segunda-feira, 24 de maio de 2021

 

ESTE TEXTO JÁ FOI POSTADO EM OUTUBRO DE 2013. MAS VALE A PENA LER DE NOVO!

A burocracia das religiões

 

Discutir religião é uma autêntica perda de tempo, assim como discutir qual a melhor equipa de futebol.

Hoje ganham espaço os muçulmanos nas regiões onde são todos OBRIGADOS a cumprir  os preceitos de rezar várias vezes ao dia, voltados para Meca, onde quer que estejam, inclusivé fechando ruas de cidades como em Marselha. E além da França, na Inglaterra, EUA, etc.

E ganham espaço e muito, muito dinheiro, os vendedores de milagres, os chamados  “evangélicos”, habilissimos vendedores que se espalham pelo mundo como praga, apesar de, como em tudo, entre os seus haver muita gente de boa vontade.

Cada religião tem as suas crenças mas, infelizmente, acima de tudo, tem os seus cerimoniais que cada vez menos se cumprem. Não que isso faça grande diferença para a fé de cada um.

E quando analisamos esses cerimoniais, alguns com vários milhares de anos, tentando através da ortodoxia obstinada dos pseudo “donos da verdade”, manterem-se imutáveis, não é dificil perceber que todas as religiões necessitam, sem sair dos seus príncipios fundamentais, de um “aggiornamento”!

Na igreja católica este primeiro passo foi dado pelo “Bom Papa João XXIII”, e agora pela imensa simplicidade e firmeza do Papa Francisco, o que faz admitir que o catolicismo poderá começar a perder menos devotos.

Os cristãos têm também muitos dos seus costumes alterados, quase sempre por “decretos”, sem que isso os faça perder a fé, mas que a muitos tem afastado.

Por exemplo a Quaresma, o Ciclo Pascal, compreende três tempos: preparação, celebração e prolongamento.

Os serviços religiosos desse período intentam a preparação da comunidade de fiéis para a celebração da festa pascal, que comemora a ressurreição e a vitória de Cristo. Esta preparação é feita através de jejum, abstinência de carne, mortificações, caridade e orações.

Quantos católicos cumprem estes preceitos? Raros.

Os judeus discutem também entre si os preceitos talmúdicos do shabat, o dia do descanso, originado no Génesis, que diz que “havendo Deus acabado no dia sétimo a obra que fizera, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, e abençoou Deus o dia sétimo, e o santificou; porque nele descansou de toda a sua obra.” E ainda hoje manda o preceito judaico que esse dia seja dedicado à meditação, duas horas e meia, à família e ao descanso. E, em princípio nada mais podem fazer, nem preparar as refeições que são feitas de véspera.

Os ortodoxos, em Israel querem até introduizir uma lei proibindo que o comércio abra aos sábados! Como é evidente têm uma tremenda oposição, e como praticamente em todo o mundo o domingo é que se tornou o verdadeiro dia sem comércio, procuram um sofisma para alinhar com o que se tornou normal, considerando o domingo como integrante do fim de semana!

Hoje, de acordo com as regras, quem por exemplo tem  filhos pequenos, nem sequer os pode levar à praia, ou levá-los para brincar com amiguinhos, judeus ou não judeus, e são obrigados a ficar em casa o que se torna um pesado fardo para a família, e maior para as crianças.

Não podem “gerar energia”, o que significa que não podem ligar o ar condicionado, a TV ou sair de automóvel, etc., o que nos dias de hoje cheira a absurdo.

Quando o Talmud tudo isto decretou, parece que há mais de 2.500 anos, era perfeitamente normal ficar-se em casa, orar, descansar, etc. Mas hoje em dia?

Bélgica flamenga, Mortsel, um município encostado a Antuérpia, onde vive uma grande colônia judaica, importante centro de negócio e lapidação de diamantes. Ali tinha, e tem, a sede da Agfa-Gevaert onde em 1965 estive estagiando por três semanas.

