favorito, o Zigoni, que tinha, no final
dos anos 40, um belo Plymouth cinza. Atencioso, levava-o à Mitra, mais 12
quilómetros, e como nem sempre o professor levava a esposa, sempre o Zigoni
perguntava se a senhora estava bem. Aquelas amabilidades triviais.
-
Ficou muito bem obrigado!
Alguns
quilómetros andados...
-
Pára aí, Zigoni. Volta atrás. Esqueci a
minha mulher no Café!
Voltaram;
a senhora, que conhecia bem o marido não estava preocupada!
Era
professor de hidráulica, mecânica e máquinas agrícolas, três das disciplinas
que eu mais gostava e, sem querer fazer figura, sempre tirava notas altas, e
foi por aí que segui a minha vida profissional.
No
último ano em que tínhamos simultaneamente “conhecimentos” gerais, como
matemática, também era ele o professor.
Aproximava-se
o fim do ano lectivo e, como sempre existe, alguns colegas estavam mancos
nalguma disciplina e arriscavam-se a perder o ano. O José Carrilho era um
deles. Um tio deste, irmão de sua mãe, de sobrenome Gueifão, também fazendeiro
e amigo do professor, foi-lhe dizer que o sobrinho estava mal... e pedir uma
mãozinha. O bondoso professor disse que ia fazer o que pudesse.
Quando
chegou a Évora andou a procurar na caderneta e não encontrou nenhum Gueifão.
Foi perguntar ao Diretor, com quem eu estava nesse momento.
- Quem é o Gueifão? Um tio deste,
e meu amigo veio pedir para ver dava uma mão ao sobrinho, mas não encontro
nenhum Gueifão!
O
Diretor riu-se, todos conheciam bem aquela figura simpática, e eu disse que
devia ser o José Gueifão Carrilho, do meu ano.
- Parece que o rapaz está mal em matemática.
Eu sabia que sim, que estava, e o Zé Carrilho que era
todo “macho” já encarava o perder o ano com a mesma disposição com que encarava
os touros que pegava, e era um grande pegador.
-
O que podemos fazer por ele?
- O senhor engenheiro dá-me duas ou
três questões que lhe queira pôr numa aula, para tentar levantar a nota, eu vou
meter-lhe na cabeça que eu sei que é tradição o senhor sempre perguntar isso,
vou pegar nele ensinar-lhe a solução dessas fórmulas, e daqui a uns dias eu lhe
digo quando ele estiver pronto.
-Boa idéia; concordou o professor.
Meter
isto na cabeça do colega Carrilho foi duro. Ele era macho e teimoso, e eu nem
sequer tinha físico suficiente para lhe bater!!! Mas não o larguei. Ele dizia
que não era capaz, eu dizia que sim, lutámos durante uns dias, convenci-o a não
estudar outros programas da matemática, e quando vi que estava apto disse-o ao
professor.
Na
aula. O professor queria mesmo ajudá-lo mas, para variar, tinha já esquecido
que o nome dele era Carrilho e não Gueifão. Abre a caderneta, vira umas páginas
como quem procura um nome ao acaso para chamar ao quadro, sabendo que só tinha
um objetivo, chama:
-
Gueifão!
O
Zé Carrilho, levanta-se, devagar, apavorado, como quem sai da tumba, e fica
hirto.
-
És tu, o Gueifão?
- Não... não! Falto.
Os
colegas não aguentaram o riso. “Falto” jamais se tinha ouvido!
No
fim da aula, todos tinham saído, fui falar com o professor. Eu tinha-me
comprometido.
- Então o gajo faltou? (Usava muito o
termo gajo, apesar de ser educadíssimo!)
- Não senhor engenheiro. Foi aquele
que se levantou e disse “Falto”!
- E agora? Foi a última aula. Mas
ao menos ele aprendeu o que lhe ensinaste.
- Aprendeu sim. Pode dar-lhe o 10
que ele precisa.
- Vou pensar nisso.
Deu-lhe
o 10, o Carrilho passou de ano, e só uns 30 anos depois, quando juntámos os
colegas do curso, é que eu lhe contei esta história! Creio que ele não
acreditou muito nisto!
Já
no fim do curso prova escrita de Hidráulica, uma das cadeiras minhas
preferidas, e em que tinha sempre a melhor nota de todos (não é gabarolice; em
Entomologia... eu tinha uma das piores!).
Faço
a prova muito rapidamente e atrás de mim o José Ravasco cutucava-me para lhe
passar o ponto porque ele estava quase a zero!
Consegui
escrever tudo num pedaço de papel, passar-lhe para trás, sem o professor ver, o
que é óbvio, entreguei a minha prova e saí.
Esperei
pelo Zé Ravasco.
-
Passaste tudo? Tiveste tempo?
- Tudo. Tens a certeza que estava
tudo certo?
Tinha.
Aguardámos as notas. Eu sempre tinha a melhor nota, estava mais do que
tranquilo. Ele nervoso.
Para
espanto de ambos o Zé Ravasco teve uma nota melhor do que a minha!
Muito
rimos com esse desfecho. Pela vida fora, poucas vezes nos encontrámos mais, por
causa da minha vida de imigrante constante. Mas sempre falámos nisto. E ele
fazia questão me dizer:
-
Eu era melhor do que tu em Hidráulica!
Saudade.
Muita. Dos colegas e de praticamente todos os professores, neste caso do
Engenheiro António José Sardinha de
Oliveira
De
quem sempre lembro com saudade, admiração e carinho.
Página dedicada a este professor no livro de fim do Curso de 1951. Tinha o
professor 39 anos!
27/01/2015
Fumando(não DEFINITIVOS)e rindo, a mocidade passou outra vez pelos meus olhos. Venha mais!
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