...com lágrimas se fez a história
dessa Inês tão linda...
CARONYQUA
D’ELLREI DOM AFONSO
IV
E estamdo asim ledo o dito Rei
de Portugal (Afonso IV) com esta vitoria (Batalha do Salado), em paz e comcordia
com EllRei Dom Affõso de Castella seu gemrro, as cousas deste Mûdo como sam
movediças e os joizos de Deos
mui profumdos, segûdo o Profeta, e Deos que dá a paga segûdo o pecado: e porque
este houve letijos e volltas com EllRei Dom Dinys seu pai, cujo sabedor da
cullpa Deos que he direito juiz, fez que este Rei seu
filho o Ymfamte Dom Pedro fosse comtra ellee; e a causa porque quamdo veo a Ymfãte
Dona Costamsa, filha de Dom João Manoel, a Portugal pera o Ymfamte de Portugal
Dom Pedro, herdeiro de Portugal seu marido, veio com ella húa Dona Ynês de
Crasto sua paremta mui fermoza de que EllRei se namorou; e finada a Dona
Costamça, molher do Ymfamte Dom Pedro, filho deste Rei, elle veo ter parte com
ella, e houve nella filhos delle, e amdava com ella como sua molher; e allgús
diziam a EllRéi, que era sua molher, o que elle lhe mamdou dizer que se Dona
Ynês de Crasto era sua molher, que lho dixesse e honrraria como sua molher; e
senão que asim lho dixese; e o Ymfamte negou que nûca fora sua molher, nem o
seria. E vemdo EllRey Dom Affõso que da Ymfãte Dona Costamsa, molher de seu
filho o Ymfãte Dom Pedro, ficara Dom Fernaõdo herdeiro legitimo do Reino; e que
a dita Dona Ynês de Crasto era de
paremtella de Senhores poderosos, e que por sua morte ordenariam allguma treçam
contra Dom Fernãodo o proprio herdeiro, por esta causa foi EllRei acomcelhado
per Diogo Lopez Pachequo, e Pedro Coelho, e Álvaro Gõçalvez Meirinho Mor, seus
privados, que matase a dita Dona Ynês de Crasto porque nom o fazemdo se perderia
Portugal: e asim com as cauzas já ditas, e este comcelho, e outras que lhe
dariam pera fazerem a sua boa, detremynou EllRei Dom Affõso de a matar e se foi
o dito Rey á Cydade de Coimbra de mão armada com muitas gêtes: e em Samta Crara
omde a dita Dona Ynês de Crasto estava, salltou demtro com estes comcelheiros,
e a dita Dona Ynês que esto cemtio, bem soube ser fym de seus días; e entrando
EllRei no Mosteiro, ella com muita piedade com dous netos meninos, trasfegurada
da morte, se, pôs em geolhos amte, e dixe: Senhor
porque me queres matar sem causa? voso filho he Primcipe a quem eu não
podia, nem poso registir; havê piedade de mym que sam molher; não me mates sem
causa: e senão avés piedade de mym, havê pyedade destes vosos netos,
samge voso.
Ó tu, que tens de humano o gesto e o
peito
(Se de humano é matar uma donzella,
Fraca e sem força, só por ter
sujeito
O coração a quem soube vencêl-a)
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura d’ella;
Mova-te a piedade, sua e minha,
Pois te não move a culpa que eu não
tinha.
Lusíadas, C III, CXXVII
Estas, e outras pallavras de fim
triste dixe a dita Dona Ynês pera comover bárbaros coraçois, quamto mais o
coração real que he piadozo devinal, pois se diz que o coração do Rei he na mão
de Deos: e semdo EllRei esforçado Cavalleíro, naturalmete vemos que nos
esforçados sempre ha piedade e perdão; o que não fás nos fracos de coração: e
como EllRei era de benyna comdição ouve piedade, e se vollveo o rosto e a
deixou. Dizem que solltou huma pallavra da boca, em reposta do que disseram os
brabos comcelheiros sem piedade: A! Senhor, a ese escárnio vimos nós cá: que
se perca Portugal por esta molher! e outras pallavras feas, que em culpa
nom era a dita Dona Ynês de Crasto, nem della com verdade se diziam: e dyzem
que EllRei dixera, Lá fazê o que quiserdes; asim foi o bom Rei perseguido
daquelles comcelheiros; e tornarão, cruamête matarão a ynocête Dona Ynes de
Crasto, cuja morte por joyzo de Deos foi bem vingada nos cullpados, como au diante
se dira na Coronica d’EllRei Dom Pedro, filho deste Rey; e por esta morte pai e
filho Ymfãte Dom Pedro oiveram muitas discordias e desobidyêcias, e
allevantamêtos de Villas, Cidades, fortalezas em que se matavam muitos homês,
faziam grãdes crimes no Reino de gramde desserviço de Deos Noso Sonhor.
