domingo, 5 de setembro de 2010

O "Cruzeiro-Ouro" !!! - Final-

(Um pouco longa a história, mas... foi assim mesmo!)

Chegada ao Galeão, antigo, depois de oito horas de vôo, cerca da meia noite. Estafado. Passado o controle da Polícia Federal, com tudo em ordem, incluindo o visto de permanência, espera a chegada das bagagens. Foram chegando, as dele e as nove da sua amiga, todas da mesma cor, rosa choque, de tamanhos diferentes, formando um lindo conjunto. O funcionário da Alfândega olhando, com ar meio de espanto, meio indiferença, para o acumular de tanta coisa por uma única pessoa! Treze malas, uma cadeira esquisita, uma embalagem metálica quase da mesma cor das malas, parecendo um obus, onde se acomodava o teodolito, um violão e uma espada velha!

Este sujeito não deve ser bom da cabeça, terá sido o pensamento do fiscal.
Quando por fim a bagagem estava toda reunida, este com ar calmo perguntou:
- Isto é tudo seu?
Sim, para todos os efeitos era. Francisco ainda tentou contar a história da dona das nove malas rosa, mas o fiscal não se interessou. Foi também informando que trazia tudo devidamente autorizado pelo Consulado do Brasil, como podia verificar pela documentação, o que também para o fiscal nada significou.
- O teodolito pode ficar na Alfândega porque ainda vou ter que pagar primeiro cinco cruzeiros-ouro.
Se tivesse ficado de boca fechada talvez pudesse ter saído com tudo de uma vez. Foi mandado retirar e guardar. De toda aquela imensidade de bagagem o que despertou a curiosidade do fiscal foram as bonitas malas rosa. Mandou abrir uma delas.
- Com certeza.
Aí começa a primeira dificuldade: acertar com a chave própria, o que aconteceu ao fim de diversas e nervosas tentativas, até porque fecho de mala é quase sempre coisa fajuta. O fiscal olhou, passou a mão por dentro, mandou fechar e abrir uma outra. O mesmo problema: descobrir a chave certa. Nova demora, nova inspeção, e a ordem final:
- Pode levar tudo!
Graças a Deus.
Foram precisos quatro carregadores. À saída um casal, os tais amigos da Luiza, se identificou e tomou conta das nove malas rosa, o que aliviou o problema, para dar lugar a evidenciar um outro: como levar tudo o resto num taxi, sobretudo a cadeira, grande como aquela era? Escolheu-se o taxi maior, mas o bagageiro não era suficiente para receber tão preciosa cadeira. Nem por sombras. Ao fim de várias e malogradas tentativas foi o velho e versátil Fusca que conseguiu a façanha de tudo acomodar em suas entranhas! As malas no banco traseiro, o Francisco em cima delas, todo torcido, o frágil violão na mão para não perecer a tão pouca distância do final da viagem, e a cadeira... no lugar do banco da frente normalmente retirado dos taxis Fusca! Foi um espetáculo o carregar tudo aquilo dentro daquela pequena maravilha automobilística, a que os outros taxistas assistiram entusiasmados! Grande carro aquele!
A viagem até ao hotel, no centro da cidade, cujo endereço já trazia de Luanda, foi sofrida, pelo incómodo da posição. Depois do preenchimento da ficha de entrada e de tudo carregado até à porta do quarto, nova luta o espera. Como encaixar a cadeira dentro daquele minúsculo compartimento? Simplesmente não cabia, mais as quatro malas, grandes, e os outros itens. A espada foi a única peça que entrou bem! O violão também não se fez muito rogado. As malas umas por cima das outras, em pé, lá entraram, mas a cadeira? Como para tudo há solução acabou ficando também, ao alto, entalada entre a cama e a janela!
Finalmente, perto das três da manhã, já no país que acabava de o acolher com tanta simpatia, ia poder descansar. Estava exausto, e no dia seguinte queria logo ir resolver o problema do teodolito que ficara na Alfândega.
Dormiu até tarde, e assim mesmo poucas horas com a preocupação de tudo o que estava vivendo e sobretudo pela incerteza do futuro. Depois do meio dia lá se mete Francisco a caminho da Alfândega do Aeroporto.
É atendido por uma funcionária, Dona Sueli, uma senhora morena baixinha, a austeridade da função de fiscal da Alfândega sem lograr esconder o sorriso simpático, carinhoso e espontâneo no povo brasileiro, a quem mostra a lista de bagagem, dizendo:
- Ficou ontem aqui aí um aparelho que trouxe comigo, mas, de acordo com esta Lista de Bagagem preciso pagar cinco cruzeiros-ouro na Alfândega.
- Aqui já não se recebem pagamentos nem taxas. Há muito tempo. Só o Banco do Brasil é que recebe os pagamentos das Alfândegas.
Ali bem em frente havia um balcão do Banco do Brasil, onde rápido o Francisco se dirigiu:
- Boa tarde.
- Boa tardji.
- Eu queria pagar isto. Cinco cruzeiros-ouro.
Mostrou o documento. O bancário nem olhou.
- Tem que preencher um DARF.
- Um quê?
- Um DARF.
Francisco nunca tal ouvira em toda a sua vida, nem lhe constava que existisse a palavra darf no Vocabulário da Língua Portuguesa. Em inglês há algo parecido, mas que nada a ver com documentos ou bancos. O seu espanto é fácil de imaginar.
- Mas isso o que é?
- É o impresso para que o Banco possa aceitar pagamento de impostos, taxas etc.
- Muito bem, pode-me arranjar esse impresso?
- Aqui não temos. O senhor tente além na sala dos despachantes. Pode ser que alguém lhe consiga um.
Francisco com o pode ser que alguém lhe consiga um já começou a desconfiar que o tal de DARF não era coisa de tão fácil achar. Este comecinho não estava de cara muito promissora.
- Muito obrigado pela indicação. Onde é a sala dos despachantes?
- Saindo o edifício do aeroporto para a direita, é um prédio que fica do outro lado da rua.
- Obrigado.
Lá vai o Francisco. Na sala dos despachantes, onde sempre se encontra pouca gente por a maioria estar nos armazéns das alfândegas, depois de várias e infrutíferas tentativas, apesar da afabilidade e boa vontade do pessoal com quem se encontrou, o que não se encontrava era o tal DARF. Disseram-lhe que o melhor era ir à Ilha do Governador, a uma papelaria, onde certamente encontraria.
Meu Deus, agora ainda vou ter que andar de barco para ir a uma ilha!
- Onde é a Ilha do Governador?
- Aqui onde nós estamos é a Ilha do Governador. Só que o centro é mais adiante. Aqui só tem mesmo o aeroporto.
