quinta-feira, 26 de novembro de 2009

ANTÁRTICA

Finalmentes e considerandos
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Despertar, no “Ari Rongel” às sete e pouco, porque nos esperavam em terra (fria!) para o “matabicho” – café da manhã no Brasil e na Antártica! Noite bem dormida, por todas as razões e até porque a véspera havia sido pesada!
Visão da nossa estação quase integralmente coberta de neve! Pouco mais que telhados de fora, lá vamos escada abaixo para o bote nos levar a terra. Físico recomposto, a descer, foi fácil.
Recebidos pelo chefe da Estação, Comandante Glénio e sua equipa, a visita às instalações foi um refrigério, passe a temperatura do clima, até porque lá dentro não havia frio. Refrigério porque é muito bom vermos que no Brasil tanta coisa funciona de modo impecável. Não me consigo conter sem dizer que isto só se passa à revelia do governo. Deo Gratias!

A Estação Comandante Ferraz como deveria estar (a neve)

... e como estava!

A sala, os dormitórios, os laboratórios, as oficinas, o ginásio, a casa de máquinas, o “supermercado”, um tanto desfalcado ao fim de quase um ano, mas onde estavam agora a chegar os convenientes reforços, tudo muito bem arrumado e organizado. O sistema de esgotos impecável. Dá prazer e orgulho ver tudo ali funcionar em magníficas condições, mais ainda sabendo do trabalho e sacrifício que isso exige.
Nesta altura do ano a neve deveria já ter baixado ao nível dos alicerces dos edifícios, mas, tal como na Base chilena, praticamente cobria os telhados. A entrada principal tinha uma espécie de poço cavado em escada para se poder entrar! Basta ver o ar tranquilo desta skua, deitada mesmo em frente da porta, e que à nossa passagem, a menos de um metro de distância, nem se dignou olhar para nós!

A skua... numa boa!
Esta skua vive à custa da Estação. Bela ave – catharata skua – chega a ter 1,40 de envergadura de asas, e voa facilmente no meio de tempestades, mas sem vento tem dificuldade em levantar vôo! Na Estação sempre aproveita um ou outro pedaço de comida que lhe dão, e então, cansar-se a pescar ou roubar ovos... para quê? Deve ser também da família do Zelaia!


Quando ela voa, é imponente!

Os pinguins deveriam estar de férias porque nem unzinho se dignou aparecer, assim como baleias ou focas.


Quando da instalação da Estação, lá estava um pinguim inspecionando os trabalhos!

Pássaros, raros, a não ser esta hóspede skua, e leões marinhos um só de quem tentei me aproximar para o ver mais de perto, mas além do gelo estar extremamente escorregadio e irregular, o que me ia fazendo levar um tombo, fui aconselhado a não incomodar sua excelência, porque quando se zangam correm atrás da gente. E 300 kilos a pegar no meu pé... O tranquilão levantou a cabeça como a dizer-me “não vem encher”, e eu, não fui!

Ao fundo, à direita, o tranquilão!

Foi muito gratificante a visita à Estação Antártica Comandante Ferraz, de quem trouxemos uma recordação de simpática atitude do Comandante.
Antes do almoço reembarque no navio, só que desta vez de helicóptero. Outra mordomia, que tem ainda a vantagem de se dar, mesmo pequena, uma volta por cima daquela área. Tudo é uma beleza.
E agora o “Ari Rongel”. Navio com 73 metros de comprimento e 70 tripulantes, do comando do CMG Capetti, tudo gente atenciosa, além da boa capacidade de carga e do transporte do helicóptero ainda tem acomodações para 22 pesquisadores, e lá estava uma leva deles, da UFRJ com seu professor.


O navio "Ari Rongel"

Viagem de retorno até à Base chilena cerca de 3 horas, por vezes abrindo caminho no gelo, durante a qual tivemos o prazer de compartilhar um belo almoço, com vinho, é evidente, e novamente o desembarque foi feito de helicóptero. Bem melhor do que na ida!

O helicóptero, ainda a bordo, já a aquecer os motores, vendo-se a esteira deixada no gelo

Durante este dia o “nosso” Hércules tinha andado a fazer treinamento de novos pilotos para se habituarem àquela magnífico aeroporto congelado, e com o dia a chegar ao fim, embarque de volta a Punta Arenas, onde ficaríamos todo o dia seguinte para que o mesmo avião estivesse a abastecer a Estação.

Despedida!

O avião correu mais uma vez por aquela pista gelada, seguro, e em poucos minutos já nada mais se via daquele continente!
Essa noite e mais todo o seguinte “dia livre”, trouxe algumas vantagens: as que já referi, como a visita a La Pinguinera e à própria cidade, e o tempo que dispusemos para melhor nos conhecermos. E foi muito gratificante.
Não posso lembrar aqui todos os companheiros de viagem com quem mais me identifiquei, mas também não posso deixar de agradecer a todos aqueles que mais me sensibilizaram pelas suas personalidades fortes, conhecimento e sobretudo simpatia, que essa foi geral.
Recordo com amizade o Ministro Flávio Bierrenbach e suas oportunas intervenções sempre cheias de um delicioso veneninho e de profundos conhecimentos, em todas as áreas sobre que conversávamos, mormente na área da aviação de que é um experimentado piloto com mais de 6.000 horas de vôo, e continuando a voar, o General Aléssio Ribeiro Couto, pára-quedista, uma bela folha de serviços, modesto, porém muito culto, alegre e muito atencioso, o Dr. Paulo Leite Lacerda para quem tudo parece estar sempre bem e é uma agradabilíssima companhia, o Reitor de UFRR Frofessor Roberto Santos Ramos com quem tive bela troca de impressões, algumas delas enquanto voávamos com os pés congelados, mas que me fez saber o trabalho sensacional que a sua Universidade está a fazer com os índios da região, alguns deles já diplomados, e que me desafiou a assistir à próxima graduação a que eu não irei só se estiver já louco de todo (deve faltar pouco!), a Assessora Parlamentar Stephania Serzaninck, sua simpatia e seu sorriso ao ouvir os meus ácidos comentários sobre políticos, o Comandante Paulo também Assessor Parlamentar, o engenheiro Rômulo Barreto Mello, Presidente do Instituto Chico Mendes, com quem me confundiram, o tranqüilo André Cabral de Sousa, a Joana da Oi que me emprestou o seu telefone para dizer para a minha família que ainda estava vivo, e, evidente os que me proporcionaram esta aventura inesquecível.
Vou começar pelo CMG Parpagnoli, o único que conseguia dormir dentro do avião durante todas as horas de vôo, aconchegado no seu revestimento natural um pouco inflado, mas que a todos tratava com lhaneza e amizade de longa data, o Almirante e meu xará Francisco Ortiz, Chefe do PROANTAR, outro companheiro alegre e simpático, e para terminar o responsável direto da minha participação, um amigo de há uma dúzia de anos, co-autor de um livro que ainda não escrevemos, mas que está “muito pensado”, que considero hoje da minha família, o Comandante José Robson Medeiros.
A este em primeiro lugar e a todos os outros, mesmo aqueles que não referi, obrigado.
Pela aventura e pelas amizades, que são dons preciosos.
Ficou uma imensa vontade de repetir a dose! O que vale é que sonhar ainda é barato, e a vida em qualquer momento nos pode trazer outra surpresa! Porque não?

26.nov.09

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

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Antártica

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Mesmo !
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Depois de uma tarde e uma noite em Punta Arenas, levantar bem cedo, vestir tudo quanto for possível, porque se já está frio por aqui, lá, para baixo dos 62° de latitude Sul, a “coisa” vai pegar!De ônibus diretos para a porta do avião, uma bela manhã de sol, lá vamos no nosso confortável “aerovagão”, quase três horas de vôo, com os pés gelados, a caminho da Antártica.


Preparado para a Antártica !

De ônibus diretos para a porta do avião, uma bela manhã de sol, lá vamos no nosso confortável “aerolulão”, quase três horas de vôo, com os pés gelados, a caminho da Antártica.
Chegados. À saída do avião, à nossa volta tudo branco! Tudo. Uns leves laivos de rocha aparecendo além e mais além ainda, para nos dar a certeza (?!) de que não tínhamos pousado em cima de nenhum iceberg, e uns poucos telhados de algumas instalações da Base Frei.


O "moderno" aeroporto da Base Frei! O totem está cheio de placas indicativas da direção em que se encontram as principais cidades do mundo com ligações à Antártica e suas distâncias

A pista e arredores, tudo coberto de gelo e neve, e os nossos hábeis pilotos fizeram um pouso impecável. Palmas para eles, tanto mais que o comandante era o Ten. Cor. Portugal!




Ali estava o nosso Hércules conservado em gêlo !

Primeira sensação nem foi de beleza ou espanto. Eu, senti-me o Capitão Scott! Apesar de bastante gente à volta, os parceiros da viagem e mais o pessoal da Base, a impressão é de um isolamento feroz! E de êxtase perante tamanha grandeza!

Tudo neve e gelo à nossa volta, uma “agradável” temperatura de -14°C, mas sensação de -500° por causa do ventinho e da neve que intermitentemente teimava em cair.
Recebidos na Base chilena Presidente Frei, por simpáticos oficiais chilenos, num pavilhão que chamam de hotel, mas que não tem acomodações para dormir. Só para receber os que por ali passam. Um cafezinho e... olhe lá!
Esta base chilena, bem com a russa, polonesa e brasileira ficam na Ilha Rei Jorge, pertencente ao arquipélago das Shetlands do Sul.
Um pouco de história: há muito anos começou a briga internacional pela posse do continente antártico. Estas ilhas são reivindicados pelo Reino Unido desde 1908, pelo Chile desde 1940 e pela Argentina desde 1943. Com o Tratado da Antártica, assinado em Washington, 1959, as reivindicações de soberania foram paralisadas, porque todos os países, além dos primeiros, queriam uma fatia do continente gelado. Sobretudo os do hemisfério sul, que argumentavam que seria como que o prolongamento do seu território continental. Depois estabeleceu-se que seria de quem para lá mandasse missões científicas, e, pelo tal Tratado se congelaram disputas territoriais. Na Antártica, enquanto o Tratado for mantido não haverá exploração comercial de espécie alguma, e servirá apenas para pesquisa científica. Hoje são 27 os países que lá têm missões, mas poucos as têm ocupadas o ano inteiro, como o Chile e o Brasil.
O Chile, à espera que um dia aquilo tudo acabe em briga, o que é próprio dos homens, mantém a sua Base “habitada” o ano todo! Aliás cinco bases permanentes, o ano todo, e mais doze no verão, uma delas no paralelo 80°! Os oficiais que para lá vão levam mulheres e filhos, por dois anos, têm escola para as crianças, igreja, e isso poderá servir um dia para aquele papo do “uti possedetis” que já lhes deu o Canal de Beagle! Aliás em 1941 o Presidente chileno Don Pedro Aguirre Cerda, decretou, unilateralmente, a posse de parte da Antártida, compreendida entre os meridianos 53° e 90° W, terminando no Pólo Sul.



Aqui está o que chilenos querem SÓ para eles!

Parece que ninguém aceitou aquele papo dos chilenos, mas a verdade é que eles consideram aquela área seu próprio território, a Província Antártica Chilena, e para aí chegar há que obter o visto de entrada no Chile! A verdade também é que o Tratado da Antártica, o tal de 1959, não nega as reivindicações territoriais já existentes, para poder começar a haver algum entendimento entre as partes.
Desta Base é que se sai para a brasileira, Estação Antártica Comandante Ferraz. Toda aquela área, este ano estava com muito mais neve do que parece ser habitual.

Ambas as Bases estão localizadas na Ilha do Rei George, afastadas, em linha reta, cerca de 17 milhas (náuticas!) ou 32 kms., uma da outra, cada uma em sua baía, o que dá, navegando, cerca de 27 milhas, sempre náuticas, visto que estamos no mar!



O tempo encoberto e o mar cheio de icebergs atrasaram a chegada do nosso navio “Ari Rongel” e o mau tempo a conveniente utilização do helicóptero - Hélibras UH-12/13 Esquilo - que só leva três passageiros por vez. Havia que transportar bastante gente de e para o navio. Os que haviam passado dezoito meses na Estação em vez dos doze previstos, loucos para voltar para casa, mais as suas bagagens, e os que tinham que para lá ir proceder a manutenções diversas. Teve que se utilizar também o bote do navio, mas as condições do tempo, com a grande altura de gelo e neve, tornavam o embarque e desembarque no bote uma operação de risco e malabarismo. A praia estava com dois metros de altura de gelo e neve! E furar um bote de borracha, por muito bom que ele seja, para o gelo... é piada! Perguntem ao Titanic!

Parte do grupo. Se ampliarem a foto vê-se bem que estava a nevar.


Parte do pessoal (mais jovem) caminhava para o bote

O tempo ia passando e era preciso que o Hércules retornasse a Punta Arenas; havia que descarregar o navio com os “retornados” e suas “imbambas”. Após uma série de vôos foi necessário reabastecer, a bordo, o helicóptero! Nevava, e os técnicos negaram-se a fazê-lo para evitar que um ou outro floco de neve entrasse no tanque! Poucos convidados pernoitariam na Estação, e foram os últimos a embarcar. Os mais novos nas primeiras viagens do helicóptero e no bote, este uns poucos minutos ziguezagueando entre o gelo, e por último, acompanhados do Sub Chefe do PROANTAR, os três “menos jovens”! Para ir do “hotel” chileno ao ponto de embarque, um a um, carregados nas moto-neves – snowmobiles – lá fomos, agarrados que nem preguiça em árvore, aos saltos, até onde deveria ser a praia! O bote estava lá sim... dois metros abaixo, e o caminho até ele, mesmo que tivéssemos andado só uma meia dúzia de metros, foi uma aventura! O gelo escorrega como manteiga e a possibilidade de uma queda ali...
Enquanto não entrávamos no bote o meu amigo apontou para o mar porque ali estaria a “passear” uma foca leopardo, das que não pedem autorização para comer um pinguim de uma só vez ou um pedaço de perna de gente. Com todo o equipamento de frio em cima da cabeça e mais os óculos, a verdade é que podiam lá estar mais de quinhentas focas que eu não via nada!
Por fim embarcados no bote de borracha. E novamente bem agarrados aos cabos laterais. O bote devagar por entre o gelo. E o gelo?
No meio da baía flutuavam, entre largas centenas, de todos os tamanhos, dois icebergs espetaculares, um imenso, todo plano por cima, parecia um enorme porta aviões. O outro, talvez uns 30 a 40 metros de comprido e uma meia dúzia de altura, azul. Lindo. Lindo é pouco. Passámos bem junto a este e o espetáculo é deslumbrante. O azul, de intensidades diferentes, autêntica “água marinha”, coberto com uma bonita camada de neve ainda branca, é uma obra de arte maravilhosa, cheia de cavernas que lhe davam um efeito especial. A camada de gêlo e neve na Antártica tem uma espessura média de 2.750 metros de altura, chegando em alguns lugares a mais de 4.000. A compressão é enorme, e quanto mais se comprime, mais azul se torna o gelo. Estes icebergs vêm dos glaciares, muitos deles com mais de 2.000 anos! E é só com esse gelo brilhante que se pode saborear o autêntico whisky de 2.012 anos!




Olha a beleza do espetáculo!

Pronto. Chegamos ao navio. Os últimos convidados, os jovens com uma média de idade de 72 anos, com aquele friozinho de fazer rachar o pensamento, mesmo através de luvas, gorro etc. vão ter que subir a bordo por escada exterior que começa com uma parte em corda e o resto com uns ferros molhados e escorregadios. Mas saímo-nos muito bem do teste e todos fomos louvados pela nossa juventude.
Finalmente a bordo, eram quase dez horas da noite, aliás dia, sem ter almoçado, recebidos pelo comandante e uma variedade de aperitivos de todas as qualidades na “Praça de Armas” do navio. Estômago confortado e o tal whisky que, se não tinha 2.012 anos, estava ótimo.
Entretanto a noite avançava, quase às 24 horas, e, para descer a terra e pernoitar na Estação, voltar a descer aquela escada horrível, sem ver nada... não era o que mais nos estava a sorrir, e houve quem sugerisse que dormissemos a bordo! Sugestão aceite, o Imediato providenciou acomodações para todos.

Pôr do sol às 22h20m !

Meia noite e meia quando nos fomos deitar. Para mim demorou um pouco mais porque entrar naquele beliche exigiu um exercíco de contorcionismo para o que não ia preparado. Ao fim de várias tentativas finalmente consegui enfiar as pernas pelo beliche e entrar nos braços de Morfeu!

No próximo texta visitaremos a EACF, faremos a viagem de retorno e... algo mais.
E daremos a quem de devido os créditos fotográficos!

22 nov. 09



quarta-feira, 18 de novembro de 2009

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A  caminho  do  muito  frio


Antártica  2

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Estávamos a voar de Pelotas para Punta Arenas no Chile, cruzando a Patagónia e deixado o Uruguai para trás, cheio de sol!

Seis horas de vôo, no “conforto” dum cargueiro, mais de metade do tempo com os pés gelados – preparação para o que estava para vir – serviço de bordo impecável, dadas as circunstâncias, e sempre sob a responsabilidade da “tia” Alice (só faltou um ou dois copitos de vinho!), visita à cabine de comando do avião, boa parte do tempo circulando em pouco mais de meio metro quadrado, para aliviar o frio e aproveitar para ir conhecendo, aos gritos, os parceiros da viagem, finalmente chegámos.

Olha o "conforto" e o "luxo" do cargueiro!
Visita à cabine do avião, com um dos Almirantes

Desembarque no aeroporto, que é base militar muito bem estruturada – parece estar à espera dum ataque “inimigo” – onde a alfândega só se preocupou em saber se levávamos frutas ou quaisquer outros vegetais ou comestíveis. Proibidissimo!

Temperatura: 1° C, vento forte, e sensação de freezer!

O programa previa, e cumpriu-se, pernoita em Punta Arenas, e no regresso da Antártica mais duas noites, com um dia livre, de modo que, antes do gelo (quase) absoluto vamos falar de Punta Arenas.

Fica ali mesmo! No Estreito de Magalhães! Antes da abertura do Canal do Panamá, passagem obrigatória entre os oceanos, hoje uma cidade com cerca de 150 mil habitantes. Praticamente plana, muito ordenada e limpissima – não se vê no chão um único pedacinho de papel, cigarro ou qualquer lixo - ninguém atravessa a rua sem ser nas passarelas para pedestres, e assim mesmo quando tiver o sinal verde e, para vergonha de muita terra que todos nós conhecemos, tem quatro museus. Interessantes.
Hotel – ficámos no Rey Don Filipe, simpático e confortável, um café da manhã miserável e uma cozinha de primeira! Contradições incompreensíveis! – e por toda a cidade uma razoável variedade de bons restaurantes, com preços sem exploração.


À porta do hotel, o General, o Ministro, o vovô, a sempre jovem "tia" Alice e um Advogado da Poupex
Não vai a Punta Arenas quem não experimentar a “santoja” (santola) de que há diversos criaderos, deliciosas, a merluza negra ou o congro! Peixes daqueles frios mares, de primeira ordem! Como na Argentina, hay también muy buenas carnes, como el lomo de cordero, acompanhado com quinoa, um cereal nativo das Andes, riquissimo, e uma garrafinha de Carmenére... magnifico. Tudo isto, mesmo parecendo pleonasmo há que referir, acompanhado sem falhas do vinho chileno, que o tem de todos os tipos e gran calidad!

Com o decorrer da viagem e várias refeições em conjunto, iam-se conhecendo melhor aqueles com quem se criaram vínculos mais fortes, seja pelo tipo de interesses gerais e, opiniões durante as conversas, talvez uma ligeira identidade na gourmandise ou na apreciação dum bom copo. Mas novas personalidades se conheciam, algumas que ajudaram a marcar esta aventura Antártica com um ambiente, não gelado do frio, mas caloroso entre muitos participantes. Seria uma tremenda vergonha referir só alguns e arriscar a hipótese de esquecer outros. De qualquer forma fica aqui um abraço para os que mais marcaram estas novas amizades. Eles, se lerem isto saberão bem a quem me refiro.

Punta Arenas tem uma zona franca, e aí se encontram, sobretudo eletrônicos, por preços incríveis, e muitos aproveitaram para dar um up-grade nos seus televisores, máquinas fotográficas, e outros. Vinhos, em qualquer supermercado, com preços demasiado apetecíveis! A vida no Chile é mais barata que no Brasil.

Uma tarde entrou no hotel um dos mais jovens membros da nossa expedição, radiante porque tinha comprado uma mala muito barata. Aproximei-me, ouvi a explicação e perguntei quanto lhe tinha custado: US$ 16. Barato.

- Onde comprou? Lá me explicou em qual loja, e se ofereceu de imediato para voltar lá e comprar uma para mim!

- Mas eu não tenho dinheiro. Vim só com o cartão de crédito porque nem sabia que teríamos tempos livres durante as etapas.

- Não tem problema. Eu compro e depois o senhor manda-me o dinheiro.

Sumiu. Talvez nem uma hora depois voltava com a minha mala! Tomei nota do seu nome e conta bancária, e depois de lhe agradecer, disse para com os meus botões: Isto só mesmo brasileiro é que faz! Obrigado mais uma vez, Ramoncito Ferreira Marques Junior, nome de sabor castelhano, mas simpatia brasileira! Motorista do Almirante!
Na véspera do regresso ao Brasil fomos visitar um Parque Nacional, La Pinguinera Seno Otways, a cerca de 70 kms a NW de Punta Arenas.




Trilhas bem definidas para os visitantes, das quais não podem sair para não perturbar a vida selvagem, e maravilhosa. Infelizmente o dia estava frio e chuvoso. Mas ver os pinguins, estar com eles ali mesmo ao lado, sem sequer se preocuparem a perder tempo a olhar para os visitantes, é uma graça. E creio que não há animal mais gracioso do que o pinguim com aquele seu ar de milionário arruinado, andar desengonçado, e casamento para toda a vida.


Lá vão eles, talvez procurar uma refeição
A turma na praia e na água

Mesmo quando perde a parceira, “enviúva”, o pinguim não procura outra companheira! Nem vai para as boates atrás das gatas/os, não discute se o aborto é bom ou criminoso, não usa preservativo nem outros anti concepcionais! Mesmo estando arriscado a ser comido por uma foca ou uma orca, talvez fosse bom ser um pinguim! Porque não?
Os pinguins gostam de emigrar, se aventurar pelos mares a caminho de lugares mais quentes! Sobem pelas correntes frias, em parte do ano pela corrente das Malvinas que atinge a costa do Brasil, e pela de Benguela, pelo menos até ao sul de Angola.
Quem se lembra desta maravilha
http://www.youtube.com/watch?v=YMSIzoKUbhM  ?
(Abram este link e sonhem...)

Em, talvez, 1964, trabalhava eu em Angola, na Cuca, responsável comercial da Companhia que tinha duas fábricas de cervejas: Luanda e Nova Lisboa. Um belo dia o diretor da fábrica de Nova Lisboa, o meu querido amigo Alfredo Duarte Figueiredo, telefona-me: – Acabei de receber aqui um presente que te mandaram. – Para mim??? Eu não recebo presentes de ninguém! Quem mandou? – O nosso agente de Moçamedes. – - - Um presente? O que é? – Um pingüim!
De fato receber um pingüim de presente, até àquela data eu não sabia de alguém a quem tal tivesse acontecido. Um pingüim!?!?

- Bem... guarda-o bem, vai-lhe dando uns peixes, que não tarda vou aí!

Passados poucos dias lá fui ver o “meu” presente. Tinha sido enviado numa grade de madeira. Assim que cheguei abri a tampa para ver bem o “presente” e logo fui acarinhado com uma bicada!

Resolvemos fazer, no terreno da fábrica, um pequeno lago, com uma cerca à volta, e lá deixar o bichinho que virou atração! A notícia correu e passado um ano ou dois foram chegando mais presentes à fábrica: um leopardo, um leão, alguns antílopes e assim se criou um mini zôo!

Mas nós estávamos em La Pinguinera. Além dos simpáticos pinguins, tomando banho de mar, regressando da pesca, ou caminhando entre a praia e as suas tocas, algumas lebres, bonitas, grandes, passaram, também sem grande pressa, uma delas muito fotogênica deixando-se fotografar e seguindo depois o fotógrafo!

A região é uma espécie de tundra, mas a visita a parques naturais é sempre um “must”, e este está muito bem organizado, como aliás tudo quanto vimos no Chile.


A "casinha" do José Nogueira

A praça principal da cidade tem de um lado um belo edifício apalaçado, hoje monumento nacional, que foi mandado construir em 1890 por um emigrante português, José Nogueira, que ali chegara 30 anos antes.
Marinheiro e típico colonizador português, segundo a história que dele se conta, juntou imensa fortuna e construiu a sua bela mansão, que é hoje um hotel de luxo, um bar demasiado fumegante, e um ótimo restaurante, muito bem decorado, onde se come também por preço aceitável, e onde a tal santoja estava ótima, mais ainda na companhia dos amigos e dum “Chardonnay 2005”! Huummm...


No "José Nogueira", ainda sem o "Chardonnay"
Reitor, Diretor da Funcep, o velhote, Presidente do Instituto Chico Mendes e Assessora Parlamentar. Falta o General que foi o fotógrafo

No centro da praça uma bela estátua a Fernão de Magalhães – Fernando de Magallanes – que tem na base, além duma sereia, um índio, tudo em bronze. Dizem por lá que aqueles que apertarem o dedão do pé do índio, um dia voltarão. Está polido o tal dedão de tanto ser esfregado, e pode-se ver na foto.


Vejam o dedão do índio... polido!

Como é de calcular eu fui dos que não perdeu essa hipótese e esperança!


Até à próxima, na Antártica!


19 nov. 09

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

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Impressões... Antárticas !
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Já diversas vezes escrevi sobre “Amigos”. Mas quando se atinge uma (provecta) idade e não só se mantém como se aumenta o número de amigos, e que todos eles são cada vez mais chegados, mesmo quando vivem longe, há que louvar a Deus e agradecer-Lhe esta benção!
Dia5/nov – recebo um email: “Como não o encontrei on line, p.f. ligue para o meu telefone...”
Assim que li a mensagem chamei. Só à noite consegui ligação, e lá surge a voz dum amigo, querido, que vive em Brasília, sempre atarefado. Após a troca nas normais saudações e saber das respectivas famílias, diz-me:
- Queria convidá-lo para ir a um lugar onde você nunca foi! Está preparado para isso?
A primeira coisa que me ocorreu, já que ele estava a chegar ao Rio, foi que me estaria a convidar para nos encontrarmos nalgum novo restaurante. De qualquer modo a resposta foi rápida:
- Sempre pronto! Mas que lugar é esse?
- Antártica.
Eu sabia que este amigo, Comandante da Marinha, há já talvez dois anos, Sub Chefe do Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR) era o responsável pela Logística e Operações da Estação Antártica Brasileira Comandante Ferraz. Assim que o soube neste cargo, lhe dissera que, “quando tivesse uma vaga... me levasse até lá”! Nunca mais havia pensado nisso e de repente a tal “vaga” surge!
- Quando vamos?
- Talvez dia 21; amanhã lhe telefono com mais detalhes. Agora tenho que desligar!
Fiquei parado a pensar na maravilha da possibilidade que se me deparava!
Dia 06 à tarde liga o amigo:
- É um pouco chato avisá-lo assim de repente mas para ir, é amanhã! O que acha?
- Eu vou até agora à noite! O que tenho que levar? Roupa, etc.?
- Roupa nós fornecemos, só tem que levar passaporte, carteira de identidade e xerox de ambos os documentos. E estar amanhã às 07H30 no Aeroporto do Galeão Velho, a Base Aérea, no Terminal de Passageiros do Correio Aéreo. A viagem não é em avião comum. Vamos num Hércules C 130, militar, com uns assentos... meio incómodos.
- Maravilha!


O barrigudo e barulhento Hércules C 130

Em Pelotas, o meu amigo, o "decano" da expedição, e o meu novo amigo e
meu xará, o almirante chefe do PROANTAR

Preparei uma pequena mala, alguma roupa menos carioca e no dia seguinte lá estava eu, à hora exata prevista, com mais cinqüenta, entre convidados e membros do PROANTAR. Um ministro do STM, um general, almirantes, brigadeiros, o reitor da Universidade Federal de Roraima, assessores parlamentares, comandantes da Marinha de todas as graduações, sargentos e marinheiros, técnicos para revisão dos equipamentos mecânicos e eletrônicos da Estação Antártica, além de outros convidados especiais. E, evidente, o meu amigo.
Abraços, algumas apresentações, uma ligeira burocracia com os passaportes, que eu nem tive porque a organização tem uma oficial que se encarrega disso – simpática e eficiente esta oficial – um pequeno briefing dando as coordenadas e etapas dos vôos, e aí vamos nós para o Hércules. Lugares marcados para evitar confusões, diretos a Pelotas, primeira escala.
A bordo a primeira surpresa: a comissária de bordo! A “tia” Alice, uma fantástica jovem de 82 anos, alegre, sempre preocupada com o bem estar dos passageiros que fazia a sua 176ª. viagem à Antártica!
À chegada a Pelotas – temperatura de 5º mas com sensação térmica de 1º! - foram-nos entregues as roupas especiais, botas, capuz, etc. para o frio austral. A seguir almoço onde começa a descontração entre os parceiros de viagem, sobretudo pela partilha de algumas garrafas de magnífico vinho, chileno, é claro!





Um dos almoços na melhor companhia: à direita o Almirante e o Ministro,
à esquerda o General, o vovô e o Presidente do Instituto Cico Mendes

Escala importante esta por várias razões: a primeira porque foi onde nasceu o meu avô! Talvez mais do que isso porque foi aqui que o pai deste, meu bisavô João Driesel Frick, reuniu em seu escritório, em 1869, a primeira Sociedade Abolicionista do Brasil, tendo nessa ocasião pago a libertação de quatro mulheres, e sobretudo pela visita ao Museu Oceanográfico Prof. Eliézer Rios, onde fomos recebidos pelo prof. Lauro Barcelo. Museu muito interessante pela recolha e exposição de espécimes, muito visitado por escolas e pesquisadores. O Museu dispõe duma área de recuperação de animais marinhos, para cuidar deles e devolve-los sãos ao seu ambiente. Todos os anos são centenas, às vezes milhares de pinguins que vêm visitar o Brasil... e aqui se juntam até que as condições permitam devolvê-los ao mar. Desta vez só lá restava um. Quando os visitantes se aproximaram do tanque onde nadava pacificamente, ficou animadíssimo e corria – nadava – rapidinho dum lado para o outro a olhar para cima e ver as caras dos amigos que acabam de chegar! Os amigos visitantes moviam-se e ele seguia-os! Simpático, como todos os pinguins.
Ao lado, outro tanque com um belo leão marinho que pesaria uns 300 quilos! Tranquilão, só saiu da água quando o professor o chamou. Arrastou-se, olhou à volta, sem se preocupar com os circunstantes e ali ficou a olhar “para a sua filosofia”!
Este bichinho tem uma história incrível. Chegou ali há 17 anos, recolhido cheio de óleo, faminto. Foi tratado, alimentado e assim que estava em condições, devolvido ao mar. Não demorou a voltar. Mais uns dias e novamente levado ao mar. Mas o “leão” não estava disposto a ir embora e tentou várias vezes subir em embarcações de pescadores, virando algumas. Queria voltar para terra. Recolheram-no outra vez e ainda hoje lá está, “numa boa”, certamente feliz, alimentado, sem querer saber de mar para coisa alguma! Quando o professor terminou esta descrição do nosso "hóspede", sai este comentário de um dos visitantes que estava a meu lado: “O Zelaya”!
Tirando o gelo da Antártica, este foi um dos pontos altos de toda a viagem! E só podia ter saído duma mente clara e inteligente, o Ministro que nos acompanhou!
Ainda agora o “Zelaya” não me sai da idéia. Vejam bem o ar “zelayado” de quem está “na maior” a viver à custa do Brasil!


Vejam bem a "cara" do Zelaya! Cansado de estar "numa boa"!


Uma pequena área do "C&A"

Antes de nos recolhermos ao hotel, para jantar, sempre honrando o vinho do país que nos ia receber, e passar a noite, fizemos uma rápida visita à Estação de Apoio Antártico, onde entre outras coisas se guardam e cuidam das roupas que se emprestam aos visitantes, pesquisadores, etc. Um armazém imenso! Chamam-lhe o C&A (para quem não sabe o que é: uma enorme loja de roupas que está em praticamente todos os shoppings do Brasil!)
Manhã seguinte, bem cedo, já semi equipados para o frio que nos aguardava em Punta Arenas – 1ºC, mas sensação bem abaixo – de volta ao Hércules, vôo de 6 horas com céu quase sempre limpo, um miserável frio nos pés e uma bela vista ao sobrevoar Montevideu, no Uruguai.


Lá ficava Montevideu!
Continua...

17 nov. 09

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

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Menina e moça !



Luanda
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Nada de confusões com o fado de Coimbra! Estamos a falar de Luanda. Já não era tão menina, mas ainda era moça a Luanda dos anos cinqüenta! Menos de dez por cento dos habitantes que terá hoje!
Diz o fado que “Coimbra... era o rouxinol de Bernardim...”. Era! E Luanda, no Bairro que se chamou da CAOP, que ainda hoje tem uma rua com o nome do nosso grande poeta e escritor do século XVI? Nosso, por todas as razões e porque era em português que se expressava, tal como o angolano de hoje.
“Menina e Moça” é o nome do poema mais conhecido de Bernardim que foi publicado com o título “Saudades”!
Que título mais apropriado para quem lembra aquela terra bonita e, pior ainda para quem morou naquela rua!
Por isso, peço desculpa à grande maioria dos leitores deste blog, saudosos de Angola, mas este texto tem que ser dedicado aos vizinhos. Aos daquela rua e duma outra, cuja porta de entrada não ficava a mais de 20 metros da nossa! A Ana e o António Ravara Belo e a Madalena e António Nuno Melícias! Todos, jovens, claro, viram filhas e filhos ali nascerem!
Na foto abaixo vê-se a rua e as três casas assinaladas com o nome de cada família! Distância máxima de uma a outra... sessenta metros!


A rua Bernardim Riberio que terminava no larguinho!

Como era bonita e simples aquela vida! E lembram tantas histórias que ali se passaram. Aqui vão algumas. Com os vizinhos.
Todos fazíamos o nosso café, depois das refeições, com o velho e melhor sistema do mundo: a “máquina do balão e da tulipa”. Vai aqui uma foto para a lembrar a quem conheceu e mostrar a quem não conhece. Balão e tulipa de vidro, volta e meia, por muito cuidado que se tivesse... lá quebrava. Ou a parte de cima, ou de baixo. E como só se encontravam acessórios em Portugal, e era uma tarefa delicada pedir alguém para trazer de Lisboa uma peça assim frágil, a solução era recorrer ao vizinho. E lá vai o criadito. “Vai lá pedir à dona Ana se pode emprestar o balão para quatro xícaras”! Ou então “a dona Madalena manda pedir emprestada a tulipa! Outras vezes facilitava-se o assunto ou indo tomar o café com os vizinhos ou levando até a “máquina” para o preparar em casa dos outros. E andavam os “balões” e as “tulipas” passeando, horas mortas pelo calor do meio dia ou pela suposta frescura da noite, pela Bernardim Ribeiro!


 A melhor maneira de se preparar o melhor café !

Mesmo em frente da casa onde nós, os Amorim, morávamos, foi instalado um poste de iluminação pública. Ótimo, progresso, mais segurança, apesar de normalmente as portas jamais se fecharem à chave, e durante o dia e até à hora de ir para a cama ficavam bem abertas para ventilar. Ar condicionado não existia!
O poste era alto e a lâmpada potente. Acontece que o ângulo do refletor é que estava errado e a luz, forte, acertava em cheio na minha cara quando me deitava! Ensaiou-se um varal com algo pendurado, mas o resultado era insignificante, e a aversão àquela lâmpada foi crescendo, crescendo... até que uma bela noite, espingardinha de pressão de ar, sem que alguém visse ou ouvisse... puff... lá se foi a lâmpada! E nessas noites, bem escurinhas, uma teórica aragem permitindo não suar muito, e os menos de trinta anos de idade, dormia-se bem, sono profundo e tranqüilo.


A nossa casa, o "velho" Simca Aronde, e... quem sabe se o lençol não tentava esconder a agressiva luz!

Passados uns dias vinha o serviço de manutenção da Câmara Municipal e colocava lâmpada nova. Recomeçava a má disposição a crescer e não tardava saía mais um tirinho e voltava a tranqüila escuridão.
Não havia como torcer o refletor para apontar a luz para baixo... a solução foi ir atirando ao alvo! Os homens que trocavam a lâmpada nunca entenderam o que se passava porque era a única que aparecia quebrada em toda aquela rua!
Coisas da juventude e de Bernardim!
Sobretudo aos sábados à noite, porque naquele tempo a semana “inglesa”, de trabalho, só terminava ao meio dia de sábado, havia em casa de uns ou de outros, mesmo em muitas outras ruas, reuniões de parceiros para jogar cartas. Uma das vezes foi em casa dos Belo, à noite, fresquinho bom, na varanda. O quarto parceiro o Xico d’Água, Francisco Rebelo de Andrade, nosso primeiro medalhista Olímpico na vela, 1952 em Helsínquia! Ele, com os homens, para a mesa de Bridge e a Gracinha com as senhoras para a Canasta.
Rua calma, noite tranqüila, ninguém fala muito alto para não perturbar a grande concentração que o jogo exigia – jogava-se a dinheiro, mas pouco mais que tostões – iam-se bebendo umas Cucas, e o tempo corria com os filhos a crescer.
De repente surge da única rua que ali desaguava um garoto experimentando uma motorizada cujo escapamento fazia um barulho horrível a violentar a tranqüilidade do bairro. Abrandava na curva e logo a seguir aquela maquineta infernal seguia rua fora deixando todos incomodados. Não tardava muito voltava o “corredor” e repetia a cena, e assim mais algumas vezes deixando todos com os nervos estimulados. À quarta ou quinta volta o artista, possivelmente mais confiado no treino que fazia, entrou na curva mais depressa, derrapa, cai da motoreta que foi bater num muro passando ao lado do meu carro, e fica esparramado no chão. Todos largámos as cartas e corremos em socorro daquele chato que nos estava a perturbar.
O cara no chão ainda, perguntámos-lhe: “Você está ferido? Machucado"? O garotão ainda meio zonzo sentou-se, conferiu a própria anatomia e respondeu: “Não! Felizmente não foi nada. Estou bem”! Nessa altura o Xico d’Água, com vontade de lhe torcer o pescoço, dentes cerrados: “QUE PEEENA!”
O “corredor” levantou-se, pegou na motoca toda torcida e foi embora a pé. Nós, depois de termos rido bastante, voltámos ainda um pouco ao nosso joguinho até a dona da casa trazer uns bolinhos e mais umas bebidas, quando a reunião terminava.
Naquele tempo as mamãs tinham os filhos em casa. Estava para nascer a Helena, nossa filha, já a número quatro, e a Avó Zé tinha ido de Lisboa para estar presente ao acontecimento. Esta Senhora tinha tal fobia de cobras que só de ouvir esta palavra já ficava a levantar os pés do chão. Grande parte da cidade não tinha ainda saneamento, esgotos, mas todas as casas tinham fossas que sempre funcionaram perfeitamente. Final de Março, tempo de chuva grossa, uma noite caiu um toró respeitável, e de manhã, nas traseiras da casa as águas tinham aberto uma “cratera” talvez com um metro de diâmetro. Vovó Zé, logo de manhã quis ver os estragos! Naquele momento saía do buraco uma distraída cobra a quem também apeteceu um pouco do belo sol da manhã! Quando a minha Mãe viu aquele horrível monstro apanhou um susto de tal ordem que correu para dentro de casa, subiu em lapsos de segundos para o andar dos quartos e foi pôr-se em cima duma cama com as saias levantadas! Foi um problema convencê-la a descer novamente, mesmo com a garantia dada pelo heróico filho de que já tinha matado a fera e levado os despojos para longe de casa!
Poucos dias depois as dores do parto chegaram. Chama-se a parteira da Cuca, a grande parteira Adriana, eficientíssima, bem disposta e alegre, e no dia cinco de Abril a Helena viu a luz do dia!
Pela mesma época as outras duas casas foram igualmente presenteadas com duas garotinhas, lindas como seria de esperar: a Ana Melícias e a Leonor Belo!
Alegria, muitos cuidados de todos os amigos de Luanda, sobretudo dos geograficamente mais chegados, incansáveis a querer ajudar!
Depois eu conto mais enquanto não vamos para a rua Cabral Moncada!

13 nov. 09

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

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África no coração
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A casa da saudade chama-se memória!
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“Tenho uma lágrima no canto do olho...” lá diz o Bonga!
Porque será que praticamente toda a gente que passou por Angola, e Moçambique, e ali viveu mais ou menos tempo, guarda no coração uma saudade profunda, bonita, quase triste, e continua a sonhar com essa época que tanto marcou a sua vida?
Pergunta esta que me tem sido feita inúmeras vezes. Mas só por gente que nunca por lá viveu.
É um fenômeno curioso, que devia ser analisado por psicólogos, se é que não foi já, mas que não é difícil de compreender.
Conheci há alguns anos uma senhora que nascera em Magude, Moçambique, em 1908, e, por morte do pai, com problemas de saúde, saiu de Lourenço Marques para Portugal com 16 anos de idade e nunca mais lá voltou. O que era Magude no princípio do século XIX? E até Lourenço Marques, onde viviam umas dúzias de europeus? Terras inóspitas, até insalubres. Mas essa senhora, quando a conheci, com oitenta e muitos anos, era comigo que ela gostava de conversar, recordar a sua terra de que sentia uma saudade que não sabia explicar!
Lá por meados do século passado, Portugal finalmente começou a olhar para Angola. Até aí esta tinha vivido a época do tráfego, alguma cera e pouco mais, ou nada mais até acabar o século XIX. O XX começa com um Portugal desfeito em politiquices, intrigas e falência econômica. A seguir a I Grande Guerra, a fobia anti-clerical, o crash de 29, a ditadura, o receio, pavor, do comunismo, a Guerra Civil de Espanha, a II Grande – enorme – Guerra, e assim metade do século se eclipsou no meio de tanta vergonha e insânia.
A Europa tentava se recompor da guerra, comércio mundial em grande penúria, e Portugal... foi quando, e só, se despertou para Angola. Moçambique vivia ainda sob os resquícios dos “prazos”, alguns transformados em companhias majestáticas, dos portos da Beira e Lourenço Marques e seus caminhos de ferro para a (ex) Zambézia e África do Sul, das economias dos trabalhadores moçambicanos nas minas do Transvaal, que a África do Sul pagava em ouro e Portugal lhes entregava em “vales”, produzia um pouco de chá, açúcar e algum algodão que alimentava as precárias indústrias têxteis do norte e assim ia vivendo.
Angola por essa época quase só tinha a Companhia dos Diamantes, a Cotonang dos algodões, e o café, cuja procura mundial crescia e atraía investimentos e, desde 1931 o Caminho de Ferro de Benguela que ligava o porto do Lobito ao Catanga. E madeira das florestas do Maiombe e de diversos outras áreas de Angola.
Só nessa altura é que a tal Metrópole percebeu que as colónias tinham imenso potencial e estavam fora dos problemas comerciais que afetavam o mundo!
Angola precisava de gente para se desenvolver. Técnicos, professores, administradores.
Dois ou três liceus, em Luanda, Sá da Bandeira e Nova Lisboa, o primeiro com um ensino de altíssima qualidade, tal a dedicação dos professores, o ensino primário, fora das cidades, entregues às missões religiosas e, ainda em 1954, menos de 100 quilômetros de estradas asfaltadas, e raras indústrias.
Começaram a chegar técnicos. Gente nova, cheia daquela vontade própria da juventude, voluntariosa, que aceita o desafio para trabalhar em terras longínquas, desconhecidas, ainda cheia de mistérios e pouco conforto. Não foram poucos os que desembarcaram de faca na cintura com medo de encontrar um perigosa cobra logo ali, no cais do porto, à sua espera! Mas animada com o desafio, um campo quase virgem para trabalhar, e longe da saturada atmosfera dum país pequeno, com politicagem e polícias secretas, futuro minúsculo, sem desafios, e ainda com os problemas de quase sempre ter que carregar a família nas costas, mesmo que não economicamente, socialmente. Aniversário, casamento, batizado, havia que convidar tios, primos e acessórios, os simpáticos e os chatos, tornando tantas vezes essas “festas” num sacrifício social e financeiro desperdiçado. Mas obrigatório! Havia o “parece mal...”.
Em Angola essa juventude encontrou liberdade. Finalmente entregues a si próprios! A PIDE, quase inexistente, pouco tinha o que fazer e só veio a desenvolver-se, e muito, para combater as idéias e gente que decidiu apoiar os movimentos de libertação. Falar mal do Salazar, ou votar contra o governo, mesmo em eleições pré-definidas, não preocupavam a polícia, mas animavam aquela gente que se orgulhava de mandar o recado a Salazar: “não gostamos de você!”
A família que fica longe é evidente que sempre faz falta, aqueles de quem gostamos, e de quem guardamos imensa saudade, não os chatos e invejosos ou inchados de vaidade, e a solução encontrada em África para a substituir foi simples: os amigos, muitos dos quais já se conheciam da Metrópole, desde tenra idade ou haviam sido colegas de estudo, casais novos com filhos a nascer, logo se encontraram e criaram laços fortes. Muito fortes. Como irmãos.
A maioria, por razões óbvias, teve de abandonar África com a independência e tremenda convulsão e anarquia que se lhe seguiu, mas ainda hoje esses amigos são a verdadeira família que cada um criou à sua volta.
Claro que influi nesta saudade todo um ambiente especial.
O povo do interior, do “mato”, para quem teve oportunidade de lidar com ele, é recordado com um carinho especial perante a sua simplicidade e até humildade. Tal como dizia Gilberto Freire quando, para estudar os ancestrais do povo brasileiro, foi ao interior de Portugal conhecer aquela gente humilde das aldeias e se encantou, afirmando que “adorava analfabetos”! Os analfabetos podem não saber ler nem escrever, mas não são ignorantes e têm um profundo conhecimento da vida simples, o que lhes dá uma dimensão moral e humana, que a maioria de nós, pseudo cultos, não consegue alcançar. Mas respeita e admira. Muito mais ignorantes são os que leem e escrevem e não compreendem o Outro.
O espaço, a imensidão de Angola, apresentava, e apresenta ainda hoje, um permanente desafio à capacidade de realização de cada um, junto à beleza de um pôr de sol, na costa ou no planalto, que obriga a meditar, além de praias lindas e o mar generoso e cheio do melhor peixe do planeta...
Nem todos se aventuraram pelo “mato”. Uns, talvez só uma rápida visita às Quedas do Duque, hoje Calandula, sentir-se formiguinha ao contemplar a majestade das Pedras Negras de Pungo Andongo, a Tundavala ou as florestas dos Dembos, talvez o Xai-Xai, Inhaca, Inhambane, Ilha de Moçambique. Mas mesmo sem ter visto isso, e muito, muito mais, as raízes da saudade penetraram fundo.
Foi a visão duma terra cheia de belezas, o pôr do sol, as praias, o soberbo clima das regiões planálticas que o encheu de saudades? Talvez um pouco. Mas foram as amizades criadas e sobretudo a liberdade que se respirava e o largo espaço ajudava a aumentar.
Quem se atreve a recordar esses tempos, família constituída, há pouco saídos da mocidade, e pensar na liberdade que gozava, e nos amigos que criou e ficaram para todo o sempre, e vê os filhos, agora espalhados pelo mundo, hoje gente nos cinqüenta e tantos anos a manterem como irmãos os amigos daquela infância, sem que lhe apareça, indiscreta e irreprimível, “uma lágrima no canto do olho”?


4 nov. 09