sábado, 27 de abril de 2024

 

Os Heróis

 As Medalhas

O Brasil

Creio que ninguém duvida que Einstein, Sócrates, Lavoisier e semelhantes eram seres de grande inteligência, á qual estava ligada a ética, a responsabilidade, a liberdade, etc., e que afirmavam que para se poder pensar no futuro tinha que se conhecer, bem, o passado, a história do seu povo, as lições que os mestres nos deixaram, etc. (outra vez etc.), que se tornaram verdade indiscutível.

Mas vamos pro ora falar só nos heróis do Brasil, aliás “heróis”.

Não podemos, por falta de conhecimento e pela quantidade, referir todos os verdadeiros heróis: o povo explorado, mal tratado e mal pago e que consegue sobreviver com um sorriso e não deixar de ser amável, carinhoso, abandonado. A verdade é que a esses não ergueram ainda nenhuma estátua que seria a Estátua do Povo Brasileiro.

Há alguns a quem o Brasil, sem qualquer dúvida, deve todo o seu território e podemos começar por pensar nos quatro heróis de Guararapes, sem os quais talvez a Holanda ainda por lá estivesse como esteve em Suriname até 1975! São eles André Vidal de Negreiros, João Fernandes Vieira, Filipe Camarão, Henrique Dias, os quatro líderes que puseram os holandeses daqui para fora. Também não se pode esquecer o “Conquistador da Amazônia” Pedro Teixeira, já herói consagrado nas lutas que expulsaram os franceses do Maranhão, (e não consta do “Livro de Aço” – o livro dos heróis – felizmente para ele porque tem lá de tudo, até alguns dos maiores destruidores do Brasil), mas podemos citar ainda António Maciel, o famoso Antônio Conselheiro, Tiradentes jovem que não se vendeu à corrupção, Kubitschek e Cândido Rondon, e uma palavra sobre Ana Nery. No livro dos heróis tem uma mulher que seria companheira de Zumbi, cujo... ninguém sabe ao certo se existiu ou é mito.

Vou só tentar falar naqueles que têm estátuas, que são venerados, e que, em muitos casos servem até de patronos a alguns setores da vida “governamental”.

Já escrevi muito sobre o famosérrimo “Zumbi do Palmares”, cheio de estátuas, aliás bustos, copiados de uma magnífica peça africana, o que já de per si descaracteriza o tal suposto Zumbi.

Repetindo o que escrevi, e resumindo, só se sabe que houve um escravo, lá prás bandas da Bahia, que vivia com mais uns milhares de fugitivos, num quilombo que as tropas portuguesas da altura tinham por diversas vezes tentado prender e entregá-los a seus “donos” (até me incomoda só de pensar que gente tinha dono!) e que entre eles, havia um chefe, mais velho chamado Ganga Zumba.

Ganga Zumba cansado de guerras, como os governantes da Bahia, foi convidado para ir à Bahia, com garantias de não ser aprisionado, para se resolver o problema daqueles do quilombolas, que viviam mal, faziam uns assaltos à cidade e perturbavam o bom andamento do eventual desenvolvimento da região e eram frequentemente atacados por tropas do governo.

Ganga Zumba, vestido como um rei, vistosos panos nas costas, levou os seus conselheiros e todos foram recebidos com dignidade e respeito.

Concluiu-se um tratado, alforriaram-se a maioria dos quilombolas, dando a muitos terra para cultivarem e o direito a comerciarem, o que era proibido aos escravos, mas também deviam devolver os últimos que tinham fugido.

Como prova de todo aquele trato o governado pediu a Ganga Zumba que lá deixasse um filho na cidade que ele se encarregaria da sua educação. E ficou.

O quilombo seria desfeito e a paz e tranquilidade voltariam.

Regressou Ganga Zumba ao quilombo, recebido com festa, e um sobrinho, vivaço, mais novo, convidou o tio para uma celebração. Assassinou o tio... e voltou à guerrilha. E o acordo foi desfeito.

Após mais uns assaltos dos soldados, a esse vivaço passaram a chamar Zumbi, que em língua quimbundo de Angola significa “espíritos, fantasmas, almas do outro mundo”. Enfim, não se sabe quem teria sido.

Ao segundo ou terceiro assalto das tropas, o tal de Zumbi ... sumiu, mas houve várias “testemunhas” que garantiram: um, disse tê-lo visto atirar-se de um penhasco e esparramar-se, morto, no chão, outro viu-o levar um tiro e cair morto, um terceiro que teria fugido ferido no meio da refrega e nunca mais alguém o viu nem se soube dele.

E virou herói com direito a feriado nacional no dia da Consciência Negra!

Teria sido muito mais digno que se elogiasse Ganga Zumba que conseguiu alforriar, com uma simples conversa, milhares de escravos, que obtiveram terras e o direito de comercializarem. Não, esse ficou esquecido. O sobrinho, assassino, metido a esperto, fez com que o tratado fosse desfeito, e ficou o símbolo da liberdade!