Como ainda era longe, Francisco chamou um taxi e parte à procura de uma papelaria. Na primeira em que entrou não vendiam desses impressos mas indicaram outra onde poderia encontrá-los. Na segunda lá estavam os famigerados DARF. Só que os DARF eram somente de três vias, e por via das duvidas, uma vez que as listas de bagagem vinham em quatro vias, o melhor era levar logo uns quantos DARFs para poder estar preparado para enfrentar qualquer nova dificuldade que por via das vias viesse a surgir. O tempo corria e era bom chegar ao banco a tempo de pagar os tais cruzeiros-ouro, retirar o teodolito da Alfândega e ir embora.
Quando olhou melhor para o tal DARF, viu-se perdido. Aquilo era pior que charada. Não conseguia entender nada além do nome e endereço. Correu para a mesma sala dos despachantes a pedir socorro. Eles deviam saber interpretar aquela linguagem cifrada. Um dos rapazes que ali trabalhava, muito amável, prontificou-se logo a ajudá-lo e com o ar mais tranquilo dispara a primeira pergunta:
- CPF?
- Como?
- CPF ou CIC?
Francisco começa a sentir-se mais perdido. Ele pensava que no Brasil se entendiam através da língua portuguesa, e depois do DARF, agora lhe falavam em CFPs e CICs. Devia ser linguagem nativa, talvez tamoio ou tupinambá.
- Desculpe, mas não entendo.
- O senhor não tem CIC?
- Que eu saiba não. Porque haveria de ter? Sinto-me bem de saúde, um pouco cansado da viagem de ontem, tenho as vacinas todas em ordem, porque haveria de ter semelhante coisa?
- CIC é o seu numero de cadastro na Receita Federal.
- A mim ninguém me deu numero algum, e depois não tenho a menor idéia do que isso seja, nem sou cadastrado.
- E o senhor vai pagar o quê?
- Cinco cruzeiros-ouro.
- C I N C O  C R U Z E I R O S - O U R O ? O que é isso?
- Eu sei lá o que é. Vocês perguntam-me isso a mim? Falam uma linguagem cifrada de CICs, DARFs, e outras coisas. Eu acabo de chegar e não sei nada disto. Só sei é o que aqui está escrito neste carimbo: pagar cinco cruzeiros-ouro nas Alfândegas do Brasil para validar este documento.
- Eu nunca ouvi falar em cruzeiros-ouro.
Foi o animador comentário que ouviu.
- Hey! Milton! O que são cinco cruzeiros ouro?
- Cruzeiros ouro? Para quê?
- Sei lá.
- Não faço a menor idéia.
Na inteira sala dos despachantes nunca alguém ouvira falar em cruzeiros-ouro!
Francisco, que não era dos que desistia facilmente começou a ficar desanimado. Sentia-se meio perdido num mundo novo, onde não conhecia ninguém, e onde ninguém parecia saber como resolver o seu problema. Bonito serviço!
- O melhor é o senhor se dirigir diretamente à Receita Federal. Lá deve encontrar quem o esclareça.
- E onde é a Receita Federal?
- Lá adiante, na Ilha do Governador.
- Muito obrigado.
De lá viera há pouco, e novamente de taxi, corre para a Receita Federal, a tarde já ia avançada, e não queria deixar para o dia seguinte. Chegou a tempo e por sorte pouca gente estava para ser atendida. Uma simpática moça ao balcão, depois das boas tardes de ambas as partes, Francisco a medo, aventou:
- Eu preciso pagar cinco cruzeiros-ouro, e creio que para isso tenho que preencher este DARF. Até agora ainda não consegui que alguém me explicasse como devo fazer.
- Um momento.
A moça afastou-se, entrou num sala, e regressou logo em seguida, sempre amável:
- O chefe não está. Só ele é que vai poder lhe ajudar. Como já passa das quatro horas, ele já não vem mais hoje. O senhor volte amanhã depois das dez horas.
Todo o mundo muito solicito, mas resolver o problema é que nada, e ainda por cima se só o chefe podia ajudar, o caso devia ser complicado. Francisco cansado, bastante desanimado, volta para a cidade, sempre de taxi, que era o único meio de transporte que lhe garantia não se perder na imensidão do Rio, onde lhe estava parecendo difícil fazer-se entender.
Procurou um amigo de Angola que já estava no Rio há um mês, com quem foi jantar, desabafar, beber uns chopes e tentar descontrair.
O alma do Rio, dos cariocas, é uma grande terapia para os desanimados. A sua constante alegria consegue superar os problemas que amanhã certamente se vão resolver. Amanhã você quebra esse galho!, Deixa comigo!, uns quantos chopes estupidamente gelados e qualquer um se convence que o amanhã vai ser moleza!
Esta conversa num dos alegres bares de Copacabana deixou Francisco com a barriga mais pesada e alma e cabeça mais leves. Foi dormir.
Dia seguinte, antes das dez outra vez a caminho da Receita Federal, na Ilha do Governador! O chefe, senhor Jurandir, ainda não chegou, mas não deve demorar. Não devia, mas demorou. Só duas horas mais do que o previsto, e adentrou o edifício passava do meio dia.
Jurandir, homem de meia idade, longa experiência em todas as lides da Receita era a pessoa indicada para destrinçar o problema.
Quando por fim se expôs o problema ao tal Sr. Jurandir, este olhou, pensou, franziu o sobrolho, chamou o ajudante e depois de trocarem algumas impressões técnicas sobre o assunto chegaram à brilhante conclusão de que ninguém sabia o que eram os tais cruzeiros-ouro! Jamais tal tipo de moeda existira de acordo com os seus vastos conhecimentos.
Decidiu mais, e melhor. Mesmo com o Francisco na frente telefonou para outro técnico, mais chefe ainda, a quem pôs o problema:
- Boa dia Dr. Esmeraldo. O senhor vai bem? A família bem? Tudo bem?
- !
- Dr. Esmeraldo, o senhor que é bem mais experiente do que eu, lembra-se do que seria uma taxa em cruzeiros-ouro?
- !
- Muito obrigado. Muito prazer em ouvi-lo.
Nem o Dr. Esmeraldo sabia!
Resolver o problema do CIC e do destino da verba do pagamento foi simples, mas como a Receita Federal não recebe pagamentos, mas sim, e só, o Banco do Brasil, a receita dada pela Receita foi que Francisco se dirigisse ao dito banco, já com o DARF se não completamente preenchido pelo menos esclarecido sobre parte do seu preenchimento. O tal ouro é que estava estragando tudo, e isso de moeda é assunto de bancos.
Ainda uma vez mais, de taxi, a caminho do Aeroporto do Galeão para a agência do Banco do Brasil. DARF na mão e mais os restantes documentos, como listas de bagagem, bilhete de avião para provar que estava no país, há dois dias, passaporte, atestados de vacinação, tudo. O tempo correndo, bem como as despesas com taxis, e as esperanças de resolver o problema cada vez mais tênues.
- Pronto. Pode receber este DARF?
Diz-lhe o funcionário do banco:
- Aqui não recebemos DARFs. Isto é somente um posto de câmbios. Só na matriz.
- ?!?!?!?!? Na matriz? Onde é a matriz?
