domingo, 22 de março de 2009


Francisco Gomes de Amorim
(outro bisavô)

No antigo site (vergonhosamente tirado do ar pelo provedor Terra) já se falava bastante neste bisavô, nascido em 1827, em Averomar (que nome lindo!), freguesia de Amorim, concelho da Póvoa de Varzim, e falecido em Lisboa em 1891.
Foi um batalhador, homem de letras, poeta, dramaturgo e o primeiro indigenista não brasileiro, com o romance “Os Selvagens”, em 1875.
Nesta primeira apresentação, para o conhecermos (para os que não sabem da sua existência) serão dele as palavras deste auto retrato:
I
“Advertencia”
(da 1ª Edição de “Cantos Matutinos” de 1858. Ortografia original)
Eu tinha pouco mais de nove annos, quando algumas leis repressivas do tráfico da escravatura preta encaminharam a especulação dos negreiros para o commercio dos escravos brancos. A Inglaterra usava da sua influencia sobre Portugal, e os traficantes não se tinham ainda lembrado de inspirar ás auctoridades da África portugueza o patriótico pensamento de se associarem com elles, para se vingarem da pressão exercida pelos ingleses sobre o innocente negócio.
Os negreiros correram pois para o continente do reino, e ilhas dos Açores, e dentro em pouco os mercados do Brasil abundavam novamente em carne humana, com grande vantagem para os consummidores, que podiam comprar escravos brancos mais baratos do que os pretos.
Os engajadores inundavam, como agora, as provincias do norte do reino, agarrando gente por todos os meios possiveis, e não sei mesmo se por alguns impossiveis, porque elles eram homens para grandes dificuldades. Investiam com as próprias autoridades ! e não posso avançar que seduzissem alguma, indo-a vender aos brasileiros, como fizeram a um pobre rei africano, que foi meu remador, affirmo que os filhos dos regedores de aldeia, e ainda dos administradores dos concelhos, eram os que de preferencia cubiçava a caprichosa exploração dos agentes. A razão desta distincção era talvez com o intuito de escarnecer d´um poder, que não queria ou não podia coarctar este criminoso trafico. O certo é que ninguem escapava à sua influencia, e que por fui eu fui victima deles, ainda que indirectamente, e por minha vontade.
A minha terra é uma linda aldeia chamada Avelomar, situada n´uma praia do Minho; pela sua situação e abundancia de população não podia ella deixar de ser um dos theatros de operações dos engajadores; e por se ligarem a esta circumstancia todos os acontecimentos da minha vida, permitta o leitor que eu ponha já em scena a minha humilde pessoa.
Nasci sem nenhuma circumstancia que possa dar relevo a uma biographia, e declaro que me criei como toda a gente, sem nenhum acontecimento notavel que, distinguindo os meus primeiros annos, me levasse mais tarde ao livro das infancias celebres.Eu não tinha agudezas, não era engraçado, e não aprendia coisa alguma. Os meus talentos limitavam-se a escolher cada dia um meio differente, que me livrasse de ir á escóla, porque n´ella me esperavam certas familiaridades d´um instrumento, cujo nome latino me havia inspirado horror á erudição do meu mestre. O instrumento era a ferula; e o professor andava-me sempre de olho em cima, porque, devo dizel-o, ainda que me custe, eu desacreditava o seu methodo de ensino. Entrei aos cinco annos para a sua aula, e sahi quase aos dez sem saber assignar o meu nome, ou soletrar duas palavras! Verdade é que tinha adquirido sobre os meus camaradas uma superioridade incontestavel nos exercicios archeologicos de atirar a funda, apanhar passaros a laço, e, visto que é preciso confessar tudo, em achar pretextos plausiveis para não dar lição, cada vez que isso me competia.
