quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Do livro “O Cedro Vermelho”, II volume,

“Notas e Esclarecimentos”,

de Francisco Gomes de Amorim, 1827-1891

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Soldados desertores... que se reuniam aos assassinos
para roubar de sociedade

(I Vol., pag. 81, lin. 18)
Manteve-se a ortografia original.



É sabido como a maioria dos denominados cabanos se compunha de facínoras, aptos para todos os crimes. Expulsos da cidade do Pará, internaram-se no sertão e divididos em pequenos bandos continuaram flagelando a provincia. O presidente d'esta enviava de vez em quando destacamentos em perseguição d'elles para todos os rios, onde lhe constava que appareciam. Succedia porém ás vezes, que os soldados, não só se associavam com esses malfeitores, mas depois de os terem destruído os ficavam substituindo em alguns logares! Referirei um caso que se passou commigo.
Em 1841 construia-se uma escuna, por conta da casa Carmello & Barros, na margem direita do Xingu, próximo á foz do Curauatá. N'um sabbado á tarde todos os mestres e tapuios de casa pediram licença para irem passar a noite e o dia seguinte a uma aldeia da margem occidental, onde se fazia a festa de S. Thomé ou do Espirito Santo. Em casa ficaram apenas José António Carmello, portuguez, que teria trinta annos de idade; uma senhora branca, ainda moça, com um filhinho de collo; um preto de oito ou nove annos; e eu, que teria quatorze, e me achava empregado como caixeiro dos citados negociantes.

O logar era inteiramente deserto; a casa, construída de terra e estacas, e coberta de palha, estava situada quasi á borda do rio, no sobpé de uma collina. Os vizinhos mais próximos ficavam a distancia de meia légua, na embocadura do Ourauatá, onde Ricardo Feio, natural de Lisboa, também construia um navio. Alem dos indivíduos acima ditos, havia em casa de Carmello & Barros um grande cão, de raça dinamarqueza, que a communidade de infortúnio me tinha associado como único amigo. Chamavam-lhe Rabicho, em vez de rabão, por lhe terem cortado a cauda! Este infeliz fora da cidade com Manuel de Lima Barros, sócio de Carmello; e os marinheiros, entre outras judiarias com que o atormentaram, por dis¬tracção, brearam-n'o e alcatroaram-n'o, sob pretexto de o tornar impermeável. Chegado ao Xingu, deixou-se ficar ali, quando o navio voltou para a cidade, vivendo do acaso, moído por todos com pauladas, porque a fome o tornava ladrão, e repellido sempre, por causa, da sua figura pouco sympathica das feridas cruéis que lhe tinham feito, da sua magreza repugnante e do seu caracter insociável, azedado pêlos maus tratos. Por acaso ou por uma tal ou qual identidade de destinos, reparámos um no outro e insensielmente nos approximámos. Rabicho começou a seguir-me por toda a parte com solicitude, atirando-se aos rios onde me via saltar para tomar banho, nadando ao meu lado, sem nunca me perder de vista, não me permittindo grande demora dentro da agua, explorando as florestas adiante de mim, cada vez que eu n'ellas entrava, e velando-me enquanto eu dormia. Grato a estas demonstrações, retribuia-lh'as com metade da minha ração; tosquiei-o cuidadosamente, livrando o da cobertura de breu; curei-lhe todas as mazellas; e quando lhe cresceu novamente o pêllo, ensaboava-lh'o com frequencïa, lavando-o por vezes com água de plantas aromáticas. Ao cabo de pouco tempo o animal tornara-se inteiramente diverso do que fora e ligara-se á mim com uma affeição, que só acabou com a sua morte.
Francisco Gomes de Amorim em 1891


