ANGOLA
Acidentes ou incidentes de estrada
Para os que não
conhecem, comecemos por um mapa dos grupos étnicos de Angola, cujas línguas ou
dialetos se podem, mais ou menos, resumir do seguinte modo:
- Bakongos -
- Ambundos (dialetos
Kicongo e um pouco Chokwe)
- Ovimbundus – quase
todo o sul do país
- Khoisan, os
Bosquímanos com uma língua muito primitiva, sem igual
Os dialetos têm
bastantes diferenças, e por vezes as conversas entre esse povos não era fácil
E agora vamos a duas histórias vividas há uns pares de anos naquela tão saudosa terra.
Bem perto da fronteira com o Zaire. Por ali a
guerrilha não dava muita trégua, o que tornava perigoso circular por aquela
região. No entanto, volta e meia as coisas apresentavam-se mais calmas ou mais
controladas e sempre aparecia quem se aventurasse a fazê-lo. Não havia outro
meio de visitar todas as povoações, porque poucas justificavam ter uma pista
para aviões, por pequena que fosse. Além disso o eventual ataque de
guerrilheiros a carros particulares era raro, menos ainda numa estrada de bom
piso. De qualquer modo raros eram os caros que ali passavam.
A estrada estava boa, piso firme e liso, e o
carro, desta vez um Fusca, seguia em boa velocidade. Comigo só o ajudante que
falava, além de português, nada mais do que a língua da sua região, o kimbundo.
De repente ao passar ao lado de uma sanzala, um
porco de razoável tamanho, pesando umas quatro arrobas, lembra-se de cruzar a
estrada. Sem hipótese de desviar ou travar, o Fusca apanhou-o e atirou-o longe.
Que chatice. Logo em plena região efervescente. Pára-se o carro e
analisam-se os estragos mútuos. Um porco morto e um para-lamas torcido,
encostado no pneu.
Acorre gente, primeiro a criançada, os candengue, e os homens, enquanto as
mulheres largam o pilão, a mandioca, as quindas
e os mussalos para virem juntar-se ao
grupo de espectadores.
Num instante está um monte de gente à nossa
volta, mais ou menos todos falando ao mesmo tempo, para si mesmos, uns com os
outros ou somente imitindo expressões de pasmo.
- Háca! Aiué!
A língua daquele povo é o kicongo, mesma remota
raiz do kimbundo (?) mas assaz diferente, para não permitir entendimento fácil
com as gentes do centro e do sul. E a gente daquela sanzala pouco ou nada
falava de português.
Para encetar o diálogo avança um homem, uma
espécie de intérprete porta voz do pensamento e vontade da comunidade. Começa a
discussão, calma e difícil por causa da língua, mas não impossível, sobre o
porco, que estava morto. Todos na esperança, quase certeza, que o motorista
lhes ia pagar o animal, procuravam valorizá-lo. Para que não houvesse
divergência de atitudes e valores a passar ao branco, antes de se pronunciarem conferenciavam primeiro entre si e
o porta-voz transmitia a opinião aprovada. Depois era preciso traduzir a mensagem, e a seguir
discuti-la. Regatear o valor. O primeiro valor é sempre alto! Voltava o grupo a
confabular entre si, uns quantos mais calmos e condescendentes e outros de linha dura, deixando transparecer que nem
todos estavam de perfeito acordo, mas cabendo sempre ao mesmo porta-voz transmitir
a opinião, se não unanime, pelo menos da maioria, e acordada. Tudo isto sem
pressa, pacífica e tranquilamente. Para eles o tempo passa devagar, sabendo
também que as cadelas apressadas parem os
filhos cegos! Encostado ao carro eu gozava aquela negociação, feita com a
colaboração do ajudante, bailundo
forte, o Agostinho, que não entendia bem, creio que nem mal, a língua daquela gente.
Entretanto eu deixara de ter pressa porque aquele diálogo era sensacional, e
muito me divertia.
Ao fim de um bom tempo tinha-se conseguido
estabelecer a primeira plataforma de entendimento. O valor do porco. Cem escudos. Mas era conveniente que se repetisse para que
não restassem dúvidas:
- O porco vale então cem escudos?
Todos abanaram positivamente a cabeça, porque cem escudos era linguagem geral!
- Sim.