A minha boa mãe era a única pessoa que ainda não tinha perdido as esperanças de me vêr emendado; todos os mais, parentes, conhecidos ou mestres, me prophetisavam um futuro desastroso, declarando-me inutil para tudo. Um visinho muito rabujento,ao qual eu tinha derrubado uma parede para apanhar um ninho de pintasilgo, fez-me o tremendo prognostico de que eu ainda havia de acabar malfeitor de estrada! Deus lhe perdôe, porque tinha excelentes uvas e eu vingava-me n´ellas da maledicencia do proprietario.
As minhas occupações mais favoritas eram grandes correrias pelas praias do Minho, onde eu ia empoleirar-me nos rochedos mais elevados a olhar para as ondas horas esquecidas, cada vez que via passar as azas brancas d´um navio a duzentas braças da costa. Fóra d´isto, vagabundeava pelos campos dias inteiros, contemplando as cristas azuladas das serras de Barroso e de S. Felix, sem me lembrar de almoço ou de jantar, e ainda menos dos cuidados de meus parentes.
Estas distracções, em similhante edade, não podiam deixar de dar nas vistas a toda a gente. Aconselharam a minha mãe que me arrumasse, fosse como fosse, porque eu tinha ares de lunatico, além de ser um vadio que não queria aprender coisa alguma. Chegaram a assustal-a, apezar dos meus poucos annos; e um lavrador nosso parente offereceu-se para me corrigir, se quizessem entregar-me aos seus cuidados. Á vista da minha rudeza, tiraram-me da escóla, com grande satisfação do mestre, e a minha familia resolveu que eu seria agricultor. Apenas, porém, me haviam installado em casa d´aquelle que pretendia fazer-me gente, levantei contra elle cinco tias, que bebiam os ventos por mim, por causa d´um puchão de orelhas. Elle queixou-se a minha mãe, e eu fui chamado á barra; mas pedi uma sessão secreta, e n´ella convenci de que elle me assassinaria infallivelmente, se me deixassem lá ficar. Não há logica para as mães como as lagrimas dos filhos. Fiquei em casa, mas por pouco tempo. Um cordoeiro da Póvoa de Varzim comprometteu-se a mandar-me ensinar a ler e escrever correctamente, com a condição de que eu viveria em sua casa para vigiar o estabelecimento. Mas quando lá me apanhou, mandou-me virar á roda, do mesmo modo que se eu f^ra um dos seus aprendizes. Estava arranjado comigo! Formei-lhe perante a minha santa mãe um capitulo muito mais odioso do que o do lavrador, e o affecto materno, commovido com a descripção dos horrores e maus tractos, que eu pintava com certa viveza de colorido, arrancou-me a esse novo tyrano, reconduzindo-me triumphante ao lar domestico.
Foi então que os engajadores, espalhando noticias exaggeradas, ou falsas, ácerca das enormes riquezas do Brasil, e da facilidade com que ellas se obtinham, conseguiram desvairar um grande numero de rapazes da minha aldeia. Meu irmão Manuel foi umas das suas victimas, se não engajada, enganada pelos alliciadores. Para o acompanharmos ao bota-fóra, eu e a minha familia fizemos a jornada do Porto. Alli nos demorámos até quase á saida do navio que devia conduzil-o, e como eu ia a bordo todos os dias, os agentes procuravam seduzir-me para que fosse tambem para o Brasil, promettendo levar-me quase de graça. Incitaram-me tanto, e tão saudoso eu me sentia do meu irmão, que era o meu braço direito nas brigas escolares, que por fim pedi a minha mãe que me deixasse seguir o meu destino. Tinha havido já uma revolução domestica, para se consentir na partida de meu irmão, tão novo ainda; mas perante o meu pedido, todos puzeram as mãos na cabeça, e fizeram a minha mãe responsavel, perante o ceu e a terra, pelas desgraças que de futuro me succedessem se ella condescendesse com similhante loucura. Com tudo, eu chorei tanto, e tão bem, que não houve remedio senão fechar os olhos a todos os sacrificios, lançar mão dos recursos extremos, e deixar-me ir pela barra fóra com dez annos incompletos.