Este um dos heróis de “mentirinha” do Brasil, inscrito no “Livro de Aço”, e o mais infantil-mente curioso é que inventaram uma “esposa” do Zumbi que está também no Livro dos Heróis do Brasil!

Hoje os “heróis” devem medir-se pelo número de medalhas que, orgulhosa e também infantilmente ostentam em suas fardas de porteiros de boates. Ponham neste boneco uma boa dose de medalhas e ele fica generalíssimo!


A condecoração, segundo consta é uma invenção de um sujeito que foi único: Napoleão Bonaparte! Com um simples pedaço de metal esmaltado, Napoleão “pagava” assim aos militares que o rodeavam e se distinguiam e eles ficavam como pavões: alçavam a plumagem para serem mais bem observados pela populaça.

Um sistema barato que inflava os egos dos simplórios ou vaidosos, tornou-se uma doença universal, com condecorações de toda a espécie e feitios para os mais variados fins. Lula condecorou a falecida esposa com a Ordem do Rio Branco (o que fez ela???) agora condecorou a Janja com a Grã-Cruz da mesma ordem (o que fez ela ???). À Marisa o presidente de Portugal ainda lhe deu mais duas Grã-Cruzes, da Ordem da Liberdade e da Ordem de Cristo, por gloriosos feitos que ninguém sabe onde e como os fez, e não sastifeto com isso deu agora a Janja a Grã-Cruz da Ordem Infante D. Henrique (por alma de quem ? Ela é que descobriu o Brasil?).

Os militares então adoram essas “mariquices” provenientes normalmente por nada terem feito de relevo. O Brasil não esteve em guerra com ninguém desde a famosa do Paraguai, mas eles lá enfeitam com conversa mole, como “foi professor da Academia Militar durante x anos, esteve numa reunião da ONU, visitou um navio guerra, etc., feitos gloriosos... ou vergonhosos”.

É evidente que há uma exceção honrosa: os combatentes FEB, que se bateu gloriosamente na Itália, envergonhando alemães e americanos.

Parece no entanto que os milicos daqui têm inveja dos militares Norte Coreanos com tantas medalhas que enchem o peito dos dois lados, os braços  e às vezes até penduram nas calças por falta de peitos?


Medalha para exibir nos peitos é coisa de milicos, porque civis, que trabalham dezenas de anos e ajudam a enriquecer o país com os seus impostos e com a sua ativa economia, não recebem medalhas. Só aumento de impostos, constante, e inflação.

Para quê, afinal a medalha?

A medalha é como o decote das mulheres, que tem progredido muito, chegando abaixo do umbigo. É resposta à vaidade dos homens: não têm medalhas por fora, mas, peitos por dentro, turbinados ou raramente naturais, para exibir... por fora também.

E assim vai o mundo a caminho, vertiginosamente, para a estupidez coletiva.

Aqueles, acima, norte-coreanos ainda andaram na guerra e guerra brava. Os brasileiros, os poucos heróis da II Guerra Mundial que ainda estão vivos, esses sim, merecem ser galardoados. Deram a vida pelo seu país. Os generais de agora o que fizeram?

Quem for capaz de responder, por favor informe, porque não há documento NENHUM que fale em atos heroicos dos super medalhados e orgulhosos do generalato, e até abaixo deles.

No meu CV, há anos também escrevi que tinha ganho algumas medalhas: uma num torneio de tênis, tinha eu 11 anos, outra pelo 9° lugar numa regata à vela em Luanda, onde, com os filhos competimos contra 8 concorrentes (acabou o vento, o nosso barco era o mais forte e pesado e todos nos passaram à frente!) e outra já nem do quê. Mas nem no dia do casamento as pendurei ao peito!

As pessoas, a maioria, infelizmente, gosta de se exibir por fora. Pois é, por dentro estão vazios!

Não pensam, não conhecem nem o seu umbigo, e o pior é que são incapazes de reconhecer que pelo umbigo é que receberam a vida, que veio dos pais, avós, bisos e etc.

É pena.

 

27/04/24



 

 

 

 

sábado, 20 de abril de 2024

                                          Novo Encontro de Escritores

(Continuação - 2ª Postagem)

O primeiro, ar tímido, que parece nunca foi, dirige-se a Gomes de Amorim:

 - Nunca nos encontrámos em terra, o que eu sempre lamentei, porque poderíamos ter conversado sobre o Brasil que marcou muito a sua vida e parte importante da minha, onde eu deixei algumas obras de que me orgulho. Eu estive no Sul, e a sua vivência mais rica foi entre os índios da Amazônia. Mas o Brasil tratou-me mal e eu retirei-me para Inglaterra. Mais tarde, já no nosso etéreo lugar fiquei encantado em ir vendo que as nossas famílias se uniam, e aí estão descendentes de nós os dois.

