quarta-feira, 27 de janeiro de 2016




Há quase 70 anos


É um pouco estranho de repente virem à memória histórias passadas há... bem mais de meio século. Histórias que não foram notícia, não divulgadas, nem nos jornais nem na rádio, já que televisão, nesse tempo, felizmente não havia, o que nos permitia passar as horas de folga, os intervalos das aulas, a jogar o futebol, o pingue-pongue (tênis de mesa, em Terras de Ver a Cruz), conversar e mais tarde já homenzinhos, quando o tempo permitia, andar um pouco pelo campo, na conversa ou a rever alguma matéria!
É estranho, mas agradável porque conseguimos recordar colegas que perdemos de vista mas continuaram a ter o seu cantinho no nosso coração, a maioria deles que estará já “lá” em cima à nossa espera, e vai dar risada quando “se lembrar” de algumas aventuras que vivemos juntos.
Nós tínhamos um professor extraordinário. Um homem bom, inteligente, educado, simpático, dono de uma boa propriedade agrícola, engenheiro agrónomo, pesquisador, enfim, uma figura por quem todos tinham o maior respeito e simpatia.
Mas distraído como ele, não recordo ninguém; sempre aproveitámos para fazer alguma brincadeira. Por exemplo: ele via um de nós, alunos, a ler um livro, perguntava se era bom e se lho emprestávamos. Claro que sim. Mas a malandrice era fingir que tínhamos um livro bom mas que era uma porcaria qualquer, tipo romance barato! Ele pegava no livro, começava a ler, e logo via o logro. Deixava-o no primeiro lugar que calhasse, e depois ainda vinha perguntar porque nós líamos aquelas porcarias!
- Não lemos, senhor engenheiro. Foi uma brincadeira!
Lembro que fumava os cigarros mais baratos que havia naquele tempo – Definitivos – a que chamávamos, para dar um ar de importância “Definitaives”, à inglesa.


Durante as aulas, nunca deixava apagar um cigarro que estivesse a fumar; acendia um novo no que estava gasto, apagava este no cinzeiro e guardava a beata (as guimbas) numa das gavetas da mesa do professor. Nós tentávamos contar quantos cigarros fumava, mas para não perder a atenção à aula, perdíamos a contagem! Um dia, no fim da aula fui abrir a gaveta e contar as tais beatas! Não lembro quantas eram, mas muitas!
O professo viu-me a fazer aquilo e, antes de sair da sala, perguntou-me: “Já contaste? – Já. – Bem, da próxima vez, em vez de brincares com estas coisas, toma mais atenção na aula!”
­­O professor vivia na sua herdade em Monforte, também no Alentejo, a uns 75 quilómetros de Évora.
Ía para a Escola de Regentes Agrícolas, na Herdade da Mitra, às segundas feiras à noite, e regressava a casa quinta, ao fim do dia.

O “Colégio Velho” – Uma jóia
Onde está a capela e o claustro do antigo Convento do Bom Jesus de Valverde

