domingo, 6 de novembro de 2016



Alfabetização falhada!
Moçambique – 1973-74

Aí por 1973, em Lourenço Marques. Apareceu no banco onde eu trabalhava, o BCCI, um professor, cujo nome há muito esqueci, infelizmente, que há anos andava a estudar um método de alfabetização das massas populares, sem que estas tivessem necessidade de frequentar escolas. O ensino seria feito através da rádio!
Pela explicação que o professor deu, o método parecia extremamente bem arquitetado, o assunto mereceu o maior interesse do banco, e começámos a discuti-lo com mais profundidade, para ver da possibilidade de pôr o plano em funcionamento.
Não me lembro que técnica o professor usaria, mas alguma coisa estaria baseada no que o missionário americano Franck C. Laubach (1884 – 1970), um missionário protestante conhecido nos EUA e nas Filipinas como "O apóstolo dos analfabetos", ensaiara com grande sucesso, e o educador brasileiro Paulo Freire havia experimentado com muito êxito no Brasil, de onde, após a instalação da ditadura militar teve que sair para se exilar no exterior, por considerarem que o método era politicamente revolucionário. Também era, como é qualquer método que leve as populações a terem acesso à informação, ao conhecimento, à cultura, e saibam assim exigir aquilo a que têm direito.

Franck C. Laubach

Aprovado o projeto, que se deveria circunscrever inicialmente à capital e sua cintura populacional, para que se pudesse acompanhar a evolução do ensino e, eventualmente introduzir as necessárias alterações ou correções, partimos para a sua execução.
Ficou bem assente que se os textos envolvessem tendências políticas, logo a PIDE, além de proibir a sua utilização, ainda nos trancafiava a todos atrás das grades. Tipo Inquisição perfeita e sofisticada, que lá mais nos antigamentes chegou até a querer destruir Luís de Camões, que esteve em risco de ser proibido de editar “Os Lusíadas”!
O sistema, ou método, compunha-se basicamente de três pontos:
- impressão de um livro/caderno, e sua distribuição gratuita entre a população interessada;
- programa de rádio, diário, que explicaria aos alunos como associar o que viam escrito nos cadernos a letras do alfabeto;
- exames periódicos, sem a necessidade da presença do interessado, através de uma ou mais folhas destacáveis do caderno a serem entregues em locais pré-estabelecidos, as quais depois de analisadas informariam o aluno do seu aproveitamento.
Pelos cálculos do professor, cada turma não demoraria mais do que três meses a aprender a ler e começar a escrever. Era um método surpreendente! Num instante a grande maioria da população poderia estar, no mínimo, a ler!
Previa-se, para a primeira rodada a distribuição de uma ou duas dezenas de milhares de cadernos, calculando-se que de início o aproveitamento final seria de trinta a quarenta por cento.
As rádios contatadas puseram os seus microfones à disposição do programa, sem qualquer custo, o que não era nenhuma gentileza porque se previa que a grande maioria da população, pobre e/ou analfabeta, com uma imensa fome de aprender, ia sintonizar, de manhã bem cedo, os seus rádios na emissora escolhida!
Orçamentos de impressão e divulgação do programa, prontos. Os interessados só teriam que ir a uma das agências do nosso banco solicitar a entrega de um caderno, oferecido, como é óbvio, e deixar o seu nome inscrito para controle dos resultados. Podiam até dar nome falso que ninguém iria conferir.
O professor revisava os textos a serem entregues na gráfica, para não cair ingenuamente, ou quem sabe, deliberadamente, nas garras dos pides, e nós, no banco, entusiasmados com o resultado social que esperávamos alcançar.
Chegou a revolução dos cravos, e como se está mesmo a ver ficou tudo encravado! Suspendeu-se o programa até se poder ver um pouco do que estava à frente para vir. Não demorou que o governo, português, anunciasse que ia entrar um novo governo de transição, até à entrega definitiva do país após a sua independência.