Bem perto da empresa, um hotel modesto mas suficiente; no último dia de manhã, malas na mão, no 3° ou 4° andar do prédio, chamo o elevador para me levar ao restaurante tomar o meu “mata-bicho”.

Enquanto aguardava, apareceu ao meu lado, ainda em mangas de camisa, um judeu, ortodoxo – não se confundem com os outros – que me pede para acender a luz dum pequeno banheiro que havia ali ao lado. Eu com ambas as mãos ocupadas, e o “cara” sem nada nas mãos a pedir-me uma coisa completamente insólita!?! Mas não quis fazer perguntas e meio de costas toquei no interruptor, que fez um barulhinho – clic – mas não virou, e portanto não acendeu a luz. Olhámos um para o outro e eu, em francês disse-lhe que possivelmente a lâmpada estava queimada.

Mas aquilo mexeu com as minhas meninges, e quando cheguei ao restaurante informei o pessoal do hotel que possivelmente havia uma lâmpada queimada no tal andar.

Fui para a fábrica, meu último dia, e comentei a história com alguém que, conhecedor dos costumes, me disse: “os judeus ao sábado não podem nem acender lâmpadas!”

Custou-me a acreditar, porque em locais escuros deviam andar todos aos tombos, o que seria uma estupidez, mas jamais esqueci o absurdo de tudo isto.

Só agora, passados que são 48 anos (hoje já 56!), quase meio século, ao ler duas revistas judaicas – muito boas - sobretudo a “Hebraica”, fui encontrar, escrito por um rabino e um escritor religioso, o problema do shabat que, certamente a imensa maioria dos judeus espalhados no mundo não cumpre com este rigor.

Uma lei que se pretende prepetuar e tem já mais 2.500 anos, e que não interfere com o básico da crença... é, no mínimo, estranho.

Quanto aos muçulmanos, além de, alguns, terem que fazer as cinco orações do dia – a oração da manhã (Salát Assobh), a do meio-dia (Salát Addohr), a da tarde (Salát Al-Açr), a do crepúsculo (Salát Al-Maghreb) e a do anoitecer (Salát Al-Ichá) – há o seu comprometimento com o Ramadan, um dos cinco pilares do do Islão, o mês durante o qual praticam o seu jejum ritual, passeiam-se nas ruas a ler o Corão em voz alta, e têm que se abster de relações sexuais.

Mas toda a gente sabe que só alguns cumprem este preceito com rigor, sem deixarem de afirmar que Maomé seja o único profeta.

Moçambique, 1992. Depois do acordo de paz que acabou com a guerra civil – é bom notar que foi o único acordo de paz até hoje cumprido, desde que o tempo é tempo, em todo o mundo (honra e glória aos moçambicanos) – a ONU mandou para a Beira – centro-norte de Moçambique – uma missão cuja função era a recolha das armas dos então chamados rebeldes, missão essa composta de militares, todos com postos entre capitão e major, exceto os “velhos chefões” suecos, hindus e pouco mais.

Chegaram de imensos países, como Tailândia e Bangladesh, além duns quantos latinos do Brasil, Uruguay, Argentina, Cuba, Cabo Verde e até um “latino” da Guiné-Bissau, mesmo este sendo muçulmano, mas, como ele mesmo dizia “mau muçulmano”, porque bebia bem, era um grande farrista e além das seis mulheres que tinha na sua terra ainda “comprou” uma moçambicana pela qual pagou um saco de arroz!

Um dos capitães bangla, sempre com ar de superioridade, sentia-se acima dos alegres latinos que desde o início fizeram um grupo à parte, alegre, descontraído, que se juntava para uma boa almoçarada, violão em punho, aquela alegria contagiante que faz inveja à grande maioria dos habitantes desta antiga Pangea, mais ainda aos bangla ainda com complexo de subjugados dos ingleses, e seu teórico rigor religioso.

E, sempre que ocasião se apresentava, o capitãozinho, permitia-se criticar as alegres atitudes dos latinos, que forçosamente tinham que rir na sua cara.

