sexta-feira, 17 de abril de 2009



Mais outro
Francisco Gomes de Amorim
- meu avô -


Meu avô paterno, e homônimo, tal como seu pai, o poeta, Francisco Gomes de Amorim, após terminados os estudos gerais que lhe teriam permitido ingressar na universidade, face às dificuldades financeiras em que a família vivia – seu pai escritor e quase sempre doente e mais cinco irmãs que naquele tempo não saíam de casa para ir trabalhar – decidiu imigrar para o Brasil. Destino: Santa Maria de Belém do Pará, onde seu pai estivera e deixara amigos, entre ele Agostinho José de Almeida, padrinho do novo imigrante.
No dia em que se despediram, em Lisboa, o pai escreveu-lhe uma carta, linda, que já esteve no antigo site, mas que merece ser relida, não só pelos meus filhos, netos e vindouros, mas por toda a gente, porque encerra uma profunda lição de dignidade. Vai aqui transcrita, respeitando a grafia original.

Lisboa, 2 de Fevereiro de 1878

Meu querido filho

No instante de nos separarmos, talvez para sempre, dou-te n’este papel alguns preceitos, inspirados pelo desejo de arreigar e perpetuar na tua alma o sentimento do dever e o amor da verdade e da justiça. Possam as minhas palavras gravar-se no teu coração e na tua memoria, de modo que sempre se te afigure estar ouvindo a voz affectuosa de teu pae, ida d’além dos mares ou d’além da campa, a levar-te força d’animo, em todas as occasiões graves e solemnes da existencia.
Guarda bem esta carta; e, ainda que a tenhas de cór, relê-a todas as vezes que te achares irresoluto no caminho e que necessites de um amigo que te guie ou console. N’esses momentos supremos eu estarei contigo. Ainda que não me vejas, estas linhas, em que deixo palpitante uma porção de vida, te denunciarão a minha presença. Então comprehenderás, talvez, com quanta commoção as escrevi, e quão grande foi o esforço que fiz para occultar a dor que me causava a tua partida.
Quasi tudo que vou dizer-te é triste! Lembra-te porem de que és homem, e que é preciso seccar as lagrimas quando temos de cumprir deveres. O dever, meu querido filho, envolve um principio absoluto de eterna justiça. Quem falta àquillo a que é moralmente obrigado, perde o direito a que sejam justos com elle todos os que a sua falta prejudica. Quem faz o que deve, não merece louvores; adquire direitos: colloca-se em condições de reciprocidade com os outros membros da família humana.
A nossa qualidade de indivíduos sociais impôe-nos, por tanto, obrigações, das quais deriva naturalmente o nosso bem-estar, a consideração que nos dão os nosso similhantes, e, em resumo, todo o nosso futuro. Lembra-te, pois, sempre de que a honra, a virtude, a firmeza de caracter, o amor do bem, do justo e do verdadeiro tornam o homem invulneravel; e que a consciencia do dever cumprido o tornam invencivel.
Assim que eu desapparecer de entre os vivos, ficas tu sendo o apôio natural de tua mãe e irmãs. Somos pobres: a serie de enfermidades que há dezoito anos nos invadiu a casa, a educação de tuas irmãs e a tua, e tambem o desfavor da fortuna, nunca me permittiram reunir meios sufficientes para garantir a subsistencia futura da familia. Os livros, quadros e mais objetos que possuímos, de pouco valem. Ficarão pois todos os nossos na mais dolorosa situação, se tu não lhes acudires com o necessario, prehenchendo a falta dos meus ordenados e do produto do meu trabalho. Já vês que o teu primeiro dever é ser economico, para que em qualquer tempo não tenhas de chorar a tua imprevidencia, vendo padecer os que mais amas sem lhes poderes valer. E não julgues que fazes favor aos teus, socorrendo-os e amparando-os: não; cumpres apenas um dever. Se, podendo, o não fizeres, incorrerias nas censuras que muitas vezes me tens ouvido fazer aos maus, e perderias a estima das pessoas honestas que te conhecessem. Se alguma vez precisares de modêllos, n’este sentido, imita teu tio Manuel, que tanto tem feito por nós todos; e os dois Almeidas, a quem chamas tambem tios. São três exemplares de irmãos, e de filhos, que nunca deves perder de memoria.
Quaisquer que sejam os encargos que venhas a tomar de futuro, nunca te esqueças de que és o responsavel, depois de mim, pela subsistencia e bem-estar dos entes que lego ao teu affecto e à tua probidade, e que nenhumas obrigações novas te desligam das antigas. Seria indigno de ti discutir ou pôr em dúvida o direito sagrado que teem aquelles que te recommendo ao teu auxilio e proteção. Já te disse que era um dever amparál-os; e o cumprimento do dever nunca se discute, sejam quais forem as circunstancias em que nos collocar a sorte.
Não é por mim, nem por tua mãe e irmãs que vaes ao Brasil procurar fortuna. É pelo teu futuro. Se Deus te ajudar, e tu fizeres da tua parte, poderás alcançar n’aquelle paiz abastança e independencia; e abençoarás um dia a memoria dos que por amor de ti se sacrificaram. Nem eu nem tua pobre mãe estamos em estado de poder chorar, sem que as lagrimas nos custem pedaços de vida... Eu, alem do mais, tinha contado contigo para me auxiliares nos meus trabalhos, e cerrar-me por fim os olhos; tua mãe dilue-se em pranto; e tuas irmãs antes queriam comer toda a vida pão negro do que separar-se de ti.
Bem vês, pois, que não é por nós que deixas a patria; que se fechassemos os ouvidos à voz da razão, para só ouvirmos o coração, tu não partirias. Victima do nosso egoismo, ficarias aqui, quasi ocioso e inutil, vegetando na pobreza, como eu; e na idade madura te queixarias amargamente de quem te condemnára a essa existencia nulla, embora reconhecesses que o tinhamos feito movidos pela mais santa das affeições. Os que ficam são os que se sacrificam. Na tua idade é um prazer mudar de terra. Certamente que hasde tambem padecer com a separação e com as saudades; mas aquem corre mundo nunca faltam distrações e novidades que lhe diminuam e suavisem as magoas da ausencia. Ochalá que sejas feliz, que te guie a providencia, que nunca te esqueças dos meus conselhos, e que possas voltar, em breves annos, com saude e com honestos meios que te ponham ao abrigo da penuria! Só Deus sabe quem vivirá para ver o teu regresso!... Creio na imortalidade da alma e penso que, onde quer que eu esteja, a minha bençam descerá então, como agora, sobre a tua cabeça, se, como espero, voltares digno das lições que te dei.
Para não continuar com reflexões tristes, termino aqui. Recommendando-te, por ultimo, que sejas sempre economico, morigerado, sóbrio, e prudente. Poupa-te em tudo quanto possa prejudicar-te phisica e moralmente; evita os excessos, sejam de que natureza fôr. Respeita os outros, para que te respeitem. Trata a todos com delicadeza e amabilidade, para que sejam teus amigos. Esforça-te com o teu procedimento por fazer esquecer aos naturaes do paiz que és seu hospede; e traze sempre na memoria este preceito do Evangelho: “Nunca faças a outrem o que não quizeres que te façam a ti.”- Encosta-te para tudo aos nossos bons amigos Almeidas; ouve e segue os seus conselhos em tudo; e não dês nenhum passo grave antes de os teres consultado.
Deus te leve em boa hora. Adeus, meu querido filho, adeus. Recebe a bençam de teu affactuoso pae, e a de tua extremosa mãe, que assigna commigo
Francisco Gomes de Amorim
Maria Luiza

