segunda-feira, 25 de junho de 2012



Milagre no Lago Paranoá


 

Para quem não sabe, o Lago Paranoá é um lago artificial em Brasília, no Distrito Federal, Brasil.

***

Há já alguns anos o homem surgia de mansinho, ninguém sabe de onde, e ia sentar-se junto ao lago. Ali ficava longe da confusão, do incessante barulho do trânsito, e a procurar ouvir cada pequenino chuá-chuá que as marolinhas daquelas águas vinham fazer junto aos seus pés.
Ainda relativamente jovem, deslocava-se com dificuldade, sempre com uma pequena vara na mão, dando a entender àqueles que o observavam com mais cuidado que devia ser cego.
Alimentava-se de algum pão, uns restos de quentinhas que algumas almas mais atentas lhe levavam, e à noite saia da borda do lago e desaparecia no tumulto. Ninguém sabia quem era, nem onde dormia, mas de dia a sua presença, sempre no mesmo lugar, era como um imóvel.
 

Um dia o Senhor olhou aquele homem, abandonado, e compadeceu-se. Demóstenes, era o seu nome, ouviu um suave chamado, e uma voz macia, perguntou-lhe como se chamava. Demóstenes Lula de Dirceu. Nome estranho diz o Senhor. Foi meu pai, que faleceu era eu ainda menino, que me deu este nome complicado. Demóstenes, porque um dia alguém lhe falou que devia por-me esse nome, de um grande orador grego, e que talvez assim eu pudesse chegar a ser deputado ou senador! Meu pai, pescador, pobre, no dia em que nasci pescou lá no sul do país uma grande lula e achou que era um bom sinal do bom Deus e decidiu que me chamaria Demóstenes Lula. Meu pai gostava muito de lulas! Escorregadias, difíceis de preparar e cozinhar, mas bem fatiadas, e fritas... E a minha mãe, que também já cá não está, sabia através de uma vizinha, senhora professora, que o mais lindo poema de amor composto no Brasil se chamava Marília de Dirceu. E acabei com o nome complicado que, quando criança, na escola e ainda os meus olhos viam, os coleguinhas me chamavam um monte de nomes para implicarem comigo.
Pouco depois do meu pai morrer comecei a ver mal, os médicos disseram que nada podia ser feito, deixei a escola e a minha mãe cuidava de mim. Mas tanto desgosto levou-a também e acabei, com pouco mais de dez anos, sózinho!
Agora estou nesta terra, todos os dias fico na borda da água que me traz algum fresco e vivo dos restos que algumas pessoas me trazem. Sobretudo crianças. Já ouvi até uma dizer aos pais que deviam levar-me lá para casa que ela cuidaria de mim. Só criança, mesmo. Lembro da resposta dos pais: está louca, minha filha! Um homem cego, imprestável, sabe-se lá se até é ladrão! Nunca mais apareceu.
Demóstenes, disse o Senhor, Eu me compadeci de ti e vou repor a tua visão. Quando daqui sair tu vais voltar a ver, bem. Como está um dia de sol terás que andar com os olhos bastante cerrados; com o pouco de dinheiro que sei que tens contigo, compra logo uns óculos escuros.
E lembra-te deste conselho: fala pouco, e dirás sempre que não viste nada, que não sabes de nada, que não conheces ninguém. Nesta terra é a melhor maneira de te dares bem.
A seguir, um silêncio profundo, Demóstenes começa por ver um clarão, muito sol, muito reflexo na água, e não sabia se havia de gritar de alegria ou de se ajoelhar agradecido. Olhou, com dificuldade ainda, à sua volta e não viu ninguém.
Olhos semi-cerrados corre à procura dum camelô que venda óculos a cinco reais, que logo encontrou.
Ainda pediu um troco aqui outro além e foi sentar-se num café – há tantos anos que ele desejava tomar um café, sentado numa mesa – e saboreou, confuso, o arôma, o gosto e sobretudo o que se estava a passar com ele.
Ouvido atento, que tantos anos foi o único sentido de orientação que possuia, além dum raro cheiro a churrasco que nunca alcançara, ouve com facilidade as conversas que se passam ao seu redor.