Até que um dia estes decidiram pregar-lhe uma boa peça.

Ramadan. O capitão vivia num hotel, onde se fechava ao fim do dia sem ninguém saber, nem com isso se preocupar, como ele estaria cumprindo o seu dever com o Islão.

Uma noite os ladinos latinos resolveram vingar-se daquele presunçoso e chato camarada de serviço.

Contrataram uma prostituta, a mais bonitona que encontraram, pagaram-lhe com generosidade, e mandaram-na bater na porta do “impecável” bangla, mas que antes tirasse a blusa e se apresentasse com os seios de fora! No corredor do andar do quarto deste, os latinos, escondidos, espreitavam a reação do fervoroso adorador de Alá. Este ao ouvir o “toc-toc-toc” na porta, abre-a, dá caras com uma oferecida moçambicana bonitona, estaca, exita, espreita para os dois lados do corredor, não vê vivalma, e puxa a garota para dentro!

O grupo dos latinos, em silêncio, senta-se no corredor, alguns bem em frente da porta do chato muslim, e aguardam a noite toda, até que ao romper do dia o bangla abre a porta e afetuosamente se despede da sua companhia noturna.

Mas, ó desgraça, nessa altura repara que os camaradas latinos, sem dizerem uma palavra, lhe fazem um sorriso trocista. Pobre bangla. Debaixo da sua pele escura um violento rubro aparece, e pede encarecidamente que ninguém conte o sucedido, promessa com rigor cumprida.

A partir desse dia o capitão-bangla virou um “doce” com suas atenções e sorrisos para aqueles que antes desprezava.

Tudo isto por causa da burocracia religiosa, e do pavor incutido no espírito dos crentes sobre o temor do fogo dos infernos.

Nunca se ficou sabendo se naquela noite a cama do bangla pegou fogo! O que vos parece?

 

05/10/2013

 

 

 

terça-feira, 11 de maio de 2021

 

O  Tempo  e  os  Alicerces


Há algum tempo, sem quase nada em que ocupar o espírito e o tempo, lembrei-me que era bom recordar aqueles amigos que mais marcaram as nossas vidas. Aliás é sempre uma benção recordar os amigos.

E, à medida que me fui lembrando, fui colocando os seus nomes em duas listas. Uma, daqueles que ainda por aqui estão, e que esperamos estejam ainda muito tempo, e outra dos que nos deixaram já.

Não tardou começar a transferir alguns nomes duma lista para a outra, e hoje essas listas mostram um tremendo desequilíbrio! Uma vai aumentando e a outra, mesmo com alguns bons amigos que o “virtual” da internet proporcionou, encurta! E agora são raros os e-mails dos que ainda por aqui andam!

Ainda agora só alguns. E como é difícil falar deles! Rememorar tempos de juventude, de adultos, de avós, a simpatia e o verdadeiro sentido de irmandade que, por bondade de tantos, me encheram a vida, que agora, mesmo que não queira, se vai esvaziando!

Lembro com admiração e inveja (porque não?) as suas vidas sãs, corretas, humildes, e ainda assim, praticamente todos alcançaram situações profissionais de destaque.

Um deles passou uns muitos e últimos anos da sua vida preso a uma cama, imobilizado por estranha doença, mas sempre com disposição positiva, não falando de si, mas interessando-se pela saúde dos amigos.

O outro, os achaques da avançada idade foram-se multiplicando, e o corpo não agüentou mais. Ambos exemplares pais de família, amigos de longas datas, uma simplicidade de vida e ao mesmo tempo uma atividade notável, almas grandes.

Cada vez que um amigo se vai, uma vontade imensa de estar com os que ainda por cá peregrinam, não dá sossego. Mas a distância é muito grande e cada vez mais difícil de a vencer.

A internet veio unir-nos um pouco mais, mas essa troca de notícias, por muitas que sejam, sabem sempre a pouco; apesar das palavras amigas que por vezes nos enternecem e comovem, o contato pessoal não existe. E faz tanta falta!

