segunda-feira, 2 de agosto de 2010

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J O B

Do livro "ANGOLA - 10 Bilhetes Postais", 1955, de A. G. Videira (o famoso Dr. Videira) com ilustrações de Neves e Sousa (o maior pintor de Angola!)


É velho, e velho nasceu. Ou, sem descendência, em milenária decrepitude, aguarda, conformado, a extinção da espécie, se o seu destine não e a eternidade no sofrimento da vida.
Reproduz-se, ainda, o embondeiro?
— Quem topou, jamais, um embondeiro pequeno?!
Tartarin?
— Aquele triste baobab que, no exótico Jardim de Tarascon, «tenait a l'aise dans un pot de reseda», e simples travessura da fantasia de Daudet.
Há, pelo menos, cinco ou seis mil anos (Adanson e Humboldt) que o embondeiro, a malvácea gigante, não conhece mocidade.
Estranha família que a desolação dos trópicos povoa!... Família?! Sem pais, nem filhos. Tudo irmãos, qual deles o mais idoso. 0 sertão e para o baobab um seco e avaro asilo de invalidez.

 

Em África, nesta África ardente, pelo menos, o céu e, em regra, pesado e depressivo. A atmosfera, ensopada de humidade, tem arrepios de maleitas, espalhando chispas de luz que estonteiam e cegam, se nuvens em édredon ou novelos, asfixiantes, serpeando em anéis pelo sopé pedregoso dos cômoros, não descem a rastejar nas baixuras, rolando e esfarrapando-se na copa dos arvoredos. Parda ou dum vermelho torrado e agressivo e a crosta bexigosa da terra; e o cascalho de lascas soltas ou grosso burgau polido, semeado no pálido e mirrado capim que os ruminantes enjeitam, cobre-se do musgo verde-amarelado do tempo, como miserável enfeite duma senilidade pelintra. Minguados riachos, que a seca lambeu, abrem-se em apertadas fendas, de mau hálito, como bocas negras, torcidas no desespero da sede; ou, transbordando, ruidosos, do chuveiro torrencial espalham, ao largo, o esterco fétido dos detritos apodrecidos e a vasa repugnante do leito empapado, Bojudos troncos vencidos pela idade, abatidos pela doença, roídos pelos vermes ou derrubados pela tempestade e pelo raio, do denso sombrio da floresta fazem calmo e recôndito cemitério.
A alegria, a expansão, a exuberância não convida, realmente, a natureza.
Contudo, reagindo à opressão ambiente, na planície brincam os coelhos e as corças, nos bosques florescem as arvores e as trepadeiras, a coberto e à sombra das quais pincham, lépidos, os felinos, e pelos ares, no folguedo de miúdos traquinas, voam e cantam pássaros, divertidos.
Só ele, o colosso real monstruoso e envergonhado, à margem fica, lúgubre e mudo, na trágica escravidão da sua magoa.

 
Ao sol candente, no areal ingrato, onde nada mais se cria, leva o embondeiro o atroz suplício do seu abandono. No próprio seio, cavernoso, roído pelo tempo como os pulmões dum tísico, recolhe e guarda a gota de água que lhe há-de matar a sede. E, fincado no solo a que, em dolorosa e constante penetração, suga o escasso húmus que o alimenta, estende ao céu, na súplica dum pouco de oxigénio» que o ar, rarefeito, em lavaredas, lhe regateia» os braços carnudos, grotescos, torcidos de angustia.Quasimodo do reino vegetal a sua obesa fealdade de hidrópico aleijado de varizes e tumores, ofende a esbelta elegância das mafumeiras, tacangas, muanzas e cabendes, que, no permanente sabbat da floresta, se dão as mãos entrelaçadas de trepadeiras. Até as aves dele fogem, apavoradas da sua congénita deformidade. Só as bembas carnívoras» carregando mirrados gravetos no agressivo bico adunco, no coto mutilado dum ramo fazem os aldrabados ninhos.
A própria liana, ingénua e irrequieta, apenas por escárnio e a leviana maldade de juventude, uma vez ou outra, lhe concede o efémero calor dum abraço e disfarça a calvície com uma postiça cabeleira de verdura. É a sangrenta irrisão da coroa de espinhos, redentora catástrofe do Gólgota.
Por isso, o baobab sofre. Quando, furioso, o vento sopra, na avançada tempestade que se aproxima, tira do ridículo arcaboiço deste monstro resignado terríveis lamentos que vão sobressaltar as feras nos bosques.
Por isso, o baobab suspira. Na torreira escaldante das sestas Março, como coiro ressequido torcendo-se e crepitando nas brasas a sua pele grossa e macia, empolada dos cáusticos chupões do sol, geme, em tímidos, sumidos ais, não a ferroada penetrante das queimaduras, mas a humilhação cruel da troça e do desdém.
Por isso o baobab chora. Pelo cair da tarde, os seus frutos esguios, pendentes de longas e finas hastes, são lágrimas de gigante na projeção dos poentes sanguíneos dos dias de calor.
Nunca sentiu o suave conforto dum carinho, a comiserarão duma ternura. Da sua copa, de rara e mesquinha folhagem, desertam as abelhas aloiradas. E o amor tirânico, profundo, que o devora, na pungente volúpia de perpétua insatisfação, nunca teve o consolo duma semente a germinar.
Ali, ao lado, na bacanal da mata, desafia-o e perturba-o a descarada luxúria do arvoredo; ralam-no de desejos e ciúmes a musica dos casais e os beijos, sem recato, das acácias, no cio da floração.
Tudo, a roda, o excita e provoca.
E tudo se lhe nega.
Morrer?!
— Até a paz do aniquilamento lhe é vedada. Poupam-no a tempestade, o raio e o fogo das queimadas; despreza-o o machado da derruba. A idade enruga-o, desfeia-o, cobre-o de mazelas, mas não o vence; não há moléstia que o tombe. E séculos sem fim passam por ele, tormentos, apenas, acumulando sobre tormentos, a dor, nova dor acrescentando.
A tudo resiste; tudo suporta... com bondade. Solitário amigo! Na amargura da sua pena, é, ainda, o escudo protector contra a cega investida do búfalo ferido; a sentinela vigilante da propriedade; o marco seguro dos geômetras; o guia, sempre atento, dos caminhantes; o cauto sinaleiro do mato. E, quantas vezes, com os bichos e com os homens, reparte, generoso e perdulário, a pinga de água que guardou da chuva!
No martírio e na resignação, o baobab é o Job do sertão africano.