Para fazer justiça a meus queridos e bondosos compatriotas, declaro que todos foram sensiveis á minha partida, perdoando-me, ou esquecendo generosamente as numerosas memorias que deixei a quase todos, nas arvores derreadas, nas paredes caídas, e nas seáras pisadas durante as minhas excursões de vagabundo. Quanto a minha mãe, nunca mais teve alegria, nem perdoou a si o haver-nos deixado partir, a mim e a meu irmão, para um paiz desconhecido.
Eu tambem chorei muito, com saudades d´ella, nos primeiros oito dias; mas a viagem foi-se tornando trabalhosa, e os perigos desvaneceram quase as maguas da ausencia. O amor de mãe não tem rival na terra, e foi por isso que a minha ficou inconsolavel, e que eu me fui habituando tão cedo a passar sem ella!
Depois de uma viagem a que não faltaram a fome, a sede, as calmas e tormentas, chegámos a essa formosa terra de Santa Maria de Belem do Pará, que tinha de ser testemunha dos meus altos feitos, e de me deixar um dia eterna saudade.
Apenas desembarcámos, formaram-n´os em turmas no caes da alfandega, para que os negociantes d cidade viessem escolher d´entre nós aquelle que mais lhe agradasse.
Eu estava alli, sem saber para que, no meio de uma multidão de gente de todas côres, que se ria de mim e dos meus compatriotas, ao mesmo tempo que varios homens branco, e vestidos quase todos tambem de branco, gyravam em torno de nós. Os meus companheiros iam desaparecendo, mas a mim ninguem me queria. Um d´aquelles homens vestido de branco andou muito tempo a mirar-me por todos os lados, chegou-se a mim duas vezes, levantou-me a cabeça, mandou-me fallar, e murmurou varias palavras das quaes eu percebi as ultimas, que foram as seguintes: “isto não presta!” Outros olhavam-me com commiseração, e diziam: “É uma consciencia trazer crianças como aquella.” Um preto aproximou-se tambem, perguntou-me o meu nome n´uma lingua quase barbara, e accrescentou depois: “se eu o queria servir!” Outro, roto e descalço, carregou-me sobre os olhos o bonet que eu tinha na cabeça, com grande applauso de apupos dos seus patricios e amigos presentes. Um homem, depois de nos examinar a todos, disse duas palavras ao capitão do navio, que alli estava dirigindo o seu negocio, e intimou o meu irmão que o seguisse, sem lhe declarar para onde, nem em virtude de que direito o levava, e sem que o pasmo nos permitisse que nos despedissemos uns dos outros; de maneira que na mesma terra, n´uma cidade pequenissima, só depois de seis mezes é que eu tive noticias de meu irmão ! e á maior parte dos meus patricios e companheiros de viagem nunca mais os tornei a ver...