A cara deles mostrava-se satisfeita com o acordo.
Estava encerrado o primeiro capítulo. Depois desta etapa decidi que era preciso
passar a discutir um outro aspecto importante da questão: a estrada fora feita
para porcos ou para carros?
Não esperavam por esta, e com ar de candengues apanhados com a mão no doce,
recomeçam as sessões parlamentares entre todos, que não tiveram muita dificuldade
em concordar que as estradas haviam sido feitas para carros. Sentido de justiça
não lhes faltava, e mesmo sabendo que podiam perder a disputa, se disputa se
podia chamar àquela procura de entendimento, não negavam o que a consciência
lhes ditava. O porco não devia ter atravessado a estrada. Fim do capítulo
segundo.
Até aqui já se tinham passado talvez uns trinta
minutos. O semblante daquela gente perdera parte do sorriso! Já antevia os tais
cem escudos a voarem!
Novo ponto a discutir: uma vez que a estrada era
para carros, o porco é que havia estragado o carro, que ficou com um para-lama
todo torcido, a que entretanto o Agostinho já havia dado ali mesmo um jeito para
não encostar no pneu, que não chegou a sofrer. O culpado era o porco. Quem
devia pagar a reparação?
Aquele pessoal com ar ainda um pouco mais
triste, após conferenciarem novamente entre si acabaram por acordar que a
verdade era uma só. A culpa era do porco. Todos, através do porta voz, acabaram
por dizer que sim, e ficaram em silêncio à espera do desfecho do diálogo.
Calculou-se então que a reparação do carro
custaria outros cem escudos, assunto de que eles não tinham noção, e que na
verdade ia custar bem mais. Ao fim de mais outro tanto tempo, concordaram
também nesse valor
Quarto capítulo. Recapitulando, antes de passar
à final: se o porco valia cem escudos, a culpa do acidente fora do dito porco,
e o custo da reparação era também de cem escudos, está-se mesmo a ver que quem
ia pagar o estrago era o próprio porco.
- !!!!
Desilusão. Começaram por pensar que além de terem
pensado ficar com o porco para o comerem, ainda iam receber cem escudos de
indenização, e agora não só não receberiam nada, como tinham que entregar o
porco para compensar prejuízo do carro.
O ar era de tristeza. Ficou no entanto bem
assente que eu levaria o porco para me pagar dos estragos por ele feitos. O
porco passou a ser minha propriedade. Tudo muito devagar e cordial, nunca se
passando ao ponto seguinte sem que o primeiro ficasse bem claro em suas mentes.
Mas o que é justo é justo!
Nessa época eu trabalhava na fábrica de cerveja,
a Cuca, a mais antiga e bem conhecida
em todos os cantos de Angola, e sempre viajava levando o carro abastecido com
umas quantas caixas, para o que pudesse acontecer. Nunca havia perigo de se
acabarem porque no próximo distribuidor repunha o estoque.
- Bom, então o porco é meu.
- Sim, siô.
Vai começar nova discussão, desta vez mais sutil
e delicada.
- Eu não quero o porco. Vou dá-lo para vocês
comerem.
- ???!!!
Não queriam aceitar. Aquilo fazia muita confusão
nas suas cabeças. Por que lhes havia de oferecer o porco? Alguma coisa ia
querer de volta. O negócio não estava a cheirar-lhes bem! Nunca alguém lhes
tinha dado alguma coisa sem querer de volta uma paga maior. Desta vez não era o
caso. Foi difícil convencê-los que eu simplesmente lhes oferecia o porco e não
queria nada de volta. Assim mesmo continuavam desconfiados.
Só se convenceram quando finalmente o Agostinho,
a um sinal meu, tirou de dentro do carro uma caixa de cervejas e lhes entregou.
- Como vocês foram simpáticos, não só vão ficar
com o porco, como ainda com esta caixa de cerveja, para acompanhar a festa.
Como se pode imaginar, isto não foi dito com
tanta singeleza, por dificuldade de entendimento linguístico.
Quando por fim ficaram bem cientes de que iam
mesmo ficar com o animal, sem pagar nada e ainda por cima recebiam, de graça,
uma caixa de cervejas, foi uma festa.
