Mais um pouco sobre o meu bisavô
FRANCISCO GOMES DE AMORIM - 1827-1891
Escrito em 2002, que deve estar também algures neste blog, mas que vale a pena relembrar e, sobretudo, ajudar a despertar o conhecimento da medicina da Amazônia.
Os Açores e Gomes
de Amorim
Há ali pairando
um misto de tradição envolvido pelo verde dos seus campos e o azul do oceano
que... deve ser respirado, vivido. Um dia, ainda pode ser... e como a esperança
é a última que abandona o homem...
O nosso Gomes de Amorim, como disse um dia o Dr.
Macedo Vieira, Presidente da Câmara da Póvoa de Varzim, não teve adolescência.
Saiu menino de 10 anos de Portugal e assim que chegou ao Brasil, na Amazónia,
passou a viver como um adulto. Fez-se
homem de súbito num clima ainda hoje
difícil, insalubre, e não tardou que a sua saúde começasse a pagar os rigores
dessa sua vida e desse clima.
Em 1840, então com 13 anos de idade subiu o rio Xingu
para ir explorar borracha. Diz ele, na Nota
LV de “Ódio de Raça”:
Saímos do Pará em duas canoas
com todo o necessário para os trabalhadores e tripuladas por uns doze tapuios e
um branco natural do Rio de Janeiro. ...logo que passámos a última vila
(Pombal)... (já teriam
navegado mais de 1.000 quilómetros rio acima) desembarcámos defronte de uma ilha que depois soubemos chamar-se de
Santa Maria... Derrubámos uma porção de arvoredo junto à borda do rio...
amarrámos com cipós quatro travessas nas árvores dos lados. Cobrimos tudo com folhas de palmeira e
ficámos proprietários de uma casa.
Não era
exatamente um hotel cinco estrelas, não tinha ar condicionado, nem levavam com
eles antimaláricos ou outras “modernidades”.
Dois anos depois
...Eu era caixeiro duns portugueses que fizeram
um navio no sertão. Aqueles tratantes... obrigaram-me a trabalhar como
carpinteiro e remador. Andávamos a tirar madeira de maçaranduba na margem
austral do Amazonas, três dias de viagem acima da boca superior do rio
Alenquer, quando adoeceu com sezões o mestre dos carpinteiros. ...peguei no
machado do mestre dos carpinteiros e subi para cima dum grosso tronco de
maçaranduba que andava a lavrar. Dei o primeiro golpe com tal força que o
machado entrou dentro da linha do giz, por onde devia ser aparelhada a madeira;
desci imediatamente para cortar o cavaco do lado oposto, mas, apanhando-o em
falso o machado resvalou , correndo como um raio pelo pau fora, e veio dar-me
um profundo golpe abaixo da articulação tíbio-társica do pé esquerdo,
cortando-me o tarso obliquamente até à planta!
Perguntou a um
dos tapuios:
- Que é bom para isto?
- Isca queimada.
- Dá cá.
... foi ao cesto (uru) onde se guardava, num canudo de
taboca, o pano queimado que nos servia de isca, e voltou a correr. Rasguei um
pedaço da camisa e limpei o sangue. O tapuio encheu o golpe com pano queimado e
– um outro – pegando numa faca foi para o interior da
floresta. Passados alguns instantes voltou trazendo um cipó de cujas pontas
escorria um leite gomoso e avermelhado que ele me deitou no pé. Este suco
grudou a isca sobre a carne.
Os remédios com que me curavam, além do pano queimado,
eram cascas de árvores silvestres e leites de várias plantas.
Assim se curou o
pé, depois de muitas outras peripécias, do nosso Aprendiz de Selvagem, como tão bem o retratou o Dr. Costa Carvalho
no seu livro com este nome, que acaba por dizer que fiquei com o pé doente mais sólido do que o outro!, homenageando
deste modo a sapiência tradicional dos índios da Amazónia.
Mas sezões, pés
cortados a machado e outras violências dum ambiente hostil, um dia cobram os
seus impostos.
Pouco tempo
depois de casar, aos trinta anos, em 1857, foi acometido duma congestão
cerebral, cujas consequências o acompanharam pela vida fora, impossibilitando-o
de comparecer com regularidade ao seu trabalho, retendo-o em casa com
enxaquecas e quase permanente falta de saúde, que o levaram a considerar-se um “valetudinário”.
À procura de
solução para a sua saúde, que os médicos não conseguiam resolver, decide, não
se sabe a conselho de quem, ir aos Açores, São Miguel, procurar nas águas
quentes e sulfurosas de Furnas, o alívio que tanto desejava.
São de jornais
de Ponta Delgada as seguintes notícias:
“Persuasão” - 24
de Setembro de 1862: Gomes d’Amorim,
Francisco – Este notável poeta português que nas águas das Furnas veio procurar
alívios a grandes padecimentos que sofre, vai para Lisboa nesta viagem do
“Açoreano”. Sentimos que o ilustre enfermo não encontrasse as melhoras que
deseja mas também não se lhe agravaram os males. Sabemos que o sr. Amorim vai
muito penhorado da obsequiosa maneira com que foi recebido nesta ilha e de que
leva gratas impressões de todos os lugares que visitou.
“Aurora dos
Açores” - 27 de Setembro de 1862:
Francisco Gomes de Amorim, desejando dar ao público um testemunho do seu
reconhecimento pelas muitas provas de afectuosa consideração e simpatia, que
recebeu durante a sua residência nesta ilha, e não lhe permitindo o seu mau
estado de saúde despedir-se pessoalmente de todas as pessoas que lhe fizeram o
favor de o visitar, tanto no vale das Furnas como em Ponta Delgada, a todos
agradece por este modo, despedindo-se com profunda saudade e protestando
conservar sempre viva a memória dos favores que recebeu nesta formosa terra.
Apesar de não
ter obtido resultados volta no ano seguinte.
“Persuasão” - 3
de Junho de 1863: Este mimoso poeta (Gomes d’Amorim) chegou a
Ponta Delgada. Demora-se poucos dias na cidade e segue para as Furnas a fazer
uso dos banhos termais.
Pior ainda se
deu.
“Persuasão” – 9
de Setembro de 1863: O ilustre poeta Gomes d’Amorim regressou das
Furnas para esta cidade em muito mau estado de saúde. O sr. Dr. José Pereira
Botelho, ornamento da medicina portuguesa, que tão desveladamente tratou nas
Furnas o sr. Amorim, acompanhou o seu regresso e hospedou-o em sua própria
casa, onde ele, sua excelente esposa e muito estimáveis filhas não poupam
desvelos e carinhos na convalescença do sr. Gomes d’Amorim. Está muitissimo
melhor do que veio das Furnas. Já se levanta, passeia e conversa há bastantes
dias, sentindo ainda, infelizmente repetidas perturbações cerebrais. É possível
que os banhos de mar, que já toma há dias, sejam proveitosos ao desditoso
enfermo. Para tranquilidade de sua família e amigos do continente, asseguramos
com profundo conhecimento, que o sr. Amorim, nem mesmo no meio de sua família
seria tratado com mais afago e comodidades do que está sendo em casa do
distinto e desinteressado médico de Ponta Delgada, o sr. Dr. José Pereira
Botelho.
“Persuasão” – 30
de Setembro de 1863: Sr. Redator.- Próximo ao movimento de seguir
viagem para Lisboa venho pedir-lhe o favor de me conceder um cantinho do seu
jornal, para eu dar público testemunho do meu sincero reconhecimento pelas
muitas provas de afectuoso interesse que recebi durante a minha residência
nesta bela ilha.
O doloroso estado em que vou partir, impede-me de
agradecer pessoalmente os favores que me honraram, e tira-me toda a esperança
de tornar a ver os que mos fizeram; mas creiam todos aqueles a quem devi um
cuidado ou um afecto, que a minha memória e o meu coração lhes serão sempre
fiéis enquanto eu viver.
Os banhos de Furnas, propícios para tantos males, não
me foram favoráveis; e a não serem os estremecidos cuidados com que me rodeou a
mais pura, a mais caridosa, a mais fervorosa afeição, eu teria achado no meio
das formosuras d’aquele vale, um lugar de repouso eterno, em vez do alívio que
buscava.
Não o quis Deus assim. Ao lado da desventura, que
agravou os meus padecimentos, surgiram logo milagres de zêlo, grandes afectos,
uma nova família, que Deus mandava para substituir a que tinha longe: tudo,
enfim, quanto o favor do céu produz na terra! Se a saúde fosse possível, eu
tê-la-ia recobrado. De todos os lados me amparavam mãos abençoadas pela
providência; e, ao partir, não posso deixar de derramar sobre elas todas as
lágrimas da minha gratidão e da minha saudade.
Se me não é permitido citar nomes, nem dirigir mais
claramente os meus agradecimentos àqueles a quem mais devo, e a quem mais amo,
tenho-os todos no pensamento, ao dizer este último adeus à terra que os viu
nascer.
Adeus, pois, formosa e querida ilha! Adeus, pátria dos
bons corações! Que Deus te dê sempre destes belos frutos, e pague por mim as dívidas que eu aqui deixo.
Ponta Delgada, 28 de Setembro de 1863. F. Gomes de
Amorim.
Não ganhou saúde
o nosso poeta, mas ganhou uma família nova, a família desse grande médico e
grande homem que foi o Dr. José Pereira Botelho. Grande e muito conceituado
médico, sendo o filho, homem, mais velho de 10 irmãos, como morgado, devia
herdar a quase totalidade dos bens de seus pais. Fez questão de abdicar do
morgadio e dividir a herança com os irmãos, coisa rara, e talvez única no seu
tempo, o que demonstra o valor do seu temperamento moral.
É pois o Dr.
Pereira Botelho, sem qualquer favor, uma das grandes figuras de São Miguel.
Salvou a vida do nosso Gomes de Amorim e ganhou mais um admirador e um grande e
reconhecido amigo.
Na biografia
deste médico, publicada na revista “Insulana” em 1954, escreve António Augusto
Ripley da Mota em “O Dr. Botelho e o seu
tempo”:
Havia clientes que o adoravam. Daqui e de fora da
Ilha! ... distinguiremos Francisco Gomes de Amorim, o conhecido biógrafo de
Garrett que viera experimentar (aliás sem resultado) as águas termais de
Furnas;
Mais adiante: Todos ficavam agradecidos, alguns
permaneciam seus íntimos amigos, como Gomes de Amorim que bem o manifesta numa
longa correspondência de mais de 20 anos ... e no Cap. IV do seu livro “Fructos
de Vário Sabor” (Lisboa, 1876), intitulado “Saudades” e dedicado ao “Dr. J. P.
B.”.
Deste modo,
acabou Francisco Gomes de Amorim entrando para a história dos Açores.
Rio de Janeiro, Junho de 2002
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