quarta-feira, 4 de novembro de 2009

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África no coração
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A casa da saudade chama-se memória!
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“Tenho uma lágrima no canto do olho...” lá diz o Bonga!
Porque será que praticamente toda a gente que passou por Angola, e Moçambique, e ali viveu mais ou menos tempo, guarda no coração uma saudade profunda, bonita, quase triste, e continua a sonhar com essa época que tanto marcou a sua vida?
Pergunta esta que me tem sido feita inúmeras vezes. Mas só por gente que nunca por lá viveu.
É um fenômeno curioso, que devia ser analisado por psicólogos, se é que não foi já, mas que não é difícil de compreender.
Conheci há alguns anos uma senhora que nascera em Magude, Moçambique, em 1908, e, por morte do pai, com problemas de saúde, saiu de Lourenço Marques para Portugal com 16 anos de idade e nunca mais lá voltou. O que era Magude no princípio do século XIX? E até Lourenço Marques, onde viviam umas dúzias de europeus? Terras inóspitas, até insalubres. Mas essa senhora, quando a conheci, com oitenta e muitos anos, era comigo que ela gostava de conversar, recordar a sua terra de que sentia uma saudade que não sabia explicar!
Lá por meados do século passado, Portugal finalmente começou a olhar para Angola. Até aí esta tinha vivido a época do tráfego, alguma cera e pouco mais, ou nada mais até acabar o século XIX. O XX começa com um Portugal desfeito em politiquices, intrigas e falência econômica. A seguir a I Grande Guerra, a fobia anti-clerical, o crash de 29, a ditadura, o receio, pavor, do comunismo, a Guerra Civil de Espanha, a II Grande – enorme – Guerra, e assim metade do século se eclipsou no meio de tanta vergonha e insânia.
A Europa tentava se recompor da guerra, comércio mundial em grande penúria, e Portugal... foi quando, e só, se despertou para Angola. Moçambique vivia ainda sob os resquícios dos “prazos”, alguns transformados em companhias majestáticas, dos portos da Beira e Lourenço Marques e seus caminhos de ferro para a (ex) Zambézia e África do Sul, das economias dos trabalhadores moçambicanos nas minas do Transvaal, que a África do Sul pagava em ouro e Portugal lhes entregava em “vales”, produzia um pouco de chá, açúcar e algum algodão que alimentava as precárias indústrias têxteis do norte e assim ia vivendo.
Angola por essa época quase só tinha a Companhia dos Diamantes, a Cotonang dos algodões, e o café, cuja procura mundial crescia e atraía investimentos e, desde 1931 o Caminho de Ferro de Benguela que ligava o porto do Lobito ao Catanga. E madeira das florestas do Maiombe e de diversos outras áreas de Angola.
Só nessa altura é que a tal Metrópole percebeu que as colónias tinham imenso potencial e estavam fora dos problemas comerciais que afetavam o mundo!
Angola precisava de gente para se desenvolver. Técnicos, professores, administradores.
Dois ou três liceus, em Luanda, Sá da Bandeira e Nova Lisboa, o primeiro com um ensino de altíssima qualidade, tal a dedicação dos professores, o ensino primário, fora das cidades, entregues às missões religiosas e, ainda em 1954, menos de 100 quilômetros de estradas asfaltadas, e raras indústrias.
Começaram a chegar técnicos. Gente nova, cheia daquela vontade própria da juventude, voluntariosa, que aceita o desafio para trabalhar em terras longínquas, desconhecidas, ainda cheia de mistérios e pouco conforto. Não foram poucos os que desembarcaram de faca na cintura com medo de encontrar um perigosa cobra logo ali, no cais do porto, à sua espera! Mas animada com o desafio, um campo quase virgem para trabalhar, e longe da saturada atmosfera dum país pequeno, com politicagem e polícias secretas, futuro minúsculo, sem desafios, e ainda com os problemas de quase sempre ter que carregar a família nas costas, mesmo que não economicamente, socialmente. Aniversário, casamento, batizado, havia que convidar tios, primos e acessórios, os simpáticos e os chatos, tornando tantas vezes essas “festas” num sacrifício social e financeiro desperdiçado. Mas obrigatório! Havia o “parece mal...”.
Em Angola essa juventude encontrou liberdade. Finalmente entregues a si próprios! A PIDE, quase inexistente, pouco tinha o que fazer e só veio a desenvolver-se, e muito, para combater as idéias e gente que decidiu apoiar os movimentos de libertação. Falar mal do Salazar, ou votar contra o governo, mesmo em eleições pré-definidas, não preocupavam a polícia, mas animavam aquela gente que se orgulhava de mandar o recado a Salazar: “não gostamos de você!”
A família que fica longe é evidente que sempre faz falta, aqueles de quem gostamos, e de quem guardamos imensa saudade, não os chatos e invejosos ou inchados de vaidade, e a solução encontrada em África para a substituir foi simples: os amigos, muitos dos quais já se conheciam da Metrópole, desde tenra idade ou haviam sido colegas de estudo, casais novos com filhos a nascer, logo se encontraram e criaram laços fortes. Muito fortes. Como irmãos.
A maioria, por razões óbvias, teve de abandonar África com a independência e tremenda convulsão e anarquia que se lhe seguiu, mas ainda hoje esses amigos são a verdadeira família que cada um criou à sua volta.
Claro que influi nesta saudade todo um ambiente especial.
O povo do interior, do “mato”, para quem teve oportunidade de lidar com ele, é recordado com um carinho especial perante a sua simplicidade e até humildade. Tal como dizia Gilberto Freire quando, para estudar os ancestrais do povo brasileiro, foi ao interior de Portugal conhecer aquela gente humilde das aldeias e se encantou, afirmando que “adorava analfabetos”! Os analfabetos podem não saber ler nem escrever, mas não são ignorantes e têm um profundo conhecimento da vida simples, o que lhes dá uma dimensão moral e humana, que a maioria de nós, pseudo cultos, não consegue alcançar. Mas respeita e admira. Muito mais ignorantes são os que leem e escrevem e não compreendem o Outro.
O espaço, a imensidão de Angola, apresentava, e apresenta ainda hoje, um permanente desafio à capacidade de realização de cada um, junto à beleza de um pôr de sol, na costa ou no planalto, que obriga a meditar, além de praias lindas e o mar generoso e cheio do melhor peixe do planeta...
Nem todos se aventuraram pelo “mato”. Uns, talvez só uma rápida visita às Quedas do Duque, hoje Calandula, sentir-se formiguinha ao contemplar a majestade das Pedras Negras de Pungo Andongo, a Tundavala ou as florestas dos Dembos, talvez o Xai-Xai, Inhaca, Inhambane, Ilha de Moçambique. Mas mesmo sem ter visto isso, e muito, muito mais, as raízes da saudade penetraram fundo.
Foi a visão duma terra cheia de belezas, o pôr do sol, as praias, o soberbo clima das regiões planálticas que o encheu de saudades? Talvez um pouco. Mas foram as amizades criadas e sobretudo a liberdade que se respirava e o largo espaço ajudava a aumentar.
Quem se atreve a recordar esses tempos, família constituída, há pouco saídos da mocidade, e pensar na liberdade que gozava, e nos amigos que criou e ficaram para todo o sempre, e vê os filhos, agora espalhados pelo mundo, hoje gente nos cinqüenta e tantos anos a manterem como irmãos os amigos daquela infância, sem que lhe apareça, indiscreta e irreprimível, “uma lágrima no canto do olho”?


4 nov. 09

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