A vida terrestre, de todos, tem prazo para terminar. Ninguém sabe quando, mas com o avançar, e pesar, dos anos, não é difícil imaginar que já pouco falta.

Às notícias, tristes, que de vez em quando nos chegam, soma-se a catarata de notícias que nos afogam em desumanidade. Pelos jornais, TV, internet, parece que os jornalistas fazem gala em nos colocar frente a um mundo horroroso! A política mundial que se baseia na guerra, quer de tiros quer de finanças, as crises criadas por irresponsáveis desonestos, a fome que grassa em bilhões de infelizes, a insegurança, sobretudo nas grandes cidades, as drogas, os assaltos, estupros e inacreditáveis casos de pedofilia de pais com filhos, os filmes com sexo mais que vivo, não só entre os dois sexos, mas entre homossexuais, homens ou mulheres, mostrados em horários de dia quando qualquer criança pode assistir, e demorando em detalhes nojentos, a violência exibida na sua mais profunda aberração, a mentira e traição, atributos de filmes das sociedades mais financeiramente abonadas, enfim, tudo isto leva a equacionar se vale a pena continuar a viver num mundo de tal forma depravado.

Chega-se a idade avançada, e todas essas violências e aberrações cada vez mais nos magoam. Será por estarmos mais frágeis, ou porque estamos super carregados com a insensibilidade e vergonha que grassam nas manchetes?

Futebolistas a ganharem por mês o que um engenheiro, bem pago, não recebe em doze ou mais anos! Uns pseudo artistas que se exibem escandalosamente, muitos deles também analfabetos a fazerem fortunas com o dinheiro dos basbaques, ou mesmo um outro analfabeto, que chega a presidente dum país, e que depois o mundo inteiro se digladia para lhe conceder honoris causas!

Está tudo invertido. Os valores que me foram passados durante a infância e adolescência, o empenho e preocupação em levar uma vida íntegra, sem me desviar dos princípios éticos e sociais, parece que de pouco valeram.

Bandido, político, berrador de microfone, falso e covarde, é o grande atrativo da juventude de hoje.

Mas, vão ter amigos? Vão talvez ter dinheiro, e uma vida interior vazia.

Não se interessam por se debruçarem, mesmo um instante sobre alguns princípios, como esta máxima de Maomé: “Se tivesse só dois pães, daria um para alimentar o meu espírito!”

Os amigos, os verdadeiros, sempre foram um dos grandes alicerces da nossa vida. Não pelas suas qualidades externas, mas da alma. E agora, da minha geração, só cá estão uma meia dúzia. E alguns muito caídos.

À medida que os vamos perdendo, o nosso edifício vai desmoronando.

Está cada vez menos sólido.

Nota: - Texto escrito há dez anos, revisto e atualizado.

 

09/05/21

 

 

 


quinta-feira, 6 de maio de 2021

 

Os velhos Amigos que vão descansando

 

1961 – No último dia do ano, último dia de caça, que a seguir entrava o defeso, com o grande Zé Neto, fomos dar uma volta pelos arredores de Luanda. Caçámos um belo e velho antílope, macho solitário, sempre com carne saborosíssima.

Dia 4 de Janeiro, batizado de um dos nossos filhos. O João. Uns quantos amigos se juntaram e ficaram para à noite comermos uma das pernas do dito antílope, cozinhado pelo grande cozinheiro Miguel – que um dia teve que ser dispensado porque, por vezes bebia o vinho que sempre estava arrumado na cozinha, para eu beber e para os cozinhados, e “esquecia-se” de fazer o almoço para as crianças (e já eram cinco) – grande Miguel, do alto do seu metro e cinquenta, e no máximo uns quarenta quilos de peso, sob orientação técnica dum belo livrinho de receitas que até hoje a dona da casa religiosamente guarda, esmerava-se no fogão.