Achava-me quase só, e sem perceber que estava n´um mercado de escravos brancos, e que era considerado refugo pelos entendedores! Por fim, do meio dos poucos homens de branco que alli se achavam ainda, sahia um, vestido de pardo, acariciou-me, pondo-me a mão no rosto, e convidando-me a seguil-o. Então rebentaram-me as lagrimas com violencia; até alli encarára feramente a desgraça que não via, mas que sentia. Do momento, porém, em que me chegou a vez de partir, como os outros, sem saber para onde, chorei. Mas o meu patrão era um excellente e honrado homem. Chamava-se o sr. José Maria Fernandes, e inscrevo aqui o seu nome para sua satisfação. O digno comerciante vive ainda, apezar do rehumatismo que o maltracta; se estas linhas lhe chegarem á mão, peço-lhe que me perdôe a muita marmelada que lhe devorei, porque tambem eu lhe perdôo a prodigalidade com que me servia de palmatoadas, cada vez que o meu pundonor nacional me fazia quebrar a cabeça do preto, ou preta, que insultava o meu paiz ou a minha pessoa.
Comecei de tal modo a minha aprendizagem de caixeiro, que no fim de um anno podia com razão lisongear-me de ser o terror da maior parte da gente que frequentava o estabelecimento.
Não era pela minha força physica, nem pela minha figura, creio eu! O certo é que não sei d´onde me vinha audacia para tão grandes commetimentos; mas ainda que o insultador fosse um gigante, não ia sem correcção. As minhas armas eram os pezos da balança, os copos, as garrafas, e nos grandes apuros cortava as difficuldades saindo para a rua, e correndo o agressor á pedrada. De dois resultados que isto podia ter, um era sempre infallivel, no caso de haver cabeça quebrada: ou eu comprava á força de agua-ardente o silencio da victima, ou a palmatoria se encarregava de me cortar os vôos de tão despropositado heroismo.
Finalmente, chegou um dia em que o meu patrão declarou positivamente, que já não me podia nem queria soffrer. Eu tinha tirado á cara d´um homem elegantissimo, que me dirigira um dito grosseiro, com quatro arrateis de manteiga de vacca. O desgraçado era creado, ou escravo, do presidente da provincia; andava sempre recendente de perfumes e vestido de roupa alvissima, trajo de que tinha grande presumpção e vaidade. Porque o não servi com a rapidez que exigia, e julgando-se offendido na sua qualidade de servo do chefe do paiz, permittiu-se a liberdade de me dizer uma palavra, que eu entendi não dever deixar passar, e respondi, batendo-lhe ás mãos ambas com uma enorme colher de manteiga sobre o nariz.
Confesso que por muito tempo me ensorberbeci, e tive esta acção por uma das mais brilhantes do primeiro periodo da minha vida. Os cabellos, admiravelmente frisados, do meu adversario tornaram-se n´um estado lastimoso, e a cara ficou tão bem coberta que, a não ser a differença da materia, parecia que eu queria modelar para lhe mandar fazer o busto. A victima pôde apenas tirar a manteiga dos olhos, ao tempo que eu, espantado mas não arrependido da minha audacia, enterrava novamente a colher no barril para repetir a dóse á primeira tentativa de ataque que elle fizesse. Porém não era essa a sua intenção; mal abriu um olho, partiu como um raio pela porta fóra, e foi mostrar-se ao meu patrão, que morava do outro lado da rua.
Em satisfação ao presidente e ao seu lacaio, apanhei duzias de palmatoadas; porém visto que ellas não evitaram de perdermos o freguez, quis o meu patrão desistir dos meus serviços com prejudiciais, e fallou a todos os seus visinhos, a fim de ver se algum me queria para as suas lojas; mas a minha reputação tinha chegado longe. Responderam todos atterrados, que não queriam nem ver-me ! e foi necessario procurar-me um estabelecimento no extremo opposto da cidade, onde eu era ainda desconhecido, mas onde dentro em pouco me tornei de uma tal popularidade, que dezoito anos são já passados sem que ella tenha desaparecido inteiramente!
(continua...)

Francisco Gomes de Amorim
(continuação)

II
“Advertencia”
(da 1ª Edição de “Cantos Matutinos” de 1858. Ortografia original) - continuação
“Ao completar os meus doze annos, comecei a envergonhar-me de não saber ler, e appliquei-me voluntariamente, e com tanta dedicação, que aprendi em poucos mezes. O primeiro livro que me foi ás mãos, e que hade ter um dia em outra parte um capitulo especial, foi a História de Carlos Magno. Eu não lia só para mim, queria auditorio, e era bem pouco escrupuloso na escolha delle! A quantos pretos, tapuyos, e mulatos apanhava, nos momentos em meu patrão sahia de casa, lia a morte de Roldão, e elles desatavam num berreiro de choro, tão feio e temeroso que vexaria o proprio Adamastor.
O meu segundo livro foram os Lusiadas de Camões.
Não escrevo estes apontamentos para a posteridade me fazer a biographia; faço-os para os leitores dos Cantos Matutinos. Do rapaz endiabrado e picaresco, que eu confesso ter sido, pode-se esperar tudo, menos um bom poeta. Aos que, depois de saberem os pntos capitaes de arrevesado começo de vida, não acharem toleraveis os meus versos, responderei: que os façam melhores; lastimando que o censor não passasse pelas mesmas provas que eu passei.
No Pará era raro, n´aquelle tempo, o patrão que permittia aos seus caixeiros accuparem na leittura as horas vagas; mas o fructo prohibido aguça o apetite; a tyrannia inspira naturalmente o desejo de resistencia, e por isso era tambem raro o caixeiro que não se entregava com avidez a leituras clandestinas. E a isso talvez deve aquella cidade o grandee numero de mancebos illustrados, que hje dirigem o seu commercio. Entre elles é vulgar o conhecimento dos nossos melhores classicos, e tanto se tem desenvolvido nos ultimos annos o gosto do estudo, que o mais humilde caixeiro de taberna não ignora nenhuma das modernas publicações portuguezas.
Brigando com a má vontade e opposição que encontram por vezes as minhas tentativas estudiosas, decorei em poucos mezes todas as estancias dos Lusiadas, e foram ellas as primeiras lições que eu tive de poesia e de historia. A brutalidade de alguns patrões, e o meu indocil caracter, que repelia a servidão,fizeram-me tomar odio eterno á vida de caixeiro.
Meu irmão, e um primo de quem eu era hospede, fizeram esforços desesperados para me domar. Depois de se convencerem de que eu me não sugeitava ao commercio, perguntaram-me se queria seguir outra qualquer carreira; se me sentia com vocação para artista, militar, padre, medico, ou advogado; deram-me a escolher todas as profissões compromettendo-se a mandarem educar-me convenientemente; porém eu não me decidi por nenhuma. E uma vez que me apoquentaram mais do que de ordinario,á cerca do meu destino, respondi ao acaso - que me fizessem calafate.
Meu irmão, que apesar de toda a sua gravidade e bom senso, tinha apenas mais anno e meio do que eu, achou-me muita graça; porém meu primo que era homem serio e que estava cansado das minhas extravagancias, (segundo elle dizia), avançou uma mão para me pegar na orelha, que eu tive a prudencia de pôr fóra do seu alcance – fugindo de casa.
As grandes florestas estavam perto; havia muito tempo que eu aspirava com delicias o perfume que trazia dos sertões a brisa nocturna. A causa da minha repugnancia a todas as occupações era o desejo e a curiosidade, que me mordiam noite e dia, de correr para essas eternas solidões que me chamavam de longe. Sentia-me como atacado de nostalgia das selvas, que eram a patria do meu pensamento.
Um dia de madrugada, tendo-me despedido somente do meu sempre bom irmão, embarquei n´uma canôa que se destinava ao fabrico de gomma elastica, e parti para o rio Xingú. Logo que me vi no meio das florestas virgens conheci que tinha achado o meu reino, o paiz da fantazia. Habituei-me à presença quotidiana da onça, do tigre, e do tamanduá; ás mil variedades de serpentes, aos jacarés, aos gentios de todas as raças, e á sua existencia, costumes e festins barbaros. Pareceu-me que a vida errante da tribu fôra de proposito creada para a minha organisação; dentro em pouco tempo, a côr da minha pele era egual á dos tapuyos. Deixei a espingarda pela frecha; a lingua portugueza pelo dialecto gutural dos jurunas, ou pela lingua dos tupis; preferi, enfim, o selvagem ao homem civilisado, e comecei a vagabundear pelos bosques, como o tinha feito nas campinas do Minho.
