segunda-feira, 11 de março de 2013




...com lágrimas se fez a história
 dessa Inês tão linda...

CARONYQUA

D’ELLREI  DOM  AFONSO  IV 

E estamdo asim ledo o dito Rei de Portugal (Afonso IV) com esta vitoria (Batalha do Salado), em paz e comcordia com EllRei Dom Affõso de Castella seu gemrro, as cousas deste Mûdo como sam movediças e os joizos de Deos mui profumdos, segûdo o Profeta, e Deos que dá a paga segûdo o pecado: e porque este houve letijos e volltas com EllRei Dom Dinys seu pai, cujo sabedor da cullpa Deos que he direito juiz, fez que este Rei seu filho o Ymfamte Dom Pedro fosse comtra ellee; e a causa porque quamdo veo a Ymfãte Dona Costamsa, filha de Dom João Manoel, a Portugal pera o Ymfamte de Portugal Dom Pedro, herdeiro de Portugal seu marido, veio com ella húa Dona Ynês de Crasto sua paremta mui fermoza de que EllRei se namorou; e finada a Dona Costamça, molher do Ymfamte Dom Pedro, filho deste Rei, elle veo ter parte com ella, e houve nella filhos delle, e amdava com ella como sua molher; e allgús diziam a EllRéi, que era sua molher, o que elle lhe mamdou dizer que se Dona Ynês de Crasto era sua molher, que lho dixesse e honrraria como sua molher; e senão que asim lho dixese; e o Ymfamte negou que nûca fora sua molher, nem o seria. E vemdo EllRey Dom Affõso que da Ymfãte Dona Costamsa, molher de seu filho o Ymfãte Dom Pedro, ficara Dom Fernaõdo herdeiro legitimo do Reino; e que a dita Dona Ynês de Crasto era de paremtella de Senhores poderosos, e que por sua morte ordenariam allguma treçam contra Dom Fernãodo o proprio herdeiro, por esta causa foi EllRei acomcelhado per Diogo Lopez Pachequo, e Pe­dro Coelho, e Álvaro Gõçalvez Meirinho Mor, seus privados, que matase a dita Dona Ynês de Crasto porque nom o fazemdo se perderia Portugal: e asim com as cauzas já ditas, e este comcelho, e outras que lhe dariam pera fazerem a sua boa, detremynou EllRei Dom Affõso de a matar e se foi o dito Rey á Cydade de Coimbra de mão armada com muitas gêtes: e em Samta Crara omde a dita Dona Ynês de Crasto estava, salltou demtro com estes comcelheiros, e a dita Dona Ynês que esto cemtio, bem soube ser fym de seus días; e entrando EllRei no Mosteiro, ella com muita piedade com dous netos meninos, trasfegurada da morte, se, pôs em geolhos amte, e dixe: Senhor porque me queres matar sem causa? voso filho he Primcipe a quem eu não podia, nem poso registir; havê piedade de mym que sam molher; não me mates sem causa: e senão avés piedade de mym, havê pyedade destes vosos netos, samge voso.

Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar uma donzella,
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencêl-a)
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura d’ella;
Mova-te a piedade, sua e minha,
Pois te não move a culpa que eu não tinha.
Lusíadas, C III, CXXVII

Estas, e outras pallavras de fim triste dixe a dita Dona Ynês pera comover bárbaros coraçois, quamto mais o coração real que he piadozo devinal, pois se diz que o coração do Rei he na mão de Deos: e semdo EllRei es­forçado Cavalleíro, naturalmete vemos que nos esforçados sem­pre ha piedade e perdão; o que não fás nos fracos de coração: e como EllRei era de benyna comdição ouve piedade, e se vollveo o rosto e a deixou. Dizem que solltou huma pallavra da boca, em reposta do que disseram os brabos comcelheiros sem piedade: A! Senhor, a ese escárnio vimos nós cá: que se perca Portugal por esta molher! e outras pallavras feas, que em culpa nom era a dita Dona Ynês de Crasto, nem della com verdade se diziam: e dyzem que EllRei dixera, Lá fazê o que quiserdes; asim foi o bom Rei perseguido daquelles comcelheiros; e tornarão, cruamête matarão a ynocête Dona Ynes de Crasto, cuja morte por joyzo de Deos foi bem vingada nos cullpados, como au diante se dira na Coronica d’EllRei Dom Pedro, filho deste Rey; e por esta morte pai e filho Ymfãte Dom Pedro oiveram muitas discordias e desobidyêcias, e allevantamêtos de Villas, Cidades, fortalezas em que se matavam muitos homês, faziam grãdes crimes no Reino de gramde desserviço de Deos Noso Sonhor.

Pasou o cazo da morte de Dona Ynês de Crasto como dito hé, e pazes amtre Rei e filho, e perdoys de parte a parte com sollenes juramêtos de pai a filho, e que todos ficavam perdoados Diogo Lopes Pacheco, Allvaro Gil Meyrinho Mór, e Pedro Coelho: e com todo EllRei Dom Affõso, como catollico e vertuozo Prymcipe, poys estes vasallos por o servyr forão no caso, e sabendo a forte comdiçam do Ymfãte Dom Pedro seu filho que os mataria depois da sua morte, os chamou e lho dixe este temor do filho que tinha por amor delles, que se fosem pera Castella que lá lhes faria grandes mercês; os sobreditos lho agradecerão, e tiverão em gramde mercê e se forão a Castella; o que depois delles aveio se dirá na Caronyqua d’EllRei Dom Pedro, filho deste Rei.

D’ELLREI  DOM  PEDRO

Christo noso Senhor Deos diz no Avamgelho que nenhû hade ficar sem gallardam do bem, nem mal sem provisam. Fallecido EllRei Dom Affomso, pay deste Rei, loguo o dito Rei Dom Pedro se comcertou com EllRei Dom Pedro o cru de Castella, que lhe daria estes três homês que matárão Dona Ynês de Crasto já ditos acima; e que elle Dom Pedro lhe daria certos fidallgos de Castella em Portugal, que sam os segímtes: Dom Pedro Nunéz de Gusmão, Adiamtado mór da terra de Liam, e Mem Rodriguez Tenorio, e Fernão Godiel de Tolledo; e Fernão Samchez Calldeirão; e este emtregou EllRei de Portugal, e dezia hû delles que trocárão burros por burros; e asym se fez, que EllRei de Portugal mãodou estes a Castella. E EllRei de Castella, quãdo premdeo Pedro Coelho, e Allvaro Gõçalvez, Diogo Lopez Pacheco era á casa, e EllRei de Castetla, por elle não ser avizado, mãodou poer guardas ás portas da Cidade que nenhú o podese hir avizar; havia hû pedinte na Cidade a quem Dio Lopez cada dia maôdava dar esmolla, o qual era coxo; e este sabemdo o que pasava, cuidou em como podia dar avizo a Diogo Lopez, e sayo polla porta fora e as guardas nom sospeitárâo nada delle: e como foi fora amdou quamto pode per aquella parte õde Diogo Lopez era á casa, e achou-o vir, e avizou-o qual tomou os vestidos do pobre, e escomdeo-se, e sallvou-se em Framça, e os outros forão tomados e trazidos a Samtarem omde EllRei estava, o qual os saio a receber com gramde prazer: e estando EllRei fazemdo-lhes pergumtas e elles não respomdemdo nada, EllRey deu hûm gramde açoute a Pedro Coelho no rosto, e elle solltou dizemdo contra EllRei: Ah! Tredor, fé perjuro, allgoz dos omês, carniceiro; e EllRey dixe que lhe trouxessem cebolla e vinagre pera o Coelho. Emfadouce delles e mamdou matar desta gisa, a saber, mãodou tirar o coração pollos peitos a Pedro Coelho, e a Allvaro Gomçâllvéz pollas espaduas, e dixe Pedro Coelho ao que lhe tirava o coraçam: Mete a mão á parte'esquerda, e' achalloás mayor que de hû touro, e mays leal que de hû cavallo; e depois  mamdou-os queimar diamte do paço, estamdo comêdo: e bem se pode dizer que igual pena levárão na sua morte de crueza polla desigual crueza que fizerão á cordeira de Dona Ynês de Crasto. E foi muito estranho aos Rei a tal troca que fizerão.

Caronyquas de Fernam Lopez.

03/03/13

N.-
Naquele tempo matavam Pedros Coelhos! Hoje mata-se o povo à miséria e o Coelho... à solta!

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