Curioso e cheio de vontade de começar algum trabalho que o tirasse da pobreza, pareceu-lhe entender que alguém, ali por perto, numa conversa entre dois homens, precisava duma pessoa, séria, desconhecida, humilde, que pudesse servir de “pombo correio” entre alguns importantes, e até dar seu nome para transações... escusas.
Demóstenes continua a ver ali a mão de Deus que tão logo lhe parece mostrar um caminho fácil.
Quando um deles se levantou e saíu, Demóstenes, humildemente cumprimenta o que ficou e diz-lhe que, mesmo sem ter querido, ouvira a conversa. Óculos escuros, continuando a parecer cego, atraveu-se a dizer que não tinha trabalho porque havia sofrido duma doença rara, mas que agora tinha saúde e precisava trabalhar.
- Você pode andar, a pé, distâncias maiores?
- Sim senhor, felizmente as minhas pernas sempre foram fortes.
- Apareça amanhã, pela manhã neste endereço – e deu-lhe um cartão de visita. E como é o seu nome?
- Demóstenes, meu senhor.
- Demóstenes? Que maravilha! Para o que estamos a pensar você será a pessoa ideal.
Demóstenes, logo que sózinho, levantou um pouco os óculos e leu: “Demóstenes – Senador; Senado Federal”!
Dia seguinte, bem cedo o nosso Demóstenes aguardava já à entrada do Senado. O glorioso senador chegou quase ao fim da manhã e quando o avisaram que estava ali um homem à procura dele, logo o mandou entrar.
- Oiça bem: tudo quanto eu lhe der para fazer fica só entre nós. Bico calado e boca pequena. Vou nomeá-lo para o meu gabinete, com o ordenado de quinze mil reais por mês, dos quais você, quando receber, me entrega quatorze. Quer dizer você fica com mil para si. O que acha?
Demóstenes não entendeu bem a jogada, mas os mil por mês para quem nada tinha, era já por si um milagre.
- Sim, excelência.
- Agora para começar você vai entregar este envelope, vazio, ao sr. Cachoeira. A minha secretária lhe dará o endereço. O sr. Cachoeira saberá o que fazer com o envelope. Passar bem.
- Até mais, excelência.
Demóstenes correu para o endereço indicado. Cachoeira recebeu o envelope vazio, entendeu a mensagem, recheou-o com notas de 50 e 100 reais, e disse-lhe para retornar ao senador.
Além desse tinha mais um outro envelope, também gordo, que mandou para o lulinha.
Por fim disse-lhe para voltar no dia seguinte que teria mais envelopes para distribuir.
- Mas atenção você, não ouviu nada, não sabe de nada, nunca aqui esteve, nem vê nada!
- Não senhor; aliás eu vejo muito mal!
No outro dia o envelope, mais gordo ainda foi para o dirceuzinho.
E nesta vida anda o nosso Demóstenes, ex-cego, correndo para um lado e outro, ganhando só mil por mês, parte gasto em sapatos, até que um dia, até que um dia... é preso pela Polícia Federal!!!
Ele, um homem humilde, simples, que mal ganhava para comer, e continuava a morar quase de favor num canto duma garagem, era acusado de ser sócio de grandes empresas!
- EU ????? Sócio do quê?
- Sim senhor, quer saber?
- Claro que quero saber!
- Sócio duma construtora, Delta, com ações no valor de quinhentos mil reais; e de mais sete empresas diversas que lhe somam um patrimônio de mais de quatro milhões! Onde você arranjou esse dinheiro?
- Você vai ter que se explicar em tribunal e na CPI.
Demóstenes perdeu a fala. Arrenegou o Senhor e a sua fé, o xará senador, cachoeira, lulinha e dirceuzinho.
Além da fala perdeu de novo a visão. Cairam-lhe os óculos da cara. Estava cego!
De repente caíu para o lado; morto.
Na Delegacia foi um pandemônio. Eles sabiam que Demóstenes só podia ser um pobre laranja. Asustaram-no e... perderam a melhor testemunha!
A CPI não ia mesmo dar em nada.


22/06/2012

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