- No centro. Perto da Candelária.
Pobre Francisco. Ainda não foi desta! Quase três horas da tarde, mais uma vez de volta para a cidade. Longe. De taxi, claro.
- Depressa, para a Candelária, por favor.
Os taximetros contando, o tempo e dinheiro voando!
Correu para o Banco do Brasil, na esperança de ali encontrar a chave da intrincada charada, e poder acabar com este peregrinar por causa do teodolito.
Nem conseguia apreciar a beleza da paisagem do Rio nem se encantar com o rebolado das belíssimas morenas que circulavam por todo o lado, tal a confusão que o ouro havia criado! Aliás ouro sempre causa confusão!
Nos bancos, para se fazerem levantamentos ou pagamentos, normalmente é aos Caixas que as pessoas se dirigem, e Francisco escolheu aquela com a menor fila e esperou sua vez, toda a papelada na mão.
- Por favor, eu quero pagar este DARF, em quatro vias, no valor de cinco cruzeiros-ouro.
O caixa olhou-o com cara de quem estava falando com um alienígena! Felizmente Francisco não ia vestido de verde.
- Um momento.
Fechou a gaveta do dinheiro, saiu de seu canto, foi falar com o presumível chefe, e voltou com aquele ar frio e desconfiado dos caixas:
- Ali. Naquele balcão.
Francisco foi para aquele balcão, enfrentou nova fila, e por fim já com a voz a enfraquecer, com medo de pronunciar aquelas palavras mágicas que assustavam todo o mundo, repetiu, quase em sussurro:
- Eu quero pagar este DARF, em quatro vias, no valor de cinco cruzeiros-ouro.
A moça daquele balcão repetiu o um momento e a atitude do seu colega caixa, e foi direto a outro presumível chefe, que Francisco via agora abanar a cabeça em sinal de negação. Volta a moça:
- No primeiro andar.
- No primeiro andar? Obrigado.
Lá vai o peregrino para o andar de cima, onde a cena se repete outras duas vezes. Era sempre ou em outro balcão, ou outro caixa, etc. Era sempre com outro! Por incrível que possa parecer, ninguém, no Brasil, sabia o que eram cruzeiros-ouro, que o carimbo aposto em Luanda pelo Cônsul deste país obrigava a pagar para regularizar as listas de bagagem!
O problema continuava por resolver e entretanto os caixas do banco fecharam!
Longe iam os dias da euforia do ouro de Minas, da Chica da Silva, do Convento de Mafra construído (para quê?) com esse ouro, quando se pagava o quinto de imposto nesse metal. Mas, então o tal carimbo, porquê? Seria uma reminiscência do século XVII ou XVIII? Não era possível. Algo de fato parecia ter ficado esquecido e perdido no tempo. Alguém tinha que resolver este impasse, e como desde a Receita Federal ao Banco do Brasil ninguém era para tanto capacitado ou dotado, esse alguém teria que ser ele mesmo. Sim, só ele, o Francisco.
Tantas situações inesperadas e incríveis lhe apareceram pela vida fora, a grande maioria das quais foi resolvendo, que este desafio acabava sendo somente um a mais, talvez para o pôr à prova num país novo, e ver se estava suficientemente capaz para enfrentar obstáculos que pareciam intransponíveis. Apesar de recém chegado, e só, não se ia deixar derrotar com facilidade.
Nessa noite, depois de deitado, apesar de cansado, ficou congeminando como dar a volta ao problema. De repente surgiu a luz no fim do túnel!
- Já sei.
Terceiro dia no Rio, à hora de abertura do Banco, Francisco é o primeiro a entrar. Vai direto ao caixa:
- Por favor pague este DARF no valor de vinte cruzeiros, mas em quatro vias.
- Em quatro vias não posso porque a máquina só registra três vias e se registrar a quarta entra como outro pagamento.
- Então pague-se de dois DARFs, cada um de vinte cruzeiros.
Acabou pagando quarenta cruzeiros. O valor do dólar em relação ao cruzeiro, naquela época era de cerca de um para oito, o que significa que pagou uns cinco dólares.
Assim se fez. Esta etapa, grave, secreta, por não ser do conhecimento de quem quer que fosse, a não ser dele próprio, estava ultrapassada. Tinha a certeza que o valor dos DARFs estava mais do que certissimo! Só ele sabia o câmbio dos tais cruzeiros-ouro! Sentia-se reconfortado, e pronto até a discutir na Alfândega a ciência da conversão dos famosos cruzeiros-ouro, se por ventura aparecesse algum sábio, possivelmente o único no Brasil a saber o que eram cruzeiros-ouro. Mas também seria fácil afirmar que esse valor fora indicado pela matriz do Banco do Brasil. E matriz, é matriz. Duma mentirinha destas ninguém ia desconfiar, discutir ou contestar!
Munido desses preciosos papeis, mais uma vez de taxi, a caminho do Galeão, com a esperança quase certa de que iria resolver o assunto.
Guichê da Alfândega.
- A Dona Sueli?
Estava de folga naquele dia. O Francisco fez um ar desconsolado, porque com este outro obstáculo ele não contara. Não era um obstáculo, mas como já conhecia aquela senhora, pareceu-lhe que expondo o problema a outrém teria que enfrentar nova serie de dificuldades e complicações. Mais um contratempo? O fiscal de serviço, tranquilo, perguntou qual era o problema.
- Eu vinha buscar um aparelho meu que ficou aqui. Já tenho a documentação toda em ordem.
- Por favor. Entre.
Entrou para uma sala grande, cheia de prateleiras à volta, onde havia de tudo desde embrulhos, a malas, caixas, objetos estranhos, máquinas, toda a sorte de mercadoria e bagagem que por qualquer razão a Alfândega retivera.
- Consegue identificar o que procura?
Após uma rápida busca com os olhos não foi difícil distinguir no alto de uma das prateleiras, o teodolito. Uma espécie de obus, cor rosa alaranjado, inconfundível.
- É aquele aparelho ali em cima. De cor rosa-laranja.
O fiscal chamou um subalterno a quem, enquanto se afastava, deu ordem que descesse o teodolito, que foi colocado em cima da grande mesa no centro da sala.
Francisco, com toda a documentação que o obrigara a quase três dias de correria pelo Rio e Ilha do Governador, além do custo das múltiplas viagens de taxi e dos DARFs, entretanto sozinho naquela sala, com o obus ao alcance da sua mão, aguardou o regresso do fiscal. Só faltava pegar nele e sair dali. Mas estaria tudo em ordem? Despachos aduaneiros sempre são complicados. A tensão era grande.
Passados alguns momentos entra o fiscal.
- É isso?
- É sim senhor.
Respondeu, aguardando que lhe pedisse os documentos e procurando antever a cara do fiscal quando fosse analisar o famoso caso dos cruzeiros-ouro.
- Pode levar.
- E os documentos?
- Não é necessário!

