quarta-feira, 22 de setembro de 2010

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O Mercedes e os carrapatos!
Moçambique 1973

Vem a propósito de carros lembrar mais uma caçada em Moçambique. O Pedro Avillez era o representante do nosso Banco em Johannesburg, e foi um dia a Lourenço Marques tratar de assuntos de serviço.
É preciso notar que só depois de 1976 é que as pessoas deixaram de ir a esta cidade para irem ao Maputo. Geograficamente vão ao mesmo lugar mas até os moçambicanos fazem esta distinção!
Aproveitámos um fim de semana para, com o saudoso Luís Alvim Cardoso, grande caçador, homem de muito caracter e amigo, ir caçar perdizes, não me recordo já com precisão aonde, mas lá para bandas de Zandamela, entre Quissico e Chidenguele, uns 350 quilómetros, para norte da capital, junto à costa. Para África é sempre perto, em termos de Europa é sempre longe.
Fomos instaladões no belo carro da representação do Banco, um Mercedes 280SE, automático, uma delícia, para quem normalmente ia num incómodo jeep para essas farras.  

Não seria o carro ideal para ir às perdizes,
mas era lindão!


Não levámos cão, o que para perdizes é fundamental, mais ainda em terrenos com capim alto, tão alto que por vezes nos dava pelo nariz. Ver, ainda vimos algumas.
Atirar creio que ao todo se fez um tiro ou outro, mas perdiz caçada, mesmo, para levar para casa e fazer aquele magnífico petisco, é que nada.
Apanhámos um calor imenso, fartámo-nos de andar no meio do mato sem cachorro e, depois de feita toda aquela viagem e apanhado uma razoável estafa, desistimos, um quanto desiludidos do intento cinegético. Lembro-me do que dizia o meu avô (o outro, o Frick, que também andou por África mas só a caçar. Foi rico, bem o pôde fazer!) que quando se sentavam para comentar a última caçada, mesmo quando não se caçava nada: ninguém se feriu, não matámos ninguém, voltámos para casa. Foi uma caçada ótima. Como esta!
Já no regresso, sede não faltava, parámos na primeira localidade para beber uma cerveja e comentámos com o comerciante por onde tínhamos andado.
- Essa região está cheia de carraças. Daquela miudinha. A pior. A que provoca a febre da carraça.
- Oh! Diabo!
- Quando chegarem a casa tomem um banho de imersão com um pouco de amoníaco misturado. Saem todas.
De repente já os três começávamos a sentir uma coceirinha aqui outra ali! A coceira vem muita vez da nossa cabeça.
Novamente no Mercedão, ar condicionado, a caminho de casa.
Aquela região costeira é uma beleza! O mar forma lagoas interiores ao longo da praia e da estrada que corre um bom tempo mesmo ao seu lado. Estrada deserta. Dia lindo, águas limpissimas, de um azul que... é uma tristeza estar tão longe!


Olhem só a maravilha!

- E se a gente tomasse já aqui um banho nestas águas maravilhosas? Aproveitamos para procurar e catar as carraças. Se por acaso as trazemos ainda, podem agarrar-se ao estofo do carro e depois vai ser um Deus nos acuda para acabar com elas. Boa idéia.
Despimo-nos inteiramente, começando por uma minuciosa pesquisa nas roupas, incluindo meias e botas. Tudo em perfeito estado de isenção insetívora.
Depois, sentadões naquela água morna, limpa, qual imensa banheira, começou a inspeção pelos pés, pernas, virilhas, barriga, sovacos. Nada. Cabeça dentro de água bem escovada com as unhas, não deixava qualquer hipótese às ditas carraças,
Isto enfiado no... (em qualquer lugar, aliás) seria um tormento

carrapatos, artrópode miserável, aracnídeo nojento, acarino da família dos ixodídeos, de abdome unido e confundido com o cefalotórax, aberturas traqueais na parte posterior e ventral do corpo, e hipostómio armado de espinhos.
Um horror, ainda por cima quando se sabe que as suas larvas são hexápodes. De fato com este complicado curriculum o nosso cuidado em não deixar um único desses seres viverem como ectoparasitas coceirentos nos nossos corpos, era plenamente justificável.
Por fim sempre há uns locais do nosso corpo que só enxergamos com a nossa própria vista se nos munirmos de conveniente espelho, objeto que normalmente não se leva para uma caçada às perdizes.
Ainda por cima nós que nem cão estupidamente levámos. Não é necessário indicar qual é essa parte do corpo, mas para que não fiquem dúvidas quanto à veracidade desta descrição, é bom que se esclareça que se trata da região anal. Para aí se procurarem os tais animais com o hipóstomo armado de espinhos, a única solução foi cada um virar o traseiro para outro que tinha que pôr o seu olho bem no olho do outro.
Como era necessário que ambos curvassem o corpo, um para expor amplamente o possível local de abrigo dos sobreditos artrópodes, e o outro para melhor o inspecionar...
O ridículo da cena é indiscritível! Mas a bem da verdade há que deixar consignado que nem um só dos três deixou de inspecionar e ter sido convenientemente inspecionado!
O banho foi uma delícia. Não apetecia sair dali, mas houve que ir embora, depois de agredida a natureza com um espetáculo de olho por olho, um tanto, não pornográfico, mas no mínimo, indecoroso.
O Mercedão não deve ter gostado do que viu e o motor de arranque negou-se a funcionar! Carro automático não pega de empurrão e, ali, no middle of nowhere (influência sul-africana!), a coisa ficou complicada.
Tanto vasculhámos que por fim se encontrou um pedaço de ferro que serviu para fazer uma gambiarra, uma ligação direta entre bateria e motor de arranque.
Lá pegou. Acabámos chegando a casa, sãos e salvos e limpos.
Por via das dúvidas, eu tomei o tal banho com amoníaco!

De "Se as minhas Imbambas falassem", Rio 2000
 

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