 - João Frick eu já não tive tempo de ler o que escreveu sobre Camões, com muita pena, porque foi assunto que sempre me interessou muito, que, como sabe, até cheguei a publicar “Os Lusíadas”, não para corrigi-los, mas sobretudo expurgá-los dos muitos erros dos primeiros que os transcreveram e da “liberdade” que usaram para alterar palavras!

 - Eu sei que continuam a insistir que a primeira edição foi de 1572, é tudo estranho porque a autorização de publicação é de 1571, e em 1572 aparecem duas edições, uma mal copiada da outra ou até ambas copiadas do original manuscrito! Até o frontispício é diferente. Tudo foram cópias, e cópias e copistas... muito se enganam e quando não entendem a letra original  decidem inventar alguma coisa!

 - Eu passei anos a procurar erros e tentar expurgar “Os Lusíadas” desses erros, e publiquei. Foi o segundo livro que eu li, ainda menino, tinha somente 11 anos, e tanto me entusiasmei que em pouco tempo já sabia inúmeros cantos de cor! Mas sabe que também chegou a Lisboa a notícia maravilhosa da sua Sociedade de Emancipação de Escravos no Brasil, com a libertação de quatro escravas. E dessa eu tomei conhecimento na altura. A primeira em todo aquele país que desde há anos vinha lutando, mas... pouco! Quem vai gostar de conversar sobre isso será o André Rebouças, o José do Patrocínio, o meu amigo António Gonçalves Dias, e outros; foi um trabalho extraordinário, uma obra que depois se foi agigantando.

 - É verdade, meus amigos, gostei de ouvir essa primeira conversa, mais ainda porque posso considerá-los “compadres”, já que esses vossos descendentes de que falastes são também meus! Uma neta minha e neta do João, casou com um neto do Gomes de Amorim! Desconhecia esse trabalho do João Frick, mas acompanhei um pouco a vergonha dos “catedráticos” em se arvorarem em “donos” da verdade e da língua portuguesa para criticarem o imenso trabalho do Amorim, que infelizmente também não tive o prazer de ter conhecido na Terra. Conhecia-o bem de nome e fui amigo de alguns amigos dele.

 - Mas eu cheguei a tomar conhecimento do seu trabalho em prol do desenvolvimento do Ensino Técnico, António Arroyo, e até tive notícias suas pelo grande Camilo, com quem parece que fizeram uma pequena viagem de comboio! E mais, era grande a fama das suas ligações com a música, como toda a família Arroyo.

 - É verdade. Eu envergonhado em frente dele, já célebre romancista e eu ainda jovem, mas ele foi extremante simpático!

 Estavam os três bisavôs nesta conversa quando GA abre os olhos entusiasmado e se dirige a um novo personagem:

 - Meu querido amigo, como eu chorei com o teu desastre! Eu que tanto ansiava por cartas tuas, acabei recebendo essa horrível notícia. Talvez nem tenhas recebido algumas das que te escrevi. E eu sempre a pedir-te que me respondesses.

 - A minha vida foi muito corrida e muito sofrida. Corri a Europa em estudo e trabalho e à procura de cura para os males que me afligiam. Nem sempre tinha disposição para escrever e raras cartas tuas me chegaram às mãos. Eu não parava em lugar algum.

 - Eu soube pelo Ferdinand Dennis que te viu em Paris quando saíste do hospital, que estarias a passar mal e tudo quanto desejavas era regressar a casa, ao teu Maranhão. Mas, na viagem, descansaste dos teus infortúnios quando a vida tanto mais tinha ainda para dar. Deixaste-nos poemas que encantam as gerações, como o “Canto do Exílio”, que até dizem que eu quase copiei!

 - Não copiaste nada. Eu só publiquei esse poema no meu livro “Cantos 1” em 1847, e o teu poema, saudoso da tua linda Avelomar, terá sido escrito, como dizes, com 15 anos, na foz do Rio Negro, portanto em 1842. Imagino somente que depois o terás podido polir, se necessário foi!

 Entretanto entra um pequeno grupo que se tinha reunido em frente a Lisboa.

 - Belo, lindo lugar este que os portugueses construíram. Magnífico. Todos sabem como é fácil denegrir o trabalho dos outros. Eu levei séculos a ver, mesmo lá de Cima, como me chamavam mentiroso, para finalmente se certificarem que tudo quanto escrevi nada mais era do que a verdade. Foram milhares os que me leram e só há pouco concluíram que não havia fantasia nem mentira nos meus escritos

- Fernão Mendes Pinto, foste realmente muito mal tratado, até insultado porque te consideravam mentiroso, mas não deixaram de ir publicando os teus trabalhos durante todos esses séculos e era leitura obrigatória nos colégios! A inveja ia minando os deturpados crâneos de gente inferior com pobres graus académicos, que não podiam aceitar que um homem tivesse percorrido e escrