Alfabetização falhada!
Moçambique
– 1973-74
Aí por 1973, em
Lourenço Marques. Apareceu no banco onde eu trabalhava, o BCCI, um professor,
cujo nome há muito esqueci, infelizmente, que há anos andava a estudar um
método de alfabetização das massas populares, sem que estas tivessem
necessidade de frequentar escolas. O ensino seria feito através da rádio!
Pela explicação que o
professor deu, o método parecia extremamente bem arquitetado, o assunto mereceu
o maior interesse do banco, e começámos a discuti-lo com mais profundidade,
para ver da possibilidade de pôr o plano em funcionamento.
Não me lembro que
técnica o professor usaria, mas alguma coisa estaria baseada no que o
missionário americano Franck C. Laubach (1884 – 1970), um
missionário protestante conhecido nos EUA e nas Filipinas como "O apóstolo
dos analfabetos", ensaiara com grande sucesso, e o educador brasileiro
Paulo Freire havia experimentado com muito êxito no Brasil, de onde, após a
instalação da ditadura militar teve que sair para se exilar no exterior, por
considerarem que o método era politicamente revolucionário. Também era, como é
qualquer método que leve as populações a terem acesso à informação, ao
conhecimento, à cultura, e saibam assim exigir aquilo a que têm direito.
Franck C. Laubach
Aprovado o projeto,
que se deveria circunscrever inicialmente à capital e sua cintura populacional,
para que se pudesse acompanhar a evolução do ensino e, eventualmente introduzir
as necessárias alterações ou correções, partimos para a sua execução.
Ficou bem assente que
se os textos envolvessem tendências políticas, logo a PIDE, além de proibir a
sua utilização, ainda nos trancafiava a todos atrás das grades. Tipo Inquisição
perfeita e sofisticada, que lá mais nos antigamentes chegou até a querer
destruir Luís de Camões, que esteve em risco de ser proibido de editar “Os
Lusíadas”!
O sistema, ou método,
compunha-se basicamente de três pontos:
- impressão de um
livro/caderno, e sua distribuição gratuita entre a população interessada;
- programa de rádio,
diário, que explicaria aos alunos como associar o que viam escrito nos cadernos
a letras do alfabeto;
- exames periódicos,
sem a necessidade da presença do interessado, através de uma ou mais folhas
destacáveis do caderno a serem entregues em locais pré-estabelecidos, as quais
depois de analisadas informariam o aluno do seu aproveitamento.
Pelos cálculos do
professor, cada turma não demoraria mais do que três meses a aprender a ler e
começar a escrever. Era um método surpreendente! Num instante a grande maioria
da população poderia estar, no mínimo, a ler!
Previa-se, para a
primeira rodada a distribuição de uma ou duas dezenas de milhares de cadernos,
calculando-se que de início o aproveitamento final seria de trinta a quarenta
por cento.
As rádios contatadas
puseram os seus microfones à disposição do programa, sem qualquer custo, o que
não era nenhuma gentileza porque se previa que a grande maioria da população,
pobre e/ou analfabeta, com uma imensa fome de aprender, ia sintonizar, de manhã
bem cedo, os seus rádios na emissora escolhida!
Orçamentos de
impressão e divulgação do programa, prontos. Os interessados só teriam que ir a
uma das agências do nosso banco solicitar a entrega de um caderno, oferecido,
como é óbvio, e deixar o seu nome inscrito para controle dos resultados. Podiam
até dar nome falso que ninguém iria conferir.
O professor revisava
os textos a serem entregues na gráfica, para não cair ingenuamente, ou quem
sabe, deliberadamente, nas garras dos pides, e nós, no banco,
entusiasmados com o resultado social que esperávamos alcançar.
Chegou a revolução dos cravos, e como se está
mesmo a ver ficou tudo encravado! Suspendeu-se o programa até se poder ver um
pouco do que estava à frente para vir. Não demorou que o governo, português,
anunciasse que ia entrar um novo governo de transição, até à entrega definitiva
do país após a sua independência.
Logo que assentou um
pouco a poeira dos novos sovietizados governantes
provisórios/transitórios, pedimos uma
audiência ao provisório ministro da educação. Jovem, alto, quase não falava português,
formado numa universidade de non whites
em Durban, na África do Sul, compreensivelmente racista, encarando os brancos,
todos, como inimigos, recebeu-me com uma frieza polar. A seu lado uma diretora
de serviços, moçambicana, formada na Universidade de Coimbra, cultura com que
podíamos dialogar, jovem, bonita (já tinha marcado a sua bela presença na
cidade!) e simpática. Mas o ministro não era ela.
Expus, detalhadamente
o programa que tínhamos levado quase um ano a montar, e que estava pronto a ser
posto em funcionamento.
Como era evidente o
novo governo deveria rever os textos e dar-lhe o sentido que entendesse. O
professor estava pronto a fazer as necessárias alterações. Tudo quanto faltava
era mandar imprimir os cadernos, o que o banco continuava disposto a fazer a
seu cargo, distribui-los e começar.
O ministro, ouviu,
ouviu, sua cara imóvel como uma máscara maconde.
-
Porque é que o banco, sendo uma empresa capitalista, quer alfabetizar as
populações?
Já faltava mesmo uma
perguntinha de caráter vermelhusco!
-
O senhor sabe que em qualquer parte do mundo todas as empresas visam um lucro.
Mesmo no bloco soviético. Se não tiverem lucro quem arca com as despesas é o
povo! No mundo ocidental é o mesmo. A única coisa que há a fazer é controlar as
margens para que não sejam abusivas. Além disso o banco ao pensar neste
projeto, olhou para o futuro, e como tudo quanto um banco tem para oferecer,
qualquer outro banco também tem, aos mesmos custos, imaginámos que este
investimento nos poderia trazer um dia, bem mais tarde, a simpatia da população
e assim termos mais facilidade em cativar clientes.
-
Mas porque é que o banco, sendo uma empresa capitalista quer alfabetizar as
populações?
A mesma pergunta! Ou
estava a gozar comigo ou algo novo estava a aparecer-lhe pela frente, coisa que
ele nem imaginava que pudesse existir.
Respondi dentro da
mesma tónica e rebuscava no fundo das minhas capacidades, argumentos que o
convencessem que, da parte do banco, não havia jogo escondido, político, de
branco contra negro, ou anti independência, sei lá! Sei que suei para tentar
arrancar daquela cara fechada a sete chaves algo que pudesse permitir uma troca
de idéias mais normal.
A mocinha, lindona,
de vez em quando, sem que o chefe visse, ia assentindo, naturalmente, com a
cabeça, parecendo concordar que o programa só poderia trazer vantagens até para
o novo governo, dentro da medida em que a revisão dos textos levasse a
introduzir frases de nova mentalização, o que era fácil. Tudo isto expus ao
ministro. Ao fim de uma hora de muita luta verbal aquela máscara moveu um
pequeno músculo! Aleluia! Começava a sair detrás de todo aquele gelo e a ser só
gente.
Nessa altura
descontraí um pouco a conversa e, glória minha, desculpem a imodéstia, consegui
fazer sorrir aquele homem, inteligente, mas certamente também traumatizado, o
que permitiu que a troca de idéias fluísse mais naturalmente.
Saí de lá com a
certeza de que o diálogo estava estabelecido. A primeira hora tinha sido
unicamente um extenuante monólogo. À despedida disse-me que tinha pela frente
uma tarefa imensa e dificílima, o que eu sabia ser verdade, ia pensar nisso e
na próxima semana voltaríamos a falar.
-
A doutora... lhe telefonará.
Aguardei, e lá veio
um dia o telefonema marcando outra reunião. O ministro já não trouxe a máscara.
Vinha com cara de gente. Infelizmente tantas eram as suas preocupações, e tão
pouca a gente disponível para montar toda uma nova estrutura educacional, num
país novo, não podiam comprometer-se em lançar esse programa durante os
primeiros tempos.
-
Talvez mais tarde.
Não houve, nunca
mais, esse mais tarde. Tive muita
pena que não tivessem aceite. Estava tudo feito, pronto, e teria sido uma
tremenda ajuda ao novo país, totalmente desinteressada. O trabalho deve ter-se
perdido, mas quem mais perdeu foram aqueles que não se alfabetizaram.
Escrito em 2001. Revisto em 5-nov-16
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