Sempre de autocarro entre as cidades, tomava o seu cafezinho da noite no vetusto Café Arcada, e depois ia procurar o taxista favorito, o Zigoni, que tinha, no final dos anos 40, um belo Plymouth cinza. Atencioso, levava-o à Mitra, mais 12 quilómetros, e como nem sempre o professor levava a esposa, sempre o Zigoni perguntava se a senhora estava bem. Aquelas amabilidades triviais.
- Ficou muito bem obrigado!
Alguns quilómetros andados...
- Pára aí, Zigoni. Volta atrás. Esqueci a minha mulher no Café!
Voltaram; a senhora, que conhecia bem o marido não estava preocupada!
Era professor de hidráulica, mecânica e máquinas agrícolas, três das disciplinas que eu mais gostava e, sem querer fazer figura, sempre tirava notas altas, e foi por aí que segui a minha vida profissional.
No último ano em que tínhamos simultaneamente “conhecimentos” gerais, como matemática, também era ele o professor.
Aproximava-se o fim do ano lectivo e, como sempre existe, alguns colegas estavam mancos nalguma disciplina e arriscavam-se a perder o ano. O José Carrilho era um deles. Um tio deste, irmão de sua mãe, de sobrenome Gueifão, também fazendeiro e amigo do professor, foi-lhe dizer que o sobrinho estava mal... e pedir uma mãozinha. O bondoso professor disse que ia fazer o que pudesse.
Quando chegou a Évora andou a procurar na caderneta e não encontrou nenhum Gueifão. Foi perguntar ao Diretor, com quem eu estava nesse momento.
­- Quem é o Gueifão? Um tio deste, e meu amigo veio pedir para ver dava uma mão ao sobrinho, mas não encontro nenhum Gueifão!
O Diretor riu-se, todos conheciam bem aquela figura simpática, e eu disse que devia ser o José Gueifão Carrilho, do meu ano.
- Parece que o rapaz está mal em matemática.
­Eu sabia que sim, que estava, e o Zé Carrilho que era todo “macho” já encarava o perder o ano com a mesma disposição com que encarava os touros que pegava, e era um grande pegador.
- O que podemos fazer por ele?
- O senhor engenheiro dá-me duas ou três questões que lhe queira pôr numa aula, para tentar levantar a nota, eu vou meter-lhe na cabeça que eu sei que é tradição o senhor sempre perguntar isso, vou pegar nele ensinar-lhe a solução dessas fórmulas, e daqui a uns dias eu lhe digo quando ele estiver pronto.
-Boa idéia; concordou o professor.
Meter isto na cabeça do colega Carrilho foi duro. Ele era macho e teimoso, e eu nem sequer tinha físico suficiente para lhe bater!!! Mas não o larguei. Ele dizia que não era capaz, eu dizia que sim, lutámos durante uns dias, convenci-o a não estudar outros programas da matemática, e quando vi que estava apto disse-o ao professor.
Na aula. O professor queria mesmo ajudá-lo mas, para variar, tinha já esquecido que o nome dele era Carrilho e não Gueifão. Abre a caderneta, vira umas páginas como quem procura um nome ao acaso para chamar ao quadro, sabendo que só tinha um objetivo, chama:
- Gueifão!
O Zé Carrilho, levanta-se, devagar, apavorado, como quem sai da tumba, e fica hirto.
- És tu, o Gueifão?
- Não... não! Falto.
Os colegas não aguentaram o riso. “Falto” jamais se tinha ouvido!
No fim da aula, todos tinham saído, fui falar com o professor. Eu tinha-me comprometido.
- Então o gajo faltou? (Usava muito o termo gajo, apesar de ser educadíssimo!)
- Não senhor engenheiro. Foi aquele que se levantou e disse “Falto”!
- E agora? Foi a última aula. Mas ao menos ele aprendeu o que lhe ensinaste.
- Aprendeu sim. Pode dar-lhe o 10 que ele precisa.
- Vou pensar nisso.
Deu-lhe o 10, o Carrilho passou de ano, e só uns 30 anos depois, quando juntámos os colegas do curso, é que eu lhe contei esta história! Creio que ele não acreditou muito nisto!
Já no fim do curso prova escrita de Hidráulica, uma das cadeiras minhas preferidas, e em que tinha sempre a melhor nota de todos (não é gabarolice; em Entomologia... eu tinha uma das piores!).
Faço a prova muito rapidamente e atrás de mim o José Ravasco cutucava-me para lhe passar o ponto porque ele estava quase a zero!
Consegui escrever tudo num pedaço de papel, passar-lhe para trás, sem o professor ver, o que é óbvio, entreguei a minha prova e saí.
Esperei pelo Zé Ravasco.
- Passaste tudo? Tiveste tempo?
- Tudo. Tens a certeza que estava tudo certo?
Tinha. Aguardámos as notas. Eu sempre tinha a melhor nota, estava mais do que tranquilo. Ele nervoso.
Para espanto de ambos o Zé Ravasco teve uma nota melhor do que a minha!
Muito rimos com esse desfecho. Pela vida fora, poucas vezes nos encontrámos mais, por causa da minha vida de imigrante constante. Mas sempre falámos nisto. E ele fazia questão me dizer:
- Eu era melhor do que tu em Hidráulica!
Saudade. Muita. Dos colegas e de praticamente todos os professores, neste caso do
Engenheiro António José Sardinha de Oliveira
De quem sempre lembro com saudade, admiração e carinho.


Página dedicada a este professor no livro de fim do Curso de 1951. Tinha o professor 39 anos!

27/01/2015



Um comentário:

  1. Fumando(não DEFINITIVOS)e rindo, a mocidade passou outra vez pelos meus olhos. Venha mais!

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