sábado, 29 de outubro de 2022

 

O  RETORNO  DE  DEUS

(escrito em 2010)

 

No pequeno lugar ao sul de Inglaterra, Clayton, West Sussex, na sua simpática e simples “cottage”, casa típica das áreas rurais inglesas, Peter vivia com sua família, mulher e um casal de filhos na faixa dos 10 a 12 anos. Todas as manhãs saía de casa, andava cerca de quinze minutos até à estação de Hassocks para apanhar o trem para Londres, onde trabalhava há mais de dez anos sempre na mesma empresa.

Homem tranquilo, decidido e enérgico profissional, bom chefe de família, tinha, aparentemente, tudo para estar de bem com a vida. Aos domingos acompanhava a família ao serviço religioso, na antiga e linda igreja St. John Baptist, uma preciosidade do século 11, e sempre de lá saía cumprimentando os vizinhos, amigos e o pastor, mas com a estranha sensação de ter simplesmente perdido tempo.

O ambiente da igreja, com afrescos belíssimos, que ele conhecia desde há muitos anos, e os sermões do pastor, não lhe diziam quase nada, mesmo procurando estar atento, e isso acabou por se tornar para ele uma preocupação.

Num desses domingos, um lindíssimo dia de primavera, primavera com aquelas cores que só a Europa do Norte tem, nem um único fiapo de nuvem nos céus, tempo fresco, o ideal para gozar a beleza do mundo. 


 Sentado numa cadeira de jardim, Peter contemplava aquelas terras verdes e bonitas que se estendiam para além do limite do seu terreno. Eram dum agricultor, idoso, que parecia estar a desistir da sua milenar profissão por não poder competir com os grandes produtores, e até abandonara um equipamento agrícola que jazia a uns duzentos metros de sua casa. Ia ganhando ferrugem, entristecia um pouco aquele ambiente de calma e paz, e nada tinha já que se aproveitasse. Sucata.

Peter deixava o seu pensamento correr ao sabor daquela tranqüilidade, e teve então um quase sobressalto que de há muito mexia com a sua cabeça: “Se Deus existe, porque será que eu nunca me apercebi da Sua existência! Quanto gostaria de ter um sinal, qualquer que fosse!”

Naquele instante, do limpissimo céu claro, caiu um raio seguido de um trovão com um poder imenso. Peter, na sua semi sonolência, não esperava tamanho estrondo e quase cai da cadeira! Olhou em frente e viu que o raio atingira exatamente aquela máquina abandonada e que a fizera em frangalhos. E o céu não escureceu, nem qualquer outra nuvem se formou!

Peter temeu! Seria este o sinal que ele esperava que o tal Deus lhe mandasse? A verdade é que não havia nos ares a menor condição de formação de trovoada, e o trovão deu-se assim que ele “pedira” um sinal. Ficou abalado. Que “sinal” estranho aquele!

Não conseguiu almoçar nesse dia, mal falou com a mulher e filhos deixando a família receosa que algo estivesse a afetar a sua saúde. Quiseram levá-lo ao hospital, mas ele respondia que estava bem. Podia estar bem, mas parecia um estranho no seu próprio ambiente!

No dia seguinte voltou à rotina de ir pegar o trem, mas ao chegar à estação sentiu-se pouco firme, cambaleando, a custo voltou para casa e avisou a empresa de que não estava passando bem. Jamais faltara por essa razão de modo que, se profissionalmente isso não o afetava, os colegas e superiores ficaram preocupados.

Assim que entrou em casa foi sentar-se na mesma cadeira onde na véspera assistira ao estranho fenômeno, e ali esteve quase todo o dia à procura de compreender o que se tinha passado. Queria reagir, sair daquela espécie de torpor, e decidiu que no dia seguinte, sentindo-se bem ou mal, teria que voltar ao trabalho.

Voltou. O dia correu-lhe pesado, e até os colegas estranharam o seu silêncio e quase absentismo. Não parecia a mesma pessoa, jovial, comunicativa. Como na véspera avisara que não se sentia bem, o que era verdade, pensaram que seria ou o começo ou final de algum resfriado mais forte.

No final do dia, como de costume, saiu depois de todos os outros, e foi para Victoria Station pegar o trem de volta a casa.

Sentado num canto da carruagem, procurava nas páginas do “Evening Standard”, que sempre lia nas viagens de regresso, algo que ocupasse a sua mente cansada, baralhada, nem ele mesmo sabia exatamente por quê.

Na sua frente sentou-se uma mulher jovem, muçulmana, a cabeça coberta com o tradicional hijad, e ao seu lado um homem de origem africana, de meia idade, folheando também o mesmo jornal.

A viagem durava habitualmente hora e meia; dava tempo para, muitas vezes, ainda cochilar um pouco, mas nesse dia era no jornal que procurava distrair-se.

Pouco tinham andado, talvez trinta ou quarenta minutos e, de repente, um estrondo imenso, atirou com todos os passageiros para fora dos seus lugares, sentiam-se ferragens a torcer e a gemer até que a carruagem finalmente parou, fora dos trilhos, e inclinada sobre um dos lados.

A composição tinha-se chocado com outra parada irregularmente na mesma linha! Em Redhill.

Ouviam-se gritos de dor e pedidos de socorro. Grande desordem e caos dentro de cada carruagem. Peter foi projetado nem ele mesmo percebeu para onde e como. Deve ter perdido os sentidos por alguns momentos e quando começou a ter consciência da situação, percebeu que tinha havido um grave acidente. Sangrava, mas nem percebia de onde. À sua volta corpos espalhados, contorcendo-se e sangrando. Perto, com um profundo golpe na cabeça, reconheceu a mulher que vinha sentada na sua frente. Deslocando-se com dificuldade e muita dor em todo o corpo, procurou ajudá-la. Com o seu casaco improvisou uma espécie de almofada onde deitou a cabeça da mulher, depois de ter afastado o véu, rasgado, deixando à vista uma ferida grande. Com palavras calmas ajudou a mulher a agüentar o sofrimento e ajeitou-a num canto da carruagem.

O homem que vinha a seu lado, jazia também, sem sentidos, uma perna torcida. Tinha uma grave fratura exposta! Peter rasgou a sua camisa e fez um torniquete na perna do desgraçado que sofria horrivelmente.

Ajudou ainda alguns mais até que exausto se sentou num canto, aguardando socorros, que não tardaram. Todos levados para o hospital mais próximo, Peter só pensava por que razão ele havia socorrido primeiro uma mulher muçulmana e um negro! Podia ter ajudado uns outros quantos, mas foi a esses dois que dedicou a pouca energia que conseguiu reunir até cair exausto.

No leito do hospital voltou a pensar que tudo quanto lhe estava a acontecer eram “coincidências” demais! Primeiro o raio e o trovão, e depois o auxílio que prestara tão imediato àqueles dois que considerava “semi” estrangeiros!

Seria tudo aquilo “obra” de Deus que lhe queria mostrar que a vida só tem valor quando a dedicamos, desinteressadamente, aos outros?

Tão logo teve alta do hospital foi direto a um lugar sossegado, silencioso, a sua tão antiga e bela igreja e, meditando com humildade, foi-se apercebendo que o “tal” Deus, afinal, lhe dera um recado completo!

 

12-abr-10

 

Um comentário:

  1. Belos tempos esses em que Deus falava com a Humanidade, num tu cá-tu lá enternecedor.
    Hoje é o que se vê.
    Não é por Deus se ter remetido ao silêncio. É porque a Humanidade já não sabe ouvi-Lo.
    Abraço
    APM

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