Na noite a que me refiro tinha eu adormecido no copiar da casa, espécie de telheiro saliente para o lado do rio, onde o calor excessivo do clima me obrigava por vezes a atar a rede. No melhor do primeiro somno, senti que me sacudiam, e, acordando, vi o cão que me agarrava as bordas da rede, agitando-a com violência. Como n'aquelle tempo não havia noticia de se ter manifes¬tado a hydrophobia no Brazil, julguei que Rabicho se divertisse commigo e empurrei-o com os pés, preparando-me para adormecer novamente. Vendo esta disposição, o intellígente animal, que tinha a grandeza dos maiores da sua espécie e raça, metteu-se debaixo da rede, e, suspendendo-a, deitou-me ao chão; em seguida correu para fora do copiar, voltou atraz, tornou a sair, e a entrar, como convidando-me a segui-lo; e tudo isto sem ladrar e sem fazer o menor ruído!
Levantei-me furioso, com intuito de puni-lo pela inopportunidade dos seus gracejos, quando me pareceu ouvir rumor do lado de traz da habitação. Fazia luar, claro como se fosse dia; Rabicho, notando que eu tomava a attitude de quem escuta, soltou um rugido surdo e correu novamente para fora.
—Avança, cão!
A este grito, dír-se-ia que um obuz o tinha arremessado contra a collina, e que lhe saia da garganta a voz dos trovões! Comprehendi então a causa por que elle me acordara; e todos os seus esforços para me advertir de um perigo imminente. Entrei logo em casa, fechei a porta por dentro, chamei Carmello, e accendi um candieiro.
— Que é?
— Não ouve o Rabicho? Penso que são ladrões!
— Ladrões?
— Tem-se dito que no Xingu anda uma quadrilha de cabanos e de soldados desertores...
Cannello, que tinha no quarto seis ou oito armas de munição, ergueu-se de um pulo acordou a mulher, e abrindo uma grande caixa de folha de Flandres, onde tinha mil cartuchos embalados, ensinou-a a carregar as armas com grande rapidez. Depois voltando-se para mim:
— O senhor sabe atirar?
Como eu hesitasse em responder, acrescentou:
— Tem medo?
— Ainda não sei bem do que se trata...
— Ah! trata-se simplesmente de nos tirarem a pelle.
— Isso é serio?!
— Vae ver.
— Estas espingardas darão grande couce? Se tivesse alguma mais pequena?...
— A occasiâo é boa para escolhas! E dirigindo-se outra vez á mulher:
— À medida que eu as for descarregando, faze assim... vê que fiquem bem escorvadas e vae-mas ponde a jeito.
Mordia os cartuchos, escorvava as armas, que eram todas de pederneira, mettia-lhes as cargas, batia com as coronhas no chão e em menos de um minuto as tinha todas promptas e encostadas á porta, que do lado de traz da casa deitava para a encosta.
— Se não quer morrer, vá fazendo o mesmo que eu fizer. Tira essa luz para traz da parede; convém que não nos vejam, nem saibam se somos muitos ou poucos. Como o Rabicho trabalha!
Effectivamente, o cão avançava com furia, segundo os seus latidos aos annunciavam.
— O senhor ha de abrir a porta muito devagarinho; como o luar vem do rio, a sombra da casa projecta-se para a encosta; assim que abrir, deixe-me manobrar, mas atire também, se gosta de viver... Tome sempre cuidado, não me mate a mim!
Abri a porta, como elle ordenara, e avistei uns poucos de homens, querendo encobrir-se com um grupo de pequenas arvores que havia a meia subida da collina, e defendendo-se do cão que os acommettia sem cessar. Carmello deu quatro tiros segui¬dos, fazendo pontaria ao bando; eu descar¬reguei também duas ou três armas, emquanto a mulher de Carmello carregava com rapidez admirável, e varonil sangue frio, as espingardas que o marido largava. O cão, sentindo-se mais forte com o nosso apoio, atacava com maior bravura.
— Mata esse diabo com uma baionetada! gritou um.dos assaltantes.
— Mata! e avancemos á casa!
— Ai!
— Mata! Mata!
— Ai! Ai!
— Atira, diabo!
— Fujamos, que são muitos!
Estes gritos foram soltados pelos salteadores quasi todos a um tempo. Aos nossos tiros respondeu apenas um, cuja carga de chumbo foi cravar-se toda ao lado da porta, sem que nos tocasse um bago.
— Fogo, rapazes! Fogo n'aquelles cães! Avança, Rabicho! Ahi, cão! Aboca! Aboca!
Gritando assim, Carmello atirava com tanta rapidez, que os assaltantes desappareceram de corrida no alto da collina, persegui¬dos sempre pelo cão, que apesar de ferido não os largou senão depois de o chamarmos repetidas vezes. Pelos gritos e gemidos que ouvimos, ficámos suppondo, que as nossas balas nem todas se perderam e que Rabicho tinha marcado bem alguns dos ladrões. Revistando-o, logo que elle chegou ao pé de nós, achámos-lhe a boca cheia de sangue e fragmentos de pelle humana, misturados com fios da roupa dilacerada, conjunctamente com as carnes.
— Coitado! — exclamou Carmello, que o examinava.
— Fizeste bem o teu dever!
— Devemos-lhe a vida! —acrescentei eu, afagando-o. — Se elle me não acordasse, estávamos servidos!

— Ah! foi elle?!
Referi a Carmello como as cousas se tinham passado.

— Todos se portaram bem! Eu penso que matei dois d'aquelles cachorros.

— Eu atirei ao monte... —E conclui commigo: — Fechando os olhos!

— Agora é arriscado irmos ver o effeito dos nossos tiros. O Ricardo Feio deve tê-los ouvido na sua feitoria, e, provavelmente, mandará alguem pela manhâ saber o que foi.

— Talvez se persuadisse de que eram salvas que nós dávamos, festejando o dia em que se poz a primeira tábua do costado?...