Logo que assentou um pouco a poeira dos novos sovietizados governantes provisórios/transitórios,  pedimos uma audiência ao provisório ministro da educação. Jovem, alto, quase não falava português, formado numa universidade de non whites em Durban, na África do Sul, compreensivelmente racista, encarando os brancos, todos, como inimigos, recebeu-me com uma frieza polar. A seu lado uma diretora de serviços, moçambicana, formada na Universidade de Coimbra, cultura com que podíamos dialogar, jovem, bonita (já tinha marcado a sua bela presença na cidade!) e simpática. Mas o ministro não era ela.
Expus, detalhadamente o programa que tínhamos levado quase um ano a montar, e que estava pronto a ser posto em funcionamento.
Como era evidente o novo governo deveria rever os textos e dar-lhe o sentido que entendesse. O professor estava pronto a fazer as necessárias alterações. Tudo quanto faltava era mandar imprimir os cadernos, o que o banco continuava disposto a fazer a seu cargo, distribui-los e começar.
O ministro, ouviu, ouviu, sua cara imóvel como uma máscara maconde.
- Porque é que o banco, sendo uma empresa capitalista, quer alfabetizar as populações?
Já faltava mesmo uma perguntinha de caráter vermelhusco!
- O senhor sabe que em qualquer parte do mundo todas as empresas visam um lucro. Mesmo no bloco soviético. Se não tiverem lucro quem arca com as despesas é o povo! No mundo ocidental é o mesmo. A única coisa que há a fazer é controlar as margens para que não sejam abusivas. Além disso o banco ao pensar neste projeto, olhou para o futuro, e como tudo quanto um banco tem para oferecer, qualquer outro banco também tem, aos mesmos custos, imaginámos que este investimento nos poderia trazer um dia, bem mais tarde, a simpatia da população e assim termos mais facilidade em cativar clientes.
- Mas porque é que o banco, sendo uma empresa capitalista quer alfabetizar as populações?
A mesma pergunta! Ou estava a gozar comigo ou algo novo estava a aparecer-lhe pela frente, coisa que ele nem imaginava que pudesse existir.
Respondi dentro da mesma tónica e rebuscava no fundo das minhas capacidades, argumentos que o convencessem que, da parte do banco, não havia jogo escondido, político, de branco contra negro, ou anti independência, sei lá! Sei que suei para tentar arrancar daquela cara fechada a sete chaves algo que pudesse permitir uma troca de idéias mais normal.
A mocinha, lindona, de vez em quando, sem que o chefe visse, ia assentindo, naturalmente, com a cabeça, parecendo concordar que o programa só poderia trazer vantagens até para o novo governo, dentro da medida em que a revisão dos textos levasse a introduzir frases de nova mentalização, o que era fácil. Tudo isto expus ao ministro. Ao fim de uma hora de muita luta verbal aquela máscara moveu um pequeno músculo! Aleluia! Começava a sair detrás de todo aquele gelo e a ser só gente.
Nessa altura descontraí um pouco a conversa e, glória minha, desculpem a imodéstia, consegui fazer sorrir aquele homem, inteligente, mas certamente também traumatizado, o que permitiu que a troca de idéias fluísse mais naturalmente.
Saí de lá com a certeza de que o diálogo estava estabelecido. A primeira hora tinha sido unicamente um extenuante monólogo. À despedida disse-me que tinha pela frente uma tarefa imensa e dificílima, o que eu sabia ser verdade, ia pensar nisso e na próxima semana voltaríamos a falar.
- A doutora... lhe telefonará.
Aguardei, e lá veio um dia o telefonema marcando outra reunião. O ministro já não trouxe a máscara. Vinha com cara de gente. Infelizmente tantas eram as suas preocupações, e tão pouca a gente disponível para montar toda uma nova estrutura educacional, num país novo, não podiam comprometer-se em lançar esse programa durante os primeiros tempos.
- Talvez mais tarde.
Não houve, nunca mais, esse mais tarde. Tive muita pena que não tivessem aceite. Estava tudo feito, pronto, e teria sido uma tremenda ajuda ao novo país, totalmente desinteressada. O trabalho deve ter-se perdido, mas quem mais perdeu foram aqueles que não se alfabetizaram.

Escrito em 2001. Revisto em 5-nov-16


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