Pasou o cazo da morte de Dona
Ynês de Crasto como dito hé, e pazes amtre Rei e filho, e perdoys de parte a
parte com sollenes juramêtos de pai a filho, e que todos ficavam perdoados
Diogo Lopes Pacheco, Allvaro Gil Meyrinho Mór, e Pedro Coelho: e com todo
EllRei Dom Affõso, como catollico e vertuozo Prymcipe, poys estes vasallos por
o servyr forão no caso, e sabendo a forte comdiçam do Ymfãte Dom Pedro seu
filho que os mataria depois da sua morte, os chamou e lho dixe este temor do
filho que tinha por amor delles, que se fosem pera Castella que lá lhes faria
grandes mercês; os sobreditos lho agradecerão, e tiverão em gramde mercê e se
forão a Castella; o que depois delles aveio se dirá na Caronyqua d’EllRei Dom
Pedro, filho deste Rei.
D’ELLREI DOM PEDRO
Christo noso
Senhor Deos diz no Avamgelho que nenhû hade ficar sem gallardam do bem, nem mal
sem provisam. Fallecido EllRei Dom Affomso, pay deste Rei, loguo o dito Rei Dom
Pedro se comcertou com EllRei Dom Pedro o cru de Castella, que lhe daria estes
três homês que matárão Dona Ynês de Crasto já ditos acima; e que elle Dom Pedro
lhe daria certos fidallgos de Castella em Portugal, que sam os segímtes: Dom
Pedro Nunéz de Gusmão, Adiamtado mór da terra de Liam, e Mem Rodriguez Tenorio,
e Fernão Godiel de Tolledo; e Fernão Samchez Calldeirão; e este emtregou EllRei
de Portugal, e dezia hû delles que trocárão burros por burros; e asym se fez,
que EllRei de Portugal mãodou estes a Castella. E EllRei de Castella, quãdo
premdeo Pedro Coelho, e Allvaro Gõçalvez, Diogo Lopez Pacheco era á casa, e EllRei
de Castetla, por elle não ser avizado, mãodou poer guardas ás portas da Cidade
que nenhú o podese hir avizar; havia hû pedinte na Cidade a quem Dio Lopez cada
dia maôdava dar esmolla, o qual era coxo; e este sabemdo o que pasava, cuidou
em como podia dar avizo a Diogo Lopez, e sayo polla porta fora e as guardas nom
sospeitárâo nada delle: e como foi fora amdou quamto pode per aquella parte õde
Diogo Lopez era á casa, e achou-o vir, e avizou-o qual tomou os vestidos do
pobre, e escomdeo-se, e sallvou-se em Framça, e os outros forão tomados e
trazidos a Samtarem omde EllRei estava, o qual os saio a receber com gramde
prazer: e estando EllRei fazemdo-lhes pergumtas e elles não respomdemdo nada, EllRey
deu hûm gramde açoute a Pedro Coelho no rosto, e elle solltou dizemdo contra
EllRei: Ah! Tredor, fé
perjuro, allgoz dos omês, carniceiro;
e EllRey dixe que lhe trouxessem cebolla e vinagre pera o Coelho. Emfadouce delles
e mamdou matar desta gisa, a saber, mãodou tirar o coração pollos
peitos a Pedro Coelho, e a Allvaro Gomçâllvéz pollas espaduas, e dixe Pedro Coelho ao que lhe
tirava o coraçam: Mete a mão á parte'esquerda, e' achalloás mayor que de hû
touro, e mays leal que de hû cavallo; e depois mamdou-os queimar diamte do paço, estamdo comêdo:
e bem se pode dizer que igual pena levárão na sua morte de crueza polla
desigual crueza que fizerão á cordeira de Dona Ynês de Crasto. E foi muito estranho
aos Rei a tal troca que fizerão.
Caronyquas de Fernam Lopez.
03/03/13
N.-
Naquele tempo
matavam Pedros Coelhos! Hoje mata-se o povo à miséria e o Coelho... à solta!
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