— Isso é verdade... Aqui não se faz nada sem descargas ou sem foguetes! Maldito costume dos tapuios!... Se a gente quizer pedir alguma vez soccorro, ninguém percebe!...
— Quem sabe se os ladrões não iriam tambem assaltar a feitoria do Ricardo?!
— É possível... Mas elle não ha de ter sido tão asno como eu, que deixei ir os carpinteiros todos para a outra banda, sabendo que o Xingu anda ha dias mal assombrado!
— Pobre Rabicho! Tem umas poucas de picadas no cachaço, e está perdendo muito sangue!
— Vá lavá-lo com sal e vinagre, que eu, pelo seguro, fico aqui de sentinella até ama¬nhecer. Dá cá o meu cachimbo, e arranjem café.
Fiz o curativo ao cão, que protestava latindo dolorosamente contra a brutalidade do medicamento; mas comprehendendo sem duvida que era para seu beneficio, não me recompensou, mordendo-me, como poderia fazer qualquer creatura de certa espécie que sabemos... Depois voltei com elle para junto do Carmello e ficámos conversando e fumando até pela manha; é claro que Rabicho não to¬mou parte nos nossos prazeres e distracções, comquanto fosse tão digno como qualquer outro de se associar a ellas; mas tinha profundo horror ao café, e não era mais tratavel com o tabaco.
No dia seguinte pela manhã subimos a collina e achámos a terra revolvida de meia encosta para cima, e as folhas que a juncavam abundantemente regadas de sangue. Como não apparecesse ninguém, embarcámos todos n'uma canoa e fomos á feitoria de Ricardo Feio. Encontrámo-lo em casa, com todos os seus tapuios, e referimos-lhe os successos da noite. Os nossos tiros tinham sido ouvidos; porém, como eu suspeitara, attribuiram-n'os a causas festivas. Logo que souberam o verdadeiro motivo, armaram-se e partiram comnosco para a feitoria de Carmello. Chegados ali, seguimos, guiados pelo cão, o rasto do sangue, perfeitamente visível; e depois de termos andado por espaço de uma hora através da floresta, descemos novamente para a Beira do rio. Ahi notavam-se na areia não só os vestígios sanguinolentos como as piugadas de muitos homens. Pareceu-nos, pelo exame a que procedemos, que os facínoras não seriam menos de vinte! Apesar de nós não sermos tantos, como íamos armados e sabíamos por experiência que elles tinham apenas uma espingarda ou que lhes faltava pólvora ou balas para se servirem de outras, continuámos a dar-lhes caça. Mais adiante havia uma coroa de areia, separada da margem por um canal que teria meia dúzia de braças de largura. As piugadas sumiam-se na agua em direcção a essa pequena ilha. Rabicho atravessou o esteiro e começou a cavar do outro lado. Como o passo era fácil, fomos atraz d'elle e em poucos segundos o vimos descobrir o cadáver de um homem agigantado, que lhe ajudámos a desenterrar. O morto era mulato e vestia a fardeta de soldado de um dos regimentos que, das outras províncias, haviam ido em auxilio do Pará. Tinha o peito varado por duas balas e uma das pernas dilacerada pelos dentes do meu guarda fiel. O rasto dos que fugiam desaparecia no fim do areial, á beira do rio. Provavelmente ali os esperara a canoa em que tinham vindo e na qual reembarcaram mas os signaes de sangue e a impressão de alguns passos mais profundamente marcados na areia, radicavam que o morto deixado não fora o único ferido pelas nossas balas. Talvez que outros corpos fossem confiados ao Xingu, cujos monstros sabem ás vezes guardar melhor um segredo do que as sepulturas da terra. O certo ó que nunca mais ouvimos fallar dos que foram nem dos que ficaram.

Este facto não foi único; houve differentes assaltos d'esta natureza, e nem sempre os malvados encontraram para recebe-los homens com a bravura e sangue frio de Carmello. Muitas canoas dos negociantes chamados regatões foram tomadas por elles, roubadas e desamparadas ás correntes dos rios, depois de assassinadas as guarnições. E se não fora a justiça summaria e a energia do general Andréa, presidente da província, só Deus sabe como e quando esta se veria livre dos malfeitores cabanos e seus associados!

O cão Rabicho seguiu ainda durante alum tempo a minha fortuna pelo Amazonas; e quando uma doença prematura me privou da sua affeição, reguei com lagrimas sinceras a sepultura que lhe abri na costa de Paricátiba, na margem direita do Amazonas, consagrando á sua memória os primeiros quatro versos que escrevi e foram gravados n’uma lápida de itaúba (Acrodiclidium Itauba).





Seria assim o grande Rabicho ?

Um comentário:

  1. LUIZ ISMAELINO VALENTE7 de dezembro de 2010 às 21:05

    Senhor FGA,

    Sou um amazônida nascido em Alenquer, no Estado do Pará, Brasil. Desde criança sou fascinado pela história de seu avô, que eternizou Alenquer na peça "O Cedro Vermelho". Tentei muito entrar em contacto com o senhor mas não consegui. Em junho, lancei em Alenquer, num evento da Maçonaria local, o livro "O Curumu de Alenquer na Obra de Francisco Gomes de Amorim". É um pequeno livro que tem a intenção de resgatar para os alenquerenses a memória do grande escritor que viveu por algum tempo quando jovem nessa cidade. Gostaria imensamente de lhe enviar um exemplar, pelo que solicito que me envie pelo e-mail abaixo um endereço com CEP.

    Atenciosamente,

    LUIZ ISMAELINO VALENTE
    Belém - Pará - Brasil
    e-mail: ismaelino@terra.com.br

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