A cena era simples. Miguel ar compenetrado e atento, perfilava-se para ouvir a dona da casa, que abria o livrinho, discursava a receita, uma vez só, e no fim perguntava:

 - Miguel! Você ficou a saber? Não esqueceu nada?

 - Sim, senhora. Não esqueceu.

E partia para a lide.

Pois a perna do bicho ficou uma delícia.

No fim do jantar, num lado da sala, uma mesa de canasta para as senhoras e na varanda outra de bridge para os homens. Esta teve nesse dia a personagem que operou o batismo. O padre António... (?), bon vivant, frequentador da alta sociedade, e... metido a esperto.

Seu parceiro numa das mãos, um primo, sempre alegre, ótimo companheiro. Não era nenhum campeão de bridge, mesmo sendo muito melhor do que eu.

Começaram a perder, porque a dupla Zé Neto e Fernando Fezas jogavam a sério.

Padre António, irritado por estar a perder, começa a dar sentenças: “em vez de jogar a Dama você devia ter jogado o Valete.” Pouco depois ao darem as vozes de marcação: “Em vez de três ouros devia ter marcado Três Sem Trunfo”, e outras semelhantes.

E continuou a encher o saco do parceiro que de repente, já saturado, vira-se para ele e diz:

 - Ó padre António, váberdamerda!”

E logo a seguir solta uma daquelas suas gargalhadas, contagiosas, que só ele dava, deixando todo o mundo à gargalhada também!

O padre António engoliu.

Um copo à tua forte saúde de quase 95 anos. Medalhista Olímpico de vela em Helsínquia, 1952.

Meu primo Francisco Rebelo de Andrade. O Xico d’Água! E a Gracinha Sousa Coutinho (Funchal) querida amiga de muitos anos



*       *       *        *       *

Há três anos comecei a escrever sobre Os Meus Amigos. Quase todos tinham já “ido” e era só este que primo “teimava” em permanecer entre nós, sempre com uma boa disposição contagiante. A companheira, e muito querida amiga de infância, já tinha partido para o descanso eterno em 2007, depois de ter passado os últimos tempos com um mal incurável. E escrevi o que está acima.


Chegou agora a vez dele. 97 anos muito vividos e muito partilhados. Adormeceu, tranquilo, e foi-se em Paz. Deixou uma saudade grande mas a sensação de todos os anos que passou entre nós, e foram muitos, nos enriqueceu.

Descansa em Paz meu querido primo e amigo. Podes ter a certeza que não te esqueceremos.

 

06/05/2021

domingo, 2 de maio de 2021

 

SAMUEL  E  GERTRUDES

 

Esta história tem o leit-motif baseado num acontecimento verídico, de que creio já ter escrito sobre isso (já nem sei), e enquadrado na época em que aconteceu, serve para lembrar o que muitos já esqueceram e a maioria nem conheceu.

Estamos aí nos anos 40 do século XX. Portugal não tinha televisão e a rádio era quem imperava.

Em todos os cantos havia um rádio desde os que captavam só um ou dois comprimentos de onda, a outros com o velho OM e diversos comprimentos de OC, onde se tinha a possibilidade de se captar a BBC e até as emissões da Rússia para os comunas, em português, mesmo cheios de ruídos pelo meio.

Havia coisa simples e luxuosos, bonitos, com gira discos, e a rádio era o grande veículo de publicidade da época.

Samuel, vindo das serranias transmontanas nos seus quinze anos, arranjou trabalho numa quinta em Cantanhede. Trabalhador, decidido, foi-se destacando entre todos que lá trabalhavam, melhorando os seus conhecimentos, gostava de ler, e os proprietários ajudaram-no a progredir. Era já uma espécie de “faz-tudo” e os patrões fizeram com que acabasse até por tirar a carta de condução.

A filha única da casa casou com um médico alentejano, de muito antiga família, não tardou a herdar a quinta porque cedo os pais faleceram, e o Samuel continuou a fazer parte daquela casa.