Não sei se tive rasão; mas o certo é que seguia meu caminho para auxiliar e desenvolver a primeira tentativa que fizera na leitura.
Tornei a perder os livros de vista, e ainda com menos saudade do que no momento de embarcar para o Brazil, e talvez que tambem com menos vontade de me volver a elles. É verdade que o germen tinha ficado decalgum modo enredado no meu cerebro. Eu sabia os Lusiadas, e não os deixava esquecer, repetindo mentalmente uma ou outra estancia, quando esperava, com a corda do arco retezada e a tacoára em punho, a passagem da anta ou do veado.
Depois de vagar um anno pelas matas e cachoeiras do Xingú, subi o Amazonas, e fui completar meu decimo terceiro anniversario na villa de Alenquer, situada no braço do mesmo rio, entre dois grande lagos – Curumú, e Surubiú.
N´essa povoaçãosinha, de que não posso lembrar-me sem uma doce melancolia, encontrei um dia, em casa d´uma familia indigena, e dentro de cesto forrado de folhas de bananeira brava, quatro ou cinco livros velhos. Um destes era o poema Camões, de Almeida Garrett, edição do Rio de Janeiro.
Li-o, e a essa leitura, repetidas vezes depois, se devem não só os Cantos Matutinos, porém todos os meus modestos opusculos.
Aquelle poema transformou-me repentinamente, e sem eu saber como; principiei a vêr debaixo de outra aspecto os rios, os lagos, as florestas, e as montanhas. Pareceu-me que as flores derramavam maior perfume, e se vestiam de mais vivas cores; que o cèu e os astros brilhavam pela primeira vez aos meus olhos, e que toda a naturesa tomava formas novas e sublimes. Julguei entender o canto das aves, o murmurio das aguas, e o gemer da brisa entre as assucenas bravas e as mimosas gigantes. As harmonias do verso vibravam na minha alma; ouvi dentro em mim outra voz que balbuciava, traduzindo as minhas sensações por meio de palavras cortadas, vagas, encoherentes, e inintelligiveis para o mundo, e que eu não como nem onde as aprendia! Cuidei-as inspiradas por Deus, e sei que me foram reveladas por esse elegia sublime do grande poeta, que já não vive!
Ousei dirigir uma carta a Almeida Garrett em que lhe contava, com a mesma simplicidade e sindeleza com que agora o faço, tudo o que deixo escrito; e concluia perguntando-lhe se o que eu sentia então seriam indicios, que revelassem em mim a ave que pretende voar antes de lhe nascerem as azas. A carta gastou muito tempo em descer da beira dos Andes, e atravessar o Atlantico. Depois della partir, eu sorria-me da louca tentativa que fizera, e deixei de esperar uma resposta que já me parecia impossivel de obter. Mas no fim de dois annos e meio, a resposta chegou ás minhas mãos. Era uma consolaçõa, um estimulo, um impulso.
Encontrei-a no Pará em 1844,tendo eu já desessete annos. Divulguei a noticia, e toda a gente quis ver a carta do poeta, que alli é e foi sempre adorado. Duvidou-se que fosse deelle; mas entre os curiosos appareceu um que reconheceu a lettra. Era negociante honrado, e os incredulos não tiveram remedio senão curvarem-se diante da sua palavra. Já ninguem se ria das minhas passadas criancices; olhavam-me quasicom respeito; e os caixeiros que haviam sido meus contemporaneos estalavam com desejos de me proclamar poeta, visto que eu me correspondia com o que era para elles, e para mim, quase um semi-Deus.
Resolvi então voltar a Portugal, com a firme vontade de vir para Lisboa estudar, e decidido a morrer na lucta, se tanto fosse preciso. No momento da minha partida, fui bastante temerario para consentir que se publicasse um soneto de despedida aos meus amigos, do qual aproveitei doze linhas para zurzir os maledicentes. Era a primeira vez que o meu nome ousava ir desacommodar os typos, e Deus sabe se não teria sido melhor o deixal-os dormir sem me tornar jamais seu conhecido!

