A Velha Gaveta
Quem
não tem em casa uma gaveta, normalmente num móvel antigo, onde durante a vida se
foram guardando pequenas coisas, como uma cartinha que escreveu aos pais quando
tinha 7 ou 8 anos, o acessório de uma máquina fotográfica dos anos 60 ou 70 que
deixou de ter utilidade, a caneta tinteiro que levou para o exame do 3º ano
(hoje a 7ª série), um velho e pequeno pincel que a mãe ou a mulher abandonaram
quando deixaram de usar pó de arroz para se embonitarem, e que lhe serviu para
limpar as lentes das máquinas fotográficas hoje também aposentadas ou perdidas,
carteiras e caixas de fósforos, uma do hotel Ramada, (talvez de Johannesburg),
onde passou uma noite há muitos anos (talvez uns 60!), outra que era uma
pequena propaganda da fábrica de cervejas (1971), e muita outra tranqueira,
como uns óculos que tinham sido do seu avô, ali jazendo arrumadinha,
envelhecendo e/ou deteriorando-se mas que constituem a toca de velhas
recordações?
Volta e
meia uma pesquisa à procura de qualquer coisa que se lembra de ter tido mas não
sabe onde está, sempre com cuidado para não desarrumar o restante que ali
descansa até... ao dia em que um herdeiro decida que tudo não passa de lixo e
faça desaparecer.
Entretanto
tudo bem arrumado dava até prazer abrir só para olhar para dentro!
Mas um
dia, novamente à procura de algo que ele mesmo nem sabia bem o quê, abre gaveta
toda e... “Ó! C’os diabos!” o fundo da gaveta, velho, roído, desprende-se,
desaba e todas aquelas “preciosidades” se espalham pelo chão num raio de 1 a 2
metros, perante o olhar estupefato e entristecido do “dono”.
Com
muito cuidado, não deixa ninguém aproximar-se da “zona de conflito”, arranja
umas caixas de papelão enquanto não conserta a gaveta, vai buscar um banco,
senta no meio da confusão e começa a recolher com todo o cuidado e carinho
aquilo que até àquela altura tinham sido “preciosidades históricas”!
Uma a
uma apanha, analisa, vê com cuidado se tem alguma referência especial, encontra
as cartinhas que escrevera era ainda menino, lê-as lembrando que tinha sido a
sua mãe que as guardara antes de chegarem às suas mãos, experimenta a velha
caneta, que depois de limpa e com nova tinta escreve perfeitamente, e assim
permanece recordando, selecionando e separando todas essas coisas para
diferentes caixas, deixando o seu coração vagar pelos tempos de cada peça,
relacionando-as com acontecimentos coevos, e fica sentado, cabisbaixo,
meditando, no tempo de cada peça.
Como
vivia, onde estava, e vê como tudo mudou muito mais profundamente do que tinha
pensado.
Guardou
tudo nas caixas de papelão, agarrou na velha gaveta, foi restaurá-la com um
fundo novo, sem saber se depois de pronta voltaria a pôr lá dentro tanta coisa
que afinal já pouco ou nada representava na sua vida como a caixa de fósforos
do Hotel Ramada os acessórios das antigas máquinas fotográficas, etc.!
Muita
daquela coisa deixara de ter interesse, ninguém mais queria saber daquilo e, a
verdade, é que ocupava um espaço que poderia fazer falta para coisas úteis,
atuais.
A
pensar.
*
* * * *
Que
interesse tem a história de uma gaveta velha, cheia de tranqueira que para nada
serve a não ser para ocupar espaço e muita vez ganhar cupim e mofo?
É
verdade.
Mas
quem não tropeçou já num degrau de escada ou numa pedra mal calcetada no
passeio de uma qualquer rua, deu um tombo, se esfolou um pouco mais nos
joelhos, na canela, num ombro, etc., e que socorrido ou não, deixa-se ficar
sentado no chão, não para curtir eventuais dores que só se manifestam uma mão
cheia de minutos mais tarde, quando começam as nódoas negras, os “roxinhos” a
se espalharem pelo corpo.