 

Alô! Alô! Brasil! Lá estava o Corcovado a abrir os braços ao imigrante. Imigrante não, refugiado!
Passado no Rio de Janeiro, em Julho de 1975

***************************************

Cruzeiro Ouro - 2
 (Continuação da "Saída de Angola" até chegarmos ao "Cruzeiro de Ouro" !)Com o anúncio do fim do colonialismo e independência das colônias, os escudos de Portugal, bem como qualquer outra moeda normal, decente, como dólar, franco, etc. começaram a ter uma procura imensa, e o ágio do mercado negro atingiu valores inconcebíveis, alcançando quinhentos por cento! E por fim nem de graça alguém queria aquelas notas. Quem guardara o dinheiro em Angola de repente viu-se sem nada!


Tantos anos de trabalho e Deus sabe que sacrifícios para economizar alguns tostões, de repente se viam jogados no lixo. Casa própria, propriedades agrícolas, industrias, comércio, uma vez que não havia compradores para tão imensa quantidade da oferta dos que a qualquer custo queriam ou eram forçados a ir embora, nada valiam, e mesmo que por muita sorte alguém conseguisse vender qualquer coisa, por preço sempre irrisório, a conversão dessa moeda para fora do país a transformava em quase zero!

Perderam-se assim vidas de trabalho.
Não foi só isto que perdeu quem ali vivia e trabalhou. Como Angola não estava ligada ao sistema previdenciário de Portugal, por mais outra canalhice dos governos centrais, os trabalhadores perderam todos os direitos adquiridos relativamente a aposentadoria e segurança no trabalho, que acordos locais, sancionados pelo governo davam valor de lei!
Quem teve que ir embora de Angola, necessitava levar consigo algum dinheiro e se não o transformasse em mercadoria, qualquer, para troca, tal como nos tempos pré históricos, não levaria nada! Mas o quê? Marfim? Talvez. Diamantes era jogo perigoso porque além de estar ainda sob rigorosa e perigosa vigilância do monopólio e do governo português, apesar de para o fim a confusão ser muito grande, era preciso saber muito bem como comprar e depois saber onde vender. Muitos compraram vidro de farol de carro, moído, por diamantes! Era negócio só para alguns.
Quem se decidiu pelo Brasil, como país de seu futuro destino, e daqui obteve alguma orientação, concluiu que a melhor opção para transferir algum dinheiro, seria levar carros importados, sobretudo Mercedes, e algumas outras coisas pequenas, como peles de zebra, com fácil aceitação para tapetes, diamantes, que seriam uma ótima opção, mas com as dificuldades de compra atrás apontadas. Pouco mais.
Quem ia para Portugal levava geladeiras, aparelhos de ar condicionado, rádios, automóveis e tudo quanto conseguisse encontrar, de preferência novo, para mais fácil venda no destino. Como é evidente num instante a oferta rareou, e os preços de mercado dispararam. As lojas de eletrodomésticos vendiam tudo com uma velocidade incrível.

Quanto aos carros, como não era permitido sair sem que tivessem pelo menos um ano na posse do atual proprietário, a solução foi convencer os funcionários da Conservatória do Registro de Veículos, a se enganarem na data da compra. Outros mais ágeis ou hábeis falsificaram carimbos, assinaturas, documentos, que de qualquer modo ninguém estava interessado em conferir. Enfim era um salve-se quem puder! Poucos puderam.

Cada um que se virasse. Naquela ocasião nem os Três Mosqueteiros se safavam. Não era mais um por todos, e todos por um. Era cada um por si. Criadores de gado houve que passaram umas quantas manadas através da fronteira com a Namíbia e lá as negociaram, outros mais afortunados levaram inclusive aviões, e até pescadores saíram com os seus barcos de pesca, alguns dos quais chegaram ao Brasil e outros a Portugal!
Muitos outros não lograram sair com mais que a roupa do corpo, e os que nem sequer dinheiro amealharam para comprar as passagens de avião para ir embora, muito lutaram e padeceram para conseguir um canto num avião militar ou civil que os levasse dali para fora.
Nem transporte o governo de Portugal pôs de imediato à disposição dos seus súbditos que quisessem retornar ao seu país. Eram ali indesejados. Temidos pela concorrência que poderiam vir a fazer, e fizeram com a sua capacidade de trabalho, contra um povo que estava adormecido na tranquila posição de colonizador!