Toda esta conversa durou perto duma hora, mas
valeu a pena. Analisar as discussões entre eles, cautelosos para não deixarem
transparecer os seus pensamentos, desconfiados com um indivíduo branco que nunca tinham visto, e
desejosos de, como todos, levar alguma vantagem, era um espetáculo único.
Nas suas caras via-se agora tranquilidade. As
crianças não entenderam muito bem o negócio, nem era negócio que lhes
interessasse. Mas os adultos, homens e mulheres batiam palmas de alegria e
agradecimento. Correram a pegar no porco para o esfolar, e não queriam
deixar-me ir embora sem que ficasse para o comer com eles! Infelizmente não
podia. Naquela estrada não se devia circular de noite, e ainda tinha muito
quilometro a percorrer.
Bebemos uma cerveja juntos, quase trocámos juras
de amizade eterna, o que não era difícil de concretizar, e depois, com mágoa,
tive que ir embora.
* * *
Não muitos quilômetros adiante a estrada estava
em construção, ou reconstrução, e como tinha chovido bastante nos dias
anteriores as obras tiveram que parar, porque numa extensão ainda grande aquilo
se transformara num lameiro só. Barro vermelho, terrível. Região de café,
quente e úmida.
O Fusca é um carro especial, e com alguma
experiência é difícil deixá-lo atolar, mesmo nesses lameiros imensos e
profundos. Qualquer outro carro, incluindo os jeep, difícilmente os atravessa.
Fusca dança em cima da lama, entra com as rodas nos trilhos de outros carros,
normalmente de caminhões, fundas, roça a barriga pelo chão, escorrega aqui,
empurra ali, mas lá progride, Deus sabe como. De repente pela frente um
caminhão tombado. Derrapara na lama e estava caído de lado. A carga era de
animais: porcos, cabras, galinhas, patos, etc. Tudo por ali espalhado. Uns
ciscando, outros fuçando ou picando um pouco de capim aqui e acolá. O motorista
e o ajudante sentados no chão à sombra da carroceria procuravam que os animais
não se dispersassem, enquanto aguardavam socorro pedido na véspera. Tinha que
vir um trator potente para endireitar o carro, ainda por cima ter que o fazer
no meio de um lamaçal que estava longe de secar. Quando chegaria? Quem sabe.
Paciência era uma virtude que não podia faltar a quem andava naquelas estradas.
O acidente tinha sido na véspera, há mais de
vinte e quatro horas, e tudo ali jazia sob um pesado calor úmido e um
desconforto total. Nem na cabina do carro podiam dormir, porque o banco estava
na posição quase vertical!
No meu carro, além das caixas de cerveja ia
também uma bolsa isotérmica, que antes da saída de qualquer povoação, se enchia
com o máximo possível de cervejas bem geladas, e que assim se mantinham o dia
todo.
Como é evidente não podíamos fazer nada para
ajudar os homens a sair daquela situação.
Parei o carro, boa tarde, isto é que foi azar,
iam para onde, vêm de onde, etc. mas nada mais que isto. A não ser:
- Quem quer uma Cuca gelada?
Perguntar ao nu e esfarrapado se quer uma
camisa!
- Você vê-nos nesta situação miserável e ainda
vem gozar conosco? Cerveja gelada, hein? Siga a sua vida e deixe a gente em
paz! - disse o motorista com cara de poucos amigos.
- Bom. Querem, ou não querem uma Cuca geladinha?
- Se isso fosse possível, era milagre. É tudo
quanto eu estou a desejar desde que o sol começou a aquecer. Mas, por favor,
não brinque com coisas sérias.
Fui ao carro, tirei duas cervejas, que estavam
mesmo geladas, e quando as entreguei aos homens, eles não queriam acreditar!
Não é que lhes apareciam, ali no meio de nada, onde ninguém passava há vinte e
quatro horas, duas cervejas, e geladas! Era mesmo milagre! O espanto na cara daqueles
homens era digno de ser perpetuado! E a alegria?
Beberam com um prazer que de certeza nunca outra
cerveja lhes havia proporcionado! Só se ouvia Aaaahhhh, que maravilha!
Tive que continuar viagem, mas de certeza
aqueles homens, que ainda ali ficaram, esperando por outra ajuda, nunca mais na
vida devem ter esquecido que um dia lhes caiu do céu uma Cuca bem gelada. Uma não, duas, porque antes de seguir viagem
deixei-lhes outra dose.