sábado, 24 de março de 2012



O GOVERNO GERAL DO REINO DE BENGUELA



Continuação - 3


Não se sabe se em Lisboa ou Madrid foram tão felizes com as amostras enviadas, e se encontraram cobre que valesse a exploração. Parece que todos negavam a sua existência e só Manuel Cerveira e al¬guns dos ministros seus amigos na Corte o afirmavam: «e soube o corar de man.ra cô arteficio e valias q. tem que assy o persuadia e algüs ministros de V. M.e (posto que outros tiveraõ tudo por fantástico como o he)» (1).
A gente que acompanhou os que foram na primeira expedição, negava a existência do minério, e o próprio Manuel Cerveira, di¬zia-se, o afirmava porque “de ouvido sabia avello» e porque, pedindo aos indígenas para lhe trazerem algumas pedras do terreno onde iam buscar o cobre, eles lhe levaram “dous cestos de terra tinha mistorado azinhaure que era sinal de cobre...» (2). E certo que apare¬ciam os indígenas usando manilhas de cobre e estimando-as bastante, mas “o fundamento que tomaram para dizerem que o havia, pelo os naturaes trazerem, é esse mesmo tomo eu para dizer que o não ha, ou muito pouco, porque onde se estimam as cousas muito, como fazem ao «cobre os naturaes de Benguella, é signal que há muito poucas ou nenhumas... e, como os naturaes o tiram sem meter cabedal nenhum e com muita fleima, e se contentam fazer uma manilha em um mez e leva-la ao seu rei, e são muitos, vem elle ajuntar essa quantidade com as mais que por decurso do tempo tinham vindo a seus antecessores... e a mim me parece quiz mandar Manuel da Silveira o metal apurado foi por achar mina de pouco rendimento e não quiz mandar mostras, que isto faz quem só quer contemporisar com Sua Majestade», como judiciosamente expunha Bento Banha Cardoso (3).
Fosse como fosse, demorou-se Manuel Cerveira, algum tempo, ainda que pouco, em Luanda, esperando as ajudas prometidas e nada conse¬guindo, nem vindo resposta do reino, regressou a Benguela em Março de 1621 e, comentava o Padre Mateus Cardoso, «Deus o ajude q. assas patientia tem mostrado, elle he por natureza capitão e soldado e em tudo venturoso e se se dera ajuda a esta Conquista de Benguella estivera oje muito prospera, mas até gora foi dezemparada».
A resposta por fim chegou. A-pesar-de toda a intriga movida à roda deste negócio, ainda mais uma vez a Corte ordenava que se prestasse o auxílio, pedido por Manuel Cerveira e lhe fosse enviado pelo Governador João Correia de Sousa, que seguia para Angola, mas, parece, não se conhecia ainda o resultado da fundição das pedras.
Manuel Cerveira, em vista do pequeno efectivo que tinha em Benguela, receava a coligação do gentio para um ataque, e, ao mesmo tempo, convencido de que se viesse o reforço de gente que pedira, nunca seria por tal forma grande que desse para manter uma guarnição suficiente na fortaleza que fizera, e ter soldados para poder ir tomar as terras do Samba Ambuila onde existiam as minas de cobre, projectava mudar a cidade de Benguela, com todos os haveres, seus e dos brancos que por lá estavam, para o porto que servia as minas, pois Felipe IV, agora Rei, determinava-lhe que as pusesse em laboração.
Pedia, para esse efeito, que lhe mandassem cem homens, um barbeiro para sangrar os doentes, um serralheiro para concertar o armamento, e de Luanda um capitão mor e o tandala (4) António Dias, também conhecido por António Mussungo, com toda a sua gente preta, e os três cavalos enviados do reino e de que o Governador Luiz Mendes se tinha apossado.