Pouco tempo passado, o médico, também com bons meios de fortuna que incluía um magnífico carro, conduzido orgulhosamente pelo Samuel, que estava a aproximar-se, em alta velocidade, dos trinta e alguns, solteirão, mas sempre de olho e suspiros ao lado de todas as criadas, não só as da casa como das vizinhas.

Vivia sonhando com uma daquelas belezas, num desassossego, a ver os anos a passarem e ele a dormir sempre com os pés frios!

Para casa dos patrões entrou um dia nova empregada, minhota, corpo são, boa postura, uns vinte e poucos anos, sorriso franco, mas... nada de brincadeiras!

Samuel, transmontano arretado (como diriam os brasileiros), quando viu chegar aquela maravilha, estremeceu, e o seu pensamento não desgrudou mais da Gertrudes, que começou a sentir-se acuada. Não que o galã fosse atrevido, mas sentia que aquele olhar dele a incomodava.

Foi contar à patroa, que lhe assegurou que nada se iria passar, e achou por bem chamar o chauffeur a quem pôs abertamente o assunto.

Samuel, corado, confessou que estava apaixonado pela nova garota, mas não sabia como lhe dizer e tinha até receio que ela se magoasse e fosse embora.

Dona Fernanda tranquilizou-o, dizendo que ia conversar com a Gertrudes.

Encurtando razões, e não perdermos mais tempo em considerandos, a jovem mostrou-se disposta a encarar a situação, desde que houvesse respeito. Evidente!

O namoro começa e, não tardou a ambos irem expor a situação aos patrões, dizendo que queriam casar, mas sem deixarem de trabalhar naquela casa que os tratava muito bem.

Proposição aceite marcaram o casório, convidaram os patrões para padrinhos, que até lhes emprestaram o carro, o tal, magnífico, para passearem uns dias pelos arredores da quinta que possuíam um pouco acima de Coimbra.

Samuel estava louco para ter aquela Afrodite nas mãos! Ela mais comedida.

Saíram da igreja, um rápido beberete em casa dos patrões e logo que puderam instalaram-se no carro, de luxo, e seguiram viagem.

Samuel conduzia com as ventas bem abertas por onde entravam eflúvios de fêmea, perfumada, que seguia elegantíssima a seu lado, e até lhe perturbavam a visão.

Estava tão excitado que não aguentou. Saiu da estrada principal, entrou numa de terra e parou junto a um bosque onde imaginou que ficariam escondidos.

Como um tigre faminto salta em cima da, já, esposa, para, ali mesmo consumar o ato para que Deus os criou e se reproduzissem.

Ela reclamou que estavam na estrada, mas Samuel só ouvia o seu coração a palpitar ferozmente e... zás. Aconteceu.

Azar o deles. Passou alguém que estranhou ver um carro de alto luxo ali parado naquele caminho, e foi chamar a polícia a pensar que alguém o tinha roubado. A polícia, ao chegar, dá com um casal em plena farra conjugal!!!

Samuel tenta ajeitar as calças, a Gertrudes baixa as saias já todas exovalhadas, rompe num choro convulsivo, envergonhada, e a polícia levou-os, mais o carro, para a próxima esquadra (delegacia).

Um casal sem posses, num carro caríssimo, concluíram que tinha sido roubado?!?! Telefonam ao proprietário, conhecido na região, dizendo que encontraram o seu carro, parecia ter sido roubado por um sujeito que se chama Samuel, e ele responde que o carro fora emprestado. Não havia nada de mal.

O polícia conta então o que o casal estava a fazer... atentado ao pudor, etc., e o patrão, médico psiquiatra, muito conhecido, foi até lá resolver a maka.

Gertrudes, chorava, escondia a cara e dizia que não queria mais ver aquele homem com quem acabara de casar.

Samuel, então, nem abria a boca.

Levados para casa, envergonhados, estiveram, os noivos um tempo sem se falarem. O bom psiquiatra, com muito trabalho, acabou por resolver o problema e dizer, várias vezes, ao motorista que “fosse com calma, carinho, enfim maneirasse”.

Salvou-se o casamento, e eles ficaram a viver numa pequena casa anexa à principal da quinta. Socegados!

Samuel, vivendo com a esposa, com quem já se entendia muito bem, logo que pôde comprou para a bem-amada um rádio que, se a conversa não fluísse, era ligado e quebrava o gelo que às vezes se formava. Ouviam música, novelas radiofónicas que a Gertrudes fazia por não perder, e ao domingo o futebol. E todos os anúncios, que não faltavan.

Um dia Samuel aparece, ao fim do dia, cheio de frio e febre, mas como tinham ouvido uma porção de vezes no “assistente radiofónico” uma cantiguinha: 


O senhor está constipado
e ficou mal de repente
porque não teve cuidado
porque foi imprevidente.

Para o mal cujo motivo
está na chuva, frio ou sol
qual o melhor preventivo?
Formitrol, Formitrol, Formitrol!

 

Foram perguntar ao médico se deviam tomar aquilo.- Pode tomar, sim, mas agasalhe-se bem e beba também uns copos!

O médio trabalhava em Lisboa, onde tinha outra bela casa, para onde ia a semana toda, sempre acompanhado da esposa e o casal motorista – empregada.

Samuel tudo quanto podia fazer para agradar à sua amada, fazia. Um dia ouviu novo anúncio no rádio:

Sapataria Vinte e Oito

Eis a melhor da capital,

Cujo calçado é um primor

E sem favor não tem rival

Informou-se onde ficava a sapataria, e para lá correu para comprar o mais bonito par se sapatos que encontrasse para a sua Gertrudes, a quem a barriga ia crescendo, que os recebeu com largo e amoroso sorriso!

Para nada pedirem de extra aos patrões, andavam há tempos a dar uma arrumação na casa “deles”, na quinta, até porque se a pusessem bonita poderiam, um dia, convidar o doutor José e dona Fernanda para um jantarzinho. Seria simpático.

E entra o rádio a aguçar-lhes a ideia: Que tal um candeeiro por cima da mesa? Ficaria muito bem. 

Candeeiros bem bonitos

Modernos, originais,
Compre-os na Rádio Vitória,
Não se preocupe mais.

Lá na rua da vitória
Quatro seis e quatro oito
Satisfaz-se plenamente
O cliente mais afoito

Porque na Rádio Vitória
Embaixada do bom gosto
Quem lá vai é bem servido
E sai sempre bem disposto,

Candeeiros bem bonitos

Cheios de luz e de brilho

Lá na Rua da Vitória

No Duarte, Pai & Filho 

Lá foi Gertrudes comprar algo que não abusasse dos seus parcos recursos, encontrou o que a encantou e sabia que ia valorizar o modesto canto da casa onde viviam.

Samuel, uma espécie de faz-tudo, logo instalou aquela maravilha que deu ares de salão à modéstia do ambiente.

Um dia atreveram-se, contam à senhora o que tinham feito e pediram que aceitassem um convite para um jantar com eles. Convite logo aceite, é evidente.

Ela preparou algumas tradicionais receitas minhotas e Samuel comprou numa mercearia próxima duas boas garrafas de vinho.

Ficaram felizes e orgulhosos com a presença dos patrões.

O tempo corria, nasceu-lhes um filho, e o rádio continuava a despejar “instruções” alimentares, como o melhor leite para as crianças e até uma mistureba para substituir o café, mais barato, era 

Cevada, chicória e centeio é a sua composição
Brasa é a bebida que aquece o coração.
 

Perdi esta gente de vista há muitos anos. Juntei à história, autêntica, do desastrado começo da lua de mel, contada pelo patrão, médico, que conheci bem, e romanciei um pouco a vida radiofónica.

Espero que ninguém me leve a mal por isso.

E saiba o Samuel, Gertrudes e filhos que, se ainda estiverem a pisar esta terra, lhes desejo longa vida... maneirando!

 30/04/2021