Confere
se não quebrou nada e depois verifica que a sua cabeça ficou igualzinha à
gaveta que perdeu o fundo!
As ideias baralham-se, não sabe onde tinha o tele móvel guardado, se o tinha
consigo, leva tempo até realizar que horas são, e quando por fim consegue
levantar-se, velhote, só com a ajuda de alguém, e depois sentado
confortavelmente, e com alguém da família a estudar os estragos no corpo, limpando
sujeira e eventuais feridas, enfaixando outras, trazendo um copo de água e
talvez um analgésico para diminuir as dores do impacto, começa a tentar
re-arrumar as ideias que lhe ficaram todas baralhadas.
Ao fim
de algum tempo conclui, já sorrindo, que nós somos como aquelas gavetas, cheias
de “não vale nada” mas que ocupam espaço nas nossas vidas, da mesma maneira que
muitas vezes nos preocupamos com problemas para os quais não tempos qualquer
condição de reverter o curso do que nos parece errado, muito errado e até
perigoso, como o caso das políticas nalguns países, quando deveríamos ocupar
esses pequenos espaços que ainda temos nas nossas cabeças, com pensamentos mais
úteis e, se possível partilhando as preocupações de quem realmente sofre de
qualquer mal, seja físico psíquico ou material.
Eu já
dei tombos mais ou menos violentos. Recordo alguns de quando era um “garotão”
quando as “gavetas da cabeça” ainda estavam vazias e por isso deixaram só na
memória o caricato ou até perigoso de alguns desses acidentes.
1.-
1949. Estava a estudar, e nesse dia a aula era sobre poda de oliveiras. Meus
colegas, e eu, subimos numas quantas dessas magníficas árvores, levando numa
das mãos uma serra e na outra uma tesoura de poda, sempre grandinhas e bem
afiadas.
Sentados
em pernadas, aí a uns 2 metros do chão, devíamos podar os ramos do centro para
que a luz entrasse e permitisse que essa parte também produzisse mais
azeitonas.
O ramo
onde me encaixei e sentei, de repente.... trás! Quebrou, e aí vou eu, em voo
picado direto ao chão, levando nas mãos objetos que me podiam perfurar todo!
Nesse instante só lembrei de abrir os braços para afastar esse perigo, e caí
muito bem, como um paraquedista profissional, dei uma cambalhota no chão e
fiquei sentado, tranquilo, com braços abertos. Incólume.
O
professor e os colegas assustados e eu a rir!
A
gaveta era ainda bem novinha! Não se desarrumou nada.
2.-
1953. Exposição de Máquinas Agrícolas. Eu a tomar conta do estande da empresa
onde trabalhava, e que exibia uns quantos tratores, umas colheitadeiras e outros
implementos. Tínhamos a maior e mais bonita exposição daquela Feira.
Quando
pediram aos expositores para porem todas as máquinas a trabalhar para saudar a
chegada do ministro que ia inaugurar o evento, eu corri para um dos tratores
sem me assegurar que a caixa de marchas estava no ponto morto.
Sem
subir na máquina, ao seu lado, dou partida e ele começa a andar sozinho. Quis
acompanhar o andamento para desligar a chave, tropeço, caio de costas e o
bendito trator passou por cima das minhas pernas. Um funcionário correu,
resolveu a situação e eu levantei-me com as calças rasgadas e dores numa das
pernas.
Rimos
com o acidente, mas tive rotura dos ligamentos do joelho esquerdo, andei um mês
com gesso da virilha ao calcanhar, e pelo resto da vida o trator ainda ri de
mim, quando sinto uma dorzinha no local.
Levou
tempo para arrumar essa “gaveta”! Não o conteúdo.
Mas a
juventude cura até doença de velhice!