Um dia ainda virá a escrever-se a história de toda aquela infâmia portuguesa, que além de não se ter preocupado e agido corretamente com os seus filhos, ainda abandonou à sua triste sorte os povos que dominou, pouco se importando que se viessem a matar uns aos outros, em horrorosas guerras civis, o que claramente se previa e veio a acontecer, deixando-os na maior miséria.
Grande numero dos membros do governo da revolução portuguesa estavam unicamente interessados em si próprios, e para se afirmarem num teatro político internacional, que muitos pensavam continuaria indefinidamente a ser partilhado pelos dois blocos, este-leste, apostaram pelo leste oferecendo-lhes com a maior rapidez possível todas as colônias sem o mínimo respeito pelas diversas forças locais, étnicas ou políticas.
Quem se aproveitou de todo este caos foi Cuba, que tendo gente e exército a mais na sua ilha, e pouco que lhes dar a fazer e de comer, num instante estava nos dois territórios ajudando os novos governos a se defenderam dos grupos rivais, com numerosíssimo exército, além de milhares de conselheiros. Essa ajuda amiga incluiu o infame roubo de completas instalações industriais que por desnecessárias ao país foram carregadas inteirinhas para a sua ilha, como fábricas de farinha de peixe e outras, e ainda muito equipamento diverso. Levaram inúmeros automóveis que descaradamente roubavam nas ruas, e houve até gente que viu pela televisão, aquando da visita dum membro do governo português a Havana, um carro estacionado na rua ainda com a placa de Angola! Mudar a placa para quê?
Angola pagou muito caro por essa ajuda. E até hoje não esqueceu a arrogância dos seus desinteressados conselheiros.

Alguns dos membros da idealista e altruísta revolução portuguesa acabaram sendo os principais vendedores de armas e alimentos para Angola, tendo, como é de imaginar enriquecido fácil, rapidamente, e muito. Muito. Para estes vendilhões quanto mais guerra melhor, mais negócio, mais riqueza! Daí que os entendimentos de paz...
Páginas da história dos povos que não podem ser esquecidas, mas que custam a manter na memória.
Para os que optaram por ir para o Brasil, o governo brasileiro tudo facilitou, permitindo que os imigrantes levassem todos os seus pertences e ainda um carro por família. Quem pôde trocou o seu por outro melhor ou comprou por exemplo um Mercedes tão novo quanto possível, garantindo assim uma razoável transferência de divisas que lhe permitiria enfrentar os primeiros tempo de incerteza num país novo, que apesar de ter a mesma língua lhes era totalmente desconhecido.

Deste modo para aqui vieram alguns carros destes, que melhor ou pior num instante se venderam. Eram coqueluche. Ainda são.
Francisco foi um dos que, com numerosa família, antes de tomar a decisão de ir para o Brasil, fez uma visita prévia a este país onde obteve uma série de informações que lhe permitiram preparar com mais objetividade a transferência das suas poucas economias. De regresso a Angola após uma complicada ginástica financeira comprou um desses Mercedes. O melhor que encontrou, num mercado onde tudo já rareava.
Ao mesmo tempo preparou o transporte de parte das suas mobílias, roupas de casa, e muitas outras coisas. Pensava levar alguns pares de dentes de marfim, mas que acabaram por ser roubados na altura da embalagem dos móveis.

No Brasil houve ainda quem lhe sugerisse que levasse um teodolito, aparelho para trabalhos de topografia e geodesia, bom, que aqui não era fácil encontrar. Em Luanda equipamento deste tipo, para trabalhos muito especializados, não era objeto de procura, e só técnicos sabiam o que aquilo era. Francisco comprou um, suíço, novo. Como era técnico agrícola não foi difícil demonstrar que o mesmo lhe fazia falta como equipamento de trabalho de campo. O que até poderia ser verdade, e assim o Consulado do Brasil em Luanda, autorizou-o a levar consigo tudo isso, bem como os seus pertences, para o que unicamente teve que preencher as necessárias listas de bagagem. Estas listas de bagagem para controle aduaneiro eram passadas em cinco vias, ficando uma em poder do Consulado, e as outras a seguirem junto com a bagagem. Todas visadas com dois carimbos, um com a assinatura do cônsul ou seu representante, e outro contendo uma cláusula especial:


Para validar este documento é
necessário pagar nas Alfândegas do Brasil
Cr$5,00 - cinco cruzeiros ouro.

Tudo bem. Lá se pagará.

Enquanto a maioria dos pertences seguiria de navio, o teodolito, por ser aparelho delicado, e segundo lhe disseram, de fácil conversão em moeda, tão necessária para as primeiras despesas à chegada, seria levado como bagagem no avião.
Data aprazada, família já em Portugal, em segurança, Francisco despede-se definitivamente de Angola onde vivera mais de vinte anos. Os filhos aqui nascidos, muitas e muitas amizades profundas, antigas e novas, criadas e consolidadas, um conhecimento grande de todo o país e muito das suas gentes. Pela sua mente passava em turbilhão o mais importante período da sua vida, vivida com grande intensidade. O nascimento e crescimento dos filhos, a consolidação da carreira profissional que o levou a percorrer todo o país, as empresas que criou ou ajudou a crescer com todo o entusiasmo da sua juventude, as noites passadas junto ao fogo, bem lá no interior do sertão esperando pelo amanhecer para voltar a caçar, as intermináveis e ingênuas conversas com as gentes da terra nessas noites, as próprias caçadas, a grandiosidade de algumas regiões montanhosas, outras semi desérticas, o deserto do Namibe, aquele mar todo, etc.
Os últimos dias foram extenuantes. Por um lado a azáfama de preparar tudo, quantas vezes ouvindo balas zunirem por cima da sua cabeça, o tentar despedir-se de amigos que não sabia que sorte levariam e se os voltaria a ver, e a tristeza de abandonar uma terra de que tanto gostava.
Deixava para trás, além dos mais de vinte anos de trabalho a sua maior economia, fruto conseguido com muita ginastica financeira: a casa, comprada, que não era transferível, nem naquele momento vendável, bem como uma série de móveis, livros e eletrodomésticos que ali ficaram, para... para quem? Nunca chegou a sabê-lo!
Depois de embalados os móveis e outros pertences de casa numa espécie de contentor a mandar por navio, constatou que coisas em excesso ficaram para levar consigo no avião: quatro malas grandes com roupa, e um resto de pequenos detalhes, como álbuns de fotografias e filmes, que a se perder tudo o resto, estas recordações não podiam ser perdidas. Eram a sua vida, e de toda a sua família, o casamento, os filhos, as caçadas, os amigos, etc.