Ninguem, que tenha o habito de ler jornaes, póde ignorar as minhas relações com o fallecido visconde de Almeida Garrett. Desde o momento em que nos encontrámos pela primeira vez, até áquelle em que o vi expirar-me nos braços, proferindo o meu nome, e dizendo-me estas derradeiras palavras: “já o não vejo!” Devi-lhe sempre a maior affeição e os melhores conselhos que um filho póde receber de seu pae. Foi elle o meu mestre; porém, apesar de todos se dizerem seus discipulos depois da sua morte, elle não deixou ninguem que o represente na terra. Segundo a expressão de Theofilo Gauthier “cada poeta celebre leva consigo o seu segredo quando desce á sepultura.”
22-mar.09

2 comentários:

  1. Muitos foram os açorianos que iludidos com falsas promessas de trabalho e ganhos saíram da sua terra, com passagens a serem pagas com trabalhos pelos contratadores. Quando chegavam, já endividados, eram levados aos senhores de terras. Lá tinham que pagar também pelo teto e pela comida que recebiam. Trabalhavam a vida toda e nunca conseguiam saldar as suas crescentes dividas . Eram os escravos brancos. Quando fugiam eram procurados pela lei como ladrões e devedores. Morriam à mingua. Não valiam nada pois não podiam nem ser comercializados. Foram a mão de obra escrava mais barata dos senhores de terras brasileiras.

    Maria Eduarda Fagundes

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  2. Pouco se escreve e pouco se sabe sobre a escravatura branca no Brasil. Suponho que o Francisco Gomes Amorim, bisavô do nosso amigo F G Amorim( Rio de Janeiro), foi dos primeiros autores a relatar esta situação, até porque ele também passou por este sofrimento.

    Segundo relatos do início do século XX, São Paulo, interessado em fazer produzir a lavoura no interior, organizava a recepção aos emigrantes, oferecendo-lhes durante seis dias comida e estadia numa hospedaria, aonde iam ter os engajadores que lhes ofereciam trabalho nas fazendas. Alguns iam a expensas do governo estadual, com a promessa de ganharem grandes lotes de terra para cultivo. Depois, na Hospedaria dos Imigrantes, viam que as promessas se reduziam a um trabalho rude e mal pago por algum coronel proprietário que com eles queria enriquecer depressa. O dono da fazenda vendia-lhes a crédito ferramentas e géneros alimentícios, pelo dobro do seu valor. Daí que, com o seu pequeno salário, não conseguissem saldar a dívida e muito menos economizar dinheiro para a ascensão tão desejada.

    Também Ferreira de Castro, em seu livro A Selva(1930) apresenta uma relação de trabalho semelhante, com a agravante de os produtos serem vendidos aos migrantes pelo triplo e até pelo quádruplo do seu valor, num contexto de desvalorização progressiva da borracha. Os seringueiros estavam quase sempre em débito, pelo que dificilmente conseguiam saldar a dívida e regressar ao seu estado. Quando algum tentava fugir, tinha atrás de si a polícia e era geralmente levado para o seringal, onde recebia duro castigo.

    No contexto da crise mundial dos anos 20 e 30, no Brasil a única saída para a imigração era então a agricultura, tendo passado o tempo em que, no comércio das cidades, havia lugar para os portugueses que se estabeleciam e que em alguns casos faziam sócios os seus caixeiros, como aparece na literatura do século XIX, em especial na obra de Camilo Castelo Branco. Tanto Alberto como Manuel da Bouça, nas cidades em que aportam, são esclarecidos sobre a falsidade dessa ilusão. A ficção certamente contribuiu para se difundir o mito do Brasil-Eldorado.

    Mas já no século XIX, Francisco Gomes de Amorim representou, no romance Aleijões Sociais (1870), a consciência das mentiras dos engajadores e o sistema de exploração a que eram sujeitos os imigrantes no Brasil.

    Aqui está um tema pouco falado. Porquê? Ainda bem que a Eduarda partilhou o seu testemunho sobre os açorianos que também foram escravos no Brasil.

    Margarida

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