* * *

Há quem, ainda agora, negue os sentidos, a inteligência e a alma das plantas e, encolhendo os ombros com desdém, tenha como de mero e mecânico instinto, as surpreendentes manifestações de vontade e consciência que põem em todos os prodigiosos actos do amor, da reprodução, do crescimento e da morte. Eu, não. Meditando, sem preconceitos nem grilhetas de escola, sobre os reduzidos mas eloquentes dados da minha própria observação, e dos outros recolhendo o que, pelo estudo, pude aprender, — penso que os vegetais, do mesmo modo que as lesmas e os homens, reagem consciente e subconscientemente a percepção do exterior; sentem, vêem e tocam; têm coraçao e têm cérebro.
Sem embargo, porém, a doce paisagem de Entre Douro e Minho que me viu nascer, não logrou despertar a minha sensibilidade embotada.
E, hoje, já velho, mais me comovem as chispas rubras duma forja, enquanto, na bigorna, o ferreiro esmaga e molda o metal incandescente, do que a delambida suavidade duns campos em flor. A harmonia das cores, a beleza plástica, se um sopro de vida humana as não anima, ora, mais que nunca, carecem de sentido na receptibilidade rudimentar da minha alma selvagem, primitiva, E os meus olhos, cansados de ver a tragédia do Mundo, já não abrem para o coração senão o caminho da desgraça, Dai, talvez...

 

Daí talvez, provirá a emoção que me causa ainda a silhueta bárbara do embondeiro, baobab, adansonia digitada, ou, como melhor dizer se deva, no quadro lúgubre da natureza que, como exalações mefíticas, Deus tirou, não do nada, mas deste principio eminentemente positivo que se chama a morte.
Como um monge o vejo, um asceta cativo na rígida clausura do chão que» pelas raízes, quais tentáculos de chumbo, inchados de elefantíase, a si o prende, envolto no sujo e esfarrapado burel do manto. E escuto-o. No acabrunhante silêncio da noite, quando, na planura de bissapas e espinheiros, em tenebrosa projeção sobre a orla da mata, a lua o desenha de medonho, colossal fantasma, alma com alma, ao mesmo ritmo pulsando, eu oiço-o e entendo os louvores que ao céu ergue, no esplêndido êxtase do próprio sofrimento.
Entendo, e aflijo-me, e, ao seu hino de bênçãos e renúncia, faz o meu coração, comovido, o soturno acompanhamento dum hino trovejante de maldições.
0 baobab!...

*

0 baobab e o branco! Dois gigantes esquecidos, dois irmãos na dor! Símbolos sublimes da persistência, e do abandono, e da miséria!
Ambos, debalde, procuram na terra a alegria de viver que a terra, madrasta, impiedosamente lhes nega. Ambos sofrem; ambos choram; ambos se resignam, na ilusória esperança — dir-se-á — duma consolação espiritual de além-túmulo.
Homem da minha cor! O embondeiro, gotoso, cansado, amesquinhado, desprotegido, desprezado, proscrito, é o teu irmão na desventura! Contigo realiza a mesma síntese: desolação!
Angola: o embondeiro e o homem; nada mais.
Resumo: — Job!





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