O Governador João Correia de Sousa trazia ordem para satisfazer a requisição de Manuel Cerveira. O seu navio fez a viagem com rumo a Benguela, como tinha sido estabelecido, para depois seguir com o vento de feição para Luanda. Manuel Cerveira aproveitou a ocasião para, muito atenciosamente, mandar apresentar os seus cumprimentos e expor a situação em que se achava, ao que João Correia respondeu, desculpando-se de nada poder decidir sobre os recursos pedidos, por lhe constar estar em Luanda tudo revoltado e não saber do que precisaria (5).
Ao mesmo tempo que em carta dava esta resposta, em conversa com os emissários de Manuel Cerveira, fazia-lhes ver as vantagens que teriam em o abandonarem, pois lhes daria em Luanda os mesmos cargos que ali tinham, e da mesma forma procedia para com outros moradores de Benguela que tinham ido a bordo. Manuel Cerveira prevenido, fez reduzir a escrito a participação que lhe davam e para nada ficar sem ser devidamente documentado, enviou a João Correia de Sousa um precatório para lhe fornecer quanto precisava, muito embora soubesse não seria atendido, e ao mesmo tempo comunicava em carta a Felipe IV o que se passava (6).
Nessa carta Manuel Cerveira expõe, com muita verdade, a Felipe IV, qual a causa das dificuldades para a exploração do cobre de Benguela, e renova o pedido anteriormente feito, “q. he mandar V. Mag. q. o G.or de Angola o seja tão bem deste novo R.° pêra q. assi possa tirar de Angola sem contradição algüa tudo o q. for necessário pêra esta Conquista”.
Sem dúvida alguma era esse o verdadeiro motivo das dificuldades, e erro foi ter Manuel Cerveira querido separar os dois governos, e não ter antes pedido a nomeação de Governador e Capitão Mor de Angola, com o encargo especial de fazer o descobrimento das minas de cobre de Benguela, o que, naturalmente, tinha obtido.
A carta de Manuel Cerveira foi mandada consultar ao Conselho da Fazenda, que não lhe foi favorável, em vista do resultado da fundição das pedras enviadas, e em cuja riqueza em minério Mauuel Cerveira punha todas as suas esperanças. O Rei resolveu em 25 de Maio de 1622 que « na terceira parte em q. trata das mostras que mandou da pedra de cobre se a de dizer que se mandou fundir e declarar se o q. resultou desta fundição e que soposto q. na sai dellas cobre, q. se deve escusar as despesas q. Se fazem naquella conquista pois só se faze para o dito efeito" (7).
E foi este o triste desfecho de dezasseis anos de lutas, em que Manuel Cerveira tudo sofreu, desde a clausura ao dispêndio de grande parte dos seus bens, que empregou na empresa na esperança de os rehaver. Por tudo passou o pobre visionário; revoltavam-se contra ele; doente, amarraram-no, insultaram-no, bateram-lhe e para o matarem com a maior crueldade, meteram-no em um bote para que o mar o levasse; resistiu e voltou, e como boneco de sabugo, sempre em pé, ele continua a teimar no cobre, quando tinha a mina do gado, a mina das peças de pretos e a mina do sal, que lhe davam quanto dinheiro quisesse. Vai, enfim, ao cobre; parece que não havia lá nenhum, mas o seu poder de persuasão era tal, que os padres da Companhia de Jesus que foram com ele, afirmam ter as pedras cobre, e os outros em Luanda, o superior e os graduados, fundindo-as, vêem correr o cobre que he finíssimo e sê duvida tem ouro! Chegam as pedras a Lisboa, e “visto que delas não sai cobre, escusam-se as despesas que se faziam, pois só se faziam para esse efeito”.

* * *

Perdidas as esperanças do cobre de Benguela, não julgou a Corte necessário desfazer o governo independente que criara para Manuel Cerveira, que continuou a dirigir os negócios daquele reino, mas não verdadeiramente como Governador, e antes administrando de sua conta aquela propriedade, em que o Rei entrava como sócio.
Os anos foram passando, parece que sem acontecimento de relevo. Os Governadores de Angola abandonavam o colega de Benguela aos seus recursos próprios, e ele entretinha a sua actividade nos negócios que arranjava, sem deixar de insistir para a Corte na exploração das minas.
Fernâo de Sousa, nomeado Governador de Angola, levava na Instrução Secreta (8) que lhe deram, a indicação para averiguar das vantagens das minas, devendo para esse efeito fazer a viagem por Benguela e no caso de convir explorá-las, fornecer de Angola a gente necessária.
Cumprida a ordem expôs a sua opinião (9), começando por não concordar com a escolha do local para a povoação, pois se a intenção era explorar as minas, a cidade deveria ser no porto de Sumbeambuila, que ficava mais perto das supostas minas, além de que o clima era melhor, e havia sobas e negros com quem negociar e os soldados folgarê de estar nelle, e podiao fazer a guerra pêra tirar algü proveito que não ha em Benguella.
Repetia a conhecida versão da ignorância de Manuel Cerveira a respeito do local das minas, porque não sabia mais que dizer q. as avia em Benguella, e de que as pedras enviadas foram escolhidas uma a uma, das que trouxe da única cova que abriu no monte onde dizia haver minério de cobre. Fazia-se eco da insinuação, que a própria Corte devia saber ser falsa, de que Manuel Cerveira tratou som.te de seus particulares resp.tos movido do Rendimento da mina do sal, e da pescaria do zimbo, e do Quicongo, que he madr.a" q. val nesta cidade a três mil rs. o quintal que lhe ficava aly mais a mão pêra o esfructar, como largamente se vê dos ditos das testemunhas, a que não dey juramento porque temy que jurassê falço pela paixão com que estavaô contra Mel Serveyra, mas esta bastantem.te averiguada a verdade”. Esta insinuação deveria ter ferido fundo o velho combatente, que pôs à disposição do Rei o dinheiro para lhe mandarem o socorro que pedia, e de que os Governadores de Angola se utilizaram, sem terem para com ele a menor consideração!
Lembrava Fernão de Sousa no caso do Rei resolver que Manuel Cerveira continuasse na descoberta das minas, deveria mandar se mudasse para Sumbeamballa e que da feitoria de Luanda o provejâo os go remadores do nesses.° como se faz aos presídios, por ser grande a despesa com a duplicação de pessoal, armazéns, etc., e também he pêra conciderar se deve V. Mg.e prover o lugar por q. está mt.° velho e cego, e não trata de mais q. de conservar o titulo de conquistador e governador, sê pagar aos soldados mais q. hü alqueire e meyo de farinha do Brasil cada mês.

* * *

Manuel Cerveira não estava em Benguela quando Fernâo de Sousa lá chegou, pois costumava passar grande parte do tempo em Luanda, deixando a conquista entregue a um capitão mor, Heitor Henriques da Gama. Fernâo de Sousa soube que tinham lá estado uma nau e dois pataxos de guerra holandeses, que vinham às presas e lá armaram uma lancha que traziam em quartéis, e resgataram com a gente do presídio, fazendo aguada e recebendo refrescos. Tendo apurado a responsabilidade, no caso, do capitão mor Heitor da Gama e de um outro capitão André Lobo, a ambos trouxe presos para Luanda, e em carta para o Governo, participando a ocorrência, preguntava o que lhes deveria fazer, que per ser de tanta consideração não hey de proceder até saber o q. V. Mag.e me ordena, porque fez muita cousa pêra os Inimigos se deterê nesta costa efazerë nella e neste porto os danos que fizerão per q. chegarão aly faltos d'agoa, de mantimentos e de saúde, e cô os refrescos q. lhe derão se detiverâo, o q. por ventura não fizerão.
Quando chegou a Luanda mandou chamar Manuel Cerveira e disse-lhe para regressar ao seu presídio, de que tinha feito preito e homenagem, para não suceder outro caso semelhante com os holandeses, mas Manuel Cerveira apontando a tudo ynconvenientes pedindo gente de q. não tê necessidade porq. pêra se mudar não lhe he necessa... não quiz hir nê o fará, e como he costumado a fazer autos, e papeladas, e mandalas ao Reyno pareceu lhe que lhe daria eu occaziâo pêra isso. Mandeylhe notificar pelo ouvidor geral que se fosse, e q. o aviaria do necessá¬rio, e não o fazendo daria conta a V. Mg.de porq. Benguella estava a sua conta e não á minha... Não trata disso, e parece q. esta emfeitiçado porq. me pedio o capitão mor Hector Henriques da Gama afim do levarê na sua companhia as duas sobrinhas de sua molher, e como lhe não deffery não tratou mais da hida.
Terminava Fernâo de Sousa a sua exposição sobre Benguela por incitar o Rei a mandar co grande resolução a M.el Serveyra q. acabe de se desnganar cõ as minas e de enganar V. Mgde.
E para marcar bem a nota da demência e incapacidade do pobre Manuel Cerveira, informava: “em companhia de Hector Henriques e de sua mulher trouxe as duas sobrinhas da mulher de Mel. Serv.a cõ que cohabitava das portas adentro, e pera cõ essa occasião tirar o q. avia de Escandalo q. davão, polo que não convê que Hector Henriques torne a Benguela sê suas cunhadas".

(1) Informação prestada em Lisboa a 7 de Setembro de 1619 pelo Bispo D. João Baptista a Felipe II, sobre assuntos de Angola, e Congo. Anexos, doc, n." 49,cit.
(2) Doc. 49, cit.
(3) Biblioteca da Ajuda, cód. 51-viii-25, fl. 105. Luciano Cordeiro, Memórias do Ultramar. Informação de Bento Banha Cardoso.
(4) Conselheiro ou “capitão da guerra preta”, segundo Cadornega.
(5) Biblioteca Nacional, Secção Ultramarina, Angola, Anexos. Does; n." 89 e 90.
(6) Idem, idem. Anexos. Does. n.»'91, 93 e 93.

(7) Biblioteca Nacional, Secção Ultramarina, Angola. Anexos. Doe. n." 9
(8) Biblioteca da Ajuda, cód. 5i-vni-3o. Doe. a fls. l3 já referido.
(9) Idem, idem. Carta de 15 de Agosto de 1624 a fls. 295. Além desta carta e tratando do mesmo assunto, escreveu Fernâo de Sousa duas outras, uma a 13 de Julho, outra a 29 de Se-tembro de 1624.


23/03/2012

2 comentários:

  1. Como vejo que andou a investigar nos arquivos e bibliotecas, gostaria de perguntar-lhe se por acaso encontrou alguma relação com os nomes dos homens que acompanharam a Manuel Cerveira Pereira nas suas viagens a Benguela?
    Cordialmente,

    Fernando

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  2. Fernando
    A lista de nomes que seguem serão da "época" de Manuel Cerveira Pereira, e estariam lá em Benguela quando ele morreu.
    Antonio Pinto – capitão mor
    Manoel da Costa - capitão
    Lucas Ferreyra - alferes
    Dionizio da Mota - sargento
    Manoel Roiz - cabo
    Cristovão Roiz - alferes reformado
    Paulo Ribeiro - idem
    João Pinheiro - idem
    Soldados:
    Manoel de Freitas, Gaspar de Souza, Antonio Dias, Je. Freyre, Nicolao Ferreira, Mel. da Costa Albernaz, Ignacio Rodrigues, Adão de Gusmão, Ant. de Oliveira, João de Oliveira, Mel. de Oliveira, Fran.co Alvar, Matheus d'Orgas, Fran.co Teixeira, Mel. Glz (Gonçalvez), Ant. Miz, Simão Barbosa, Manoel Pereira, Domingos Alvarez, Gonçalo Roiz, Fran.co Pinheiro, P.o Alvarez, P.o Diaz, P.o Frz. Pasqueira, Francisco d'Elgado.
    “Destes soldados ficavão ympedidos pera não poder tomar armas quatro, sem medico, çurugião, e sem Capelão todos nus, e descalços,e faltos de todo o remedio pera a vida, e saude, e em dezesperação tão grande q. se lhes pode perdoar a culpa se a cometerão.”

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