O contentor seguiria de navio, mas nessa época, com greves permanentes no cais, no porto e na estiva de Luanda, e tiroteio na cidade, os navios esperavam fundeados na baía, dias e dias seguidos para atracar e muitos acabavam por ir embora sem descarregar o que traziam, nem carregar nada de volta. O contentor depois de pronto, ficou mais de um mês aguardando ser embarcado e várias vezes o despachante teve que refazer a documentação porque o navio previsto já não atracava! Por fim foi obrigado a seguir por caminhão para o Lobito a quinhentos quilometros de Luanda, onde a situação era quase normal, e aí ser então embarcado. Só que a estrada Luanda-Lobito era uma loteria. Assaltos constantes pelos soldados desgarrados das forças armadas dos diversos partidos que, com o fim da guerra, estavam desempregados e com fome! Nesses assaltos tudo podia sumir, inclusive o próprio caminhão.

Para o Lobito seguiram num comboio de quatro caminhões, dois com contentores, um do Francisco outro de um amigo e colega, o Guedes da Silva, e dois com automóveis, um deste mesmo amigo e outro com um belo e antigo “MG” de outro amigo que o Francisco se oferecera para fazer chegar ao Brasil. Ao Lobito chegou unicamente um dos caminhões, o que levava o seu contentor. Os outros três... nunca mais se soube nada deles! Nada. Sumiu tudo, como por encanto, incluindo os caminhões. Previdente o Francisco em não largar da mão os álbuns com fotografias! Confusos e perigosos tempos aqueles.
Entre as coisas que decidiu levar consigo no avião, fazia parte uma cadeira de especial estima comprada há alguns anos a um velho ourives na Ilha de Moçambique. Depois de ter comprado umas pulseiras de artesanato lindissimo feito de moedas com elevada porcentagem de prata, viu esta cadeira onde o bom homem fazia a sua sesta, e após alguma luta, levou-a consigo. Cadeira grande, conhecida como espreguiçadeira, antiga, possivelmente feita com madeira de Teca da Índia, fundo e costas de palhinha trançada, muito confortável e fresca, que a seguir no tal contentor junto com os outros móveis poderia chegar ao Brasil desmantelada. E para complementar um violão e o teodolito.
Antes de sair de casa pela última vez, sempre é bom dar uma volta a tudo, devagar, para olhar e se despedir do que tanto lhe custara e ali ficava, e também para se assegurar que nada havia sido esquecido. Num canto jazia ainda uma espada velha comprada por graça há muitos anos, na Feira da Ladra, em Lisboa, que tem gravado nas costas da lamina o nome de um oficial do exército francês de 1862 a quem pertenceu! Um bibelô a mais.
- Vai também comigo no avião.
Como bagagem podia levar somente vinte quilos. O excesso custaria caro. Para essa eventualidade guardou um resto de dinheiro de Angola e ainda alguns cheques que seriam cobertos pelo ultimo saldo que ficou no banco. E lá morreu.

Finalmente ia sair de Angola. Com toda a amargura que esta radical mudança da sua vida implicava, mais ainda por ter que lá deixar ainda um filho que estava terminando os exames. Quase com dezoito anos, ficaria quase um mês em casa de um primo, mas a convulsão que se vivia na cidade era demasiado preocupante.
Dois amigos foram levá-lo ao aeroporto, onde chegou mais morto que vivo pelas emoções e trabalhos de última hora. Toda aquela bagagem não cabia num só carro.
O estacionamento do aeroporto parecia engalanado para as despedidas: as armações de ferro com trepadeiras como bouganvileas e chuva de ouro (Flor de Santo Antônio) carregadas de flores, formavam grandes taças de colorido diverso, muito vistosas, querendo emprestar ao ambiente uma alegria festiva onde reinava uma tristeza fúnebre. Ninguém fazia tenções de voltar depois de sair, e a beleza de todas aquelas flores eram como uma delicadeza de despedida da terra que todos, todos, tanto amaram e eram forçados a deixar.

No saguão do aeroporto a confusão era impressionante! Muitas malas, sacos, embrulhos, caixas e caixotes de todos os tamanhos, gente, adultos e crianças ali acampados há dias, alguns há semanas, dormindo no chão, à espera de uma vaga em aviões civis ou militares que os levassem embora. Muitos deles depois de perdido tudo o que possuíram, sobretudo os que viviam no interior, de onde foram obrigados a fugir à pressa. Os balcões das companhias aéreas fervilhavam com os pedidos angustiantes dos que não viam a hora de sair. Uma autêntica parafernália.

Como o seu vôo era direto para o Brasil e não para Portugal a confusão era um pouco menor. Quando chegou a sua vez de ser atendido, a muito custo conseguiu, qual malabarista de circo, colocar tudo de uma só vez em cima da balança. As quatro malas, grandes, a cadeira, ainda maior, por cima, por fim no topo o tal teodolito. A escala da balança marcava de 0 a 100 quilos! O ponteiro deu uma volta inteira, passou o zero e estabilizou nos 25! 125 quilos, o que lhe iria custar uma pequena fortuna em excesso de bagagem. Aí a confusão ajudou: o funcionário olhou para o mostrador viu 25 kg, achou que 5 a mais não faziam qualquer diferença e despachou tudo! Os funcionários das companhias andavam também meio enlouquecidos com tanta e tão permanente bagunça que durou ainda muitos meses. Foi o abraço de despedida final!
Francisco estava safo desta! Lá seguiam sem pagar um cêntimo todas aquelas imbambas¸ e mais a espada, o violão e o teodolito. A espada e o violão sem caixa, iam na mão.

Passou o controle de saída e ficou aguardando a chamada para embarque quando encontrou uma velha amiga, Luiza Neves e Sousa, que devia seguir no mesmo vôo. Como funcionária duma companhia aérea o bilhete dela era especial. Só embarcaria se houvesse lugar disponível, mas nessa época, todos os vôos estavam lotados, independente do destino. Todos queriam sair de Angola. Já há mais de uma semana que a Luiza aguardava a sua vaga. Tudo parecia que ia finalmente dar certo, quando foi chamada ao balcão da Varig, e lhe anunciaram que teria que esperar mais uma vez um próximo vôo, visto em cima da hora o ultimo lugar disponível ter sido requisitado pelo Cônsul do Brasil!
- E as minhas malas? Já foram despachadas! Já devem até estar dentro do avião.
- Se quiser vai comigo ao porão do avião e retira-as, a menos que consiga alguém que se encarregue de as levantar à chegada ao Rio, disse o funcionário da Varig.

Sobrou para o Francisco! Depois de lhe fazer uma rápida descrição das malas, Luiza entregou-lhe um molho com imensas chaves para a hipótese de ter que as abrir na Alfândega do Brasil, desejou-lhe boa viagem e disse que ia telefonar para uns amigos lá Rio. Eles iriam ao Aeroporto esperá-lo e se encarregariam de lhe guardar as malas. Eram só nove! Só. O que somado a tudo o que ele já levava ia certamente dar um boa confusão à chegada. Francisco não era de se atrapalhar e assumiu mais esse pequeno encargo.

Adeus Angola!

(Continua com o famigerado Ouro!)

**********.
CRUZEIRO OURO



(Para quem não conhece a história das moedas de Angola, e... para quem quiser se relembrar.
No último “capítulo” vão conhecer o “cruzeiro Ouro”! A desconhecida moeda do Brasil)


Tremenda confusão foi a saída de Angola nas vésperas da independência. A incerteza do futuro e o triste exemplo de algumas desastrosas descolonizações anteriores, não deixava ninguém viver esse momento com serenidade. Para além de todos os graves problemas que se punham aos portugueses ou angolanos brancos, tais como para onde ir? fazer o quê? como? uma das maiores dificuldades que ajudava a complicar a vida de cada um, era conseguir converter em moeda útil, com aceitação fora de Angola, o dinheiro das suas economias eventualmente amealhadas ao longo de anos e anos de trabalho. Transformar vales em divisas!


A política de Portugal em relação ao dinheiro circulante nas suas colônias, desde sempre, não pode dizer-se que fosse caricata, porque segundo a ótica da metrópole era no mínimo inteligente. Para os colonos e povos colonizados era infame. Exploração.


O que os comerciantes faziam com os trabalhadores rurais, pagarem-lhes em vales a descontarem nas suas próprias cantinas, assim como o fizeram muitas companhias agrícolas importantes em Moçambique que chegaram ao desplante de emitirem moeda própria, com circulação exclusiva nas suas propriedades e lojas, era afinal o mesmo que a metrópole fazia com as suas colônias. Vales para os manterem ocupados a produzirem para nós!


Em Angola, desde os primitivos tempos correu diversa forma de dinheiro. No século XV, aquando da chegada dos portugueses, o instrumento de troca mais utilizado era um pequeno búzio com o nome de zimbo, cuja casa da moeda se encontrava na Ilha de Luanda. Esta ilha é uma restinga que por vezes o mar separava do continente, abrindo uma pequena passagem junto à base do morro onde se encontra a Fortaleza de S. Miguel, transformando-a assim em ilha. É ela que forma a lindíssima baía de que Luanda tão justamente se orgulha.



Nalgumas praias daquela ilha o zimbo era colhido, somente em alguns dias do ano, conforme as luas, umas vezes do lado do mar outras do lado da baía, sempre sob a fiscalização de um delegado do Rei do Congo, o Manicongo. A apanha do zimbo, quase sempre feita por mulheres, treinadas para essa finalidade já que esse molusco não se encontra enterrado na areia. Havia uma técnica própria, mantida em sigilo, e a prova que não devia ser fácil colhê-lo é que quando os holandeses descobriram mais tarde, em Benguela um outro zimbo, para o apanharem foram a Luanda buscar gente especializada. A quantidade apanhada nunca ultrapassava a necessária para fazer face às despesas do reino, afim de manter estável o seu valor. Com o controle rigoroso exercido sobre a colheita dos zimbos o Manicongo conseguia ser o único emissor de moeda, e deste modo, sem que a palavra existisse ainda em África, a inflação se mantinha estabilizada.

O zimbo é uma pequenina concha, um búzio, muito bonita e uniforme, de cor cinza azulada, com aceitação, em tempos mais antigos, pelo sertão adentro. Servia de moeda para pagar quaisquer mercadorias vindas até de muito longe em África e mesmo da Ásia. Com ela se comprava tudo, naqueles tempos sobretudo escravos e marfim, que sendo igualmente instrumentos de troca, como o sal, não eram contudo fáceis de armazenar, transportar e guardar contra fugas ou roubos. Comprava-se até ouro. Valor fixado, fácil de transportar em quantidades grandes, dificilmente encontrado fora da Ilha de Luanda, sempre por isso mesmo constantemente sob vigilância e controle do Rei do Congo.

Nesta ilha viviam os Muxiluandos, pescadores, que sabiam que a apanha do zimbo lhe era vedada, sob pena de severos castigos. Mandava, como sempre, o mais forte.

Como qualquer moeda hoje corrente, dividia-se em sub-múltiplos: uma funda 1.000 zimbos, o lifuco 10.000 e o bondo 100.000, e após a chegada dos portugueses passou a ter a sua correspondência em réis, a moeda portuguesa. De inicio um bondo valeria cinco mil reis.

O seu valor era de tal modo importante que alguns aventureiros começaram a levar de outras paragens, como Brasil e Madagascar, outras conchas, entre elas os cauris, com circulação semelhante na África oriental e central, mas não sendo exatamente iguais ao zimbo não eram facilmente aceites pelas populações do sudoeste africano. Uma espécie de moeda falsa! Já naquele tempo...

Também se utilizou como moeda cobre fundido em forma de um  conhecido como cruzeta, mas pouco difundida fora das regiões interiores do Congo e Katanga, onde o cobre era explorado.



Como acontece com todas as moedas, o tempo foi desgastando o valor do zimbo, e entretanto outro tipo de moeda, ou instrumento de troca, começou a substituir aquele. Uma espécie de pequena esteira ou pano.

Eram fabricadas com uma fibra tipo ráfia, tirada da folha duma palmeira, quadradas, em geral com um côvado quadrado, isto é, cerca de sessenta e seis centímetros de lado, havendo no entanto outras menores. Estes panos eram de tal forma bem trabalhados e bonitos "que se podiam comparar aos melhores cetins feitos na Itália"!



Os que vinham do Congo chamavam-se panos limpos e, os menores, de acordo com o tamanho eram cundis ou meio cundis. Os do Luango eram libongos, bongos, sangos e infulas. Corriam todos igualmente em Luanda já no princípio do século XVII, quando o zimbo começou a perder cotação, mas só passaram a ter o seu valor oficializado depois de carimbados com um R pelo Senado da Câmara de Luanda. O pagamento às tropas portuguesas era feita com estes panos, bem como o pagamento de impostos, e compras de toda a espécie. Moeda corrente.

A desvalorização, fenômeno que se mantém através dos tempos, chegou aos nossos dias, e há-de continuar, atingiu também esta moeda que foi diminuindo de tamanho, até ter somente cerca de dez centímetros de lado. Passaram então a ser chamadas Macutas.

Em meados do Sec. XVII, quando governava Angola o grande administrador Salvador Correia de Sá, este, com o apoio do Senado da Câmara, informou para Lisboa, a Sua Majestade, o dono, que por absoluta necessidade para a vida da Colônia ia começar a emitir moeda de cobre, sob total controle da mesma Câmara. Os panos - macutas - escasseavam, os soldados ficavam muito tempo sem receber os seus soldos o que causava sérios problemas para a segurança da população, porque desertavam e se revoltavam, e todo o comércio se ressentia por não existirem meios de pagamento suficientes para o movimento económico daquela terra. Como era de esperar, na resposta ao governador em Agosto de 1650, o Rei se opôs terminantemente à emissão de moeda longe do seu controle!


Só quase cinquenta anos mais tarde, no final do século XVII, em 1694, é que chegava a Angola a primeira moeda, de cobre, cunhada no Porto, com valor em réis. Segundo instruções da metrópole, uma vez na colônia deveria valer o dobro! Sempre a mesma vergonhosa exploração das colônias. Ganância e falta de visão.

Esta moeda circulou mais tarde também no Brasil, mas como convinha manter o máximo de controle na evolução de todas as colônias, sobretudo as duas mais importantes, Brasil e Angola, uma pelo que produzia a outra pelos braços que faziam a primeira produzir, foi decidido criar uma moeda para cada lado, com curso unicamente no território para onde era emitida e enviada.
A partir de 1762 Angola passou a ter moeda própria, a que foi dado o nome de macuta, herdado dos antigos panos. Primeiro somente cunhadas em cobre e mais tarde em prata, mas sempre em Portugal. Como é evidente sem a conveniente cobertura ou valor intrínseco, para que não pudesse ser usada fora de Angola! Nem no Brasil o que gerou complicados problemas de pagamentos entre ambas as colônias que muito comerciavam diretamente entre si escravos, farinha “guerra” (farinha de mandioca), tabaco, algodão, açúcar, aguardente, etc.



As macutas tiveram vida longa, até meados do século XX, quando foram substituídas por outra moeda, igualmente privativa de Angola, Angolares ou Escudos de Angola. Sempre sem curso fora.

Independente das dificuldades financeiras que entretanto se atravessaram, o que obrigou à emissão de títulos da Fazenda para pagamento às tropas, em 1861, só muito mais tarde apareceu o papel-moeda.

Chegamos até 1975, com Escudos de Angola, sempre com a mesma circulação exclusiva dentro das fronteiras deste território.
Anverso da moeda de Esc. 10$00


Quem queria se ausentar de Angola em férias, negócios, por razões de saúde, etc. era obrigado a requerer às autoridades governamentais uma transferência de divisas feita através dos Bancos de Angola e de Portugal, que além de burocrática, morosa e nunca ser concedida pelos valores requeridos, era mais um modo de que Portugal dispunha para controlar todo o seu decadente império.
Anverso das primeiras moedas de $50


A cobrança dos pagamentos das exportações era igualmente feita via Banco de Portugal, que recolhia e guardava as divisas estrangeiras, autorizando o pagamento ao exportador em moeda angolana, a tal espécie de vales.


Outro meio ainda de exploração por parte da metrópole eram os preços das compras de produtos coloniais, sempre preferenciais! Pagavam menos do que qualquer outro país comprador. Um outro ainda, a redução de tarifas aduaneiras para as mercadorias transportadas em navios portugueses, pertença de companhias sempre sediadas na metrópole, obrigando a baldeamento em Portugal quando se importava do estrangeiro, com a finalidade de reduzir o custo do despacho que muitas não vezes não compensava o pagamento de dois fretes e a baldeação! E por aí ia.

Modo inteligente e infame de exploração.

Com todas estas manobras o escudo português conseguiu manter ao longo dos anos uma alta e estável cotação nos mercados internacionais. Quando por fim se perderam as ultimas colônias esse mesmo escudo desvalorizou entre oito a dez vezes o seu valor em relação ao dólar, franco francês, marco alemão, e outros! A moeda de Angola virou papel de recordação!

Capa do livro de onde fram tiradas as fotos acima


Quem podia e queria fazer economias em dinheiro autêntico, que valesse em qualquer parte do mundo, normalmente recorria ao mercado negro, onde as moedas fortes tiveram durante muitos anos um ágio de somente cerca de dez por cento, porque Angola nos últimos vinte anos da sua ocupação colonial esteve em violenta explosão de desenvolvimento. Acorriam os investimentos, a produção e as exportações cresciam, e como as oportunidades de negócio eram maiores, a moeda mesmo de circulação restrita e controlada, passou a ter mais valor. De qualquer modo a cobertura da moeda de Angola era unicamente garantida pelo escudo português, o que significava que, mesmo tendo por trás uma economia em franco crescimento, não corria em qualquer outro lugar.


Quem saía para o exterior era igualmente ao mercado negro que recorria porque as autorizações oficiais para transferência de divisas nunca chegavam para as despesas previstas.

Continua...

05-09-2010

Um comentário:

  1. Francisco,

    Mais uma vez, com sua maneira de escrever e sua generosidade, me é permitido acompanha-lo numa das suas muitas aventuras.
    Um abraço,
    Nádia

    ResponderExcluir