Meu avô, homem equilibrado e trabalhador, casava, quatorze anos depois da sua chegada ao Pará, com uma doce criatura, minha avó paraense, Aurélia Da Costa de La Rocque.
Veio o primeiro filho chamou-se Francisco, para continuar a tradição da família, mas ao fim de um mês morria. O clima era difícil e as condições médico sanitárias mais ainda. Veio segundo filho, também Francisco e durou três meses. Os pais ficaram extremamente traumatizados e veio a terceira, filha, Albertina, o nome da avó materna Albertina Teixeira de Melo, que com poucos meses lutava entre a vida e a morte com pneumonias e outras doenças a que os médicos não conseguiam dar solução.O conselho foi simples: se quer salvar esta filha saia de Belém. Meu avô vendeu o que tinha conseguido amealhar em quase vinte e nove anos de trabalho, e regressou a Portugal. Remédio “santo”, já que esta minha tia acabou falecendo nas vésperas de fazer 101 anos, e ainda nasceram mais quatro filhos, sendo um deles, o meu pai, Jorge.
Com oitenta anos, administrador de uma grande empresa em Lisboa, ia e voltava, todos os dias, a pé para o trabalho.
Sempre o primeiro a chegar, impressionava a sua mesa de trabalho: nunca mais do que um papel ou o dossier em que estava ocupado! Parecia não fazer nada, mas foi o melhor administrador que aquela casa teve.
do Brasil, por Francisco G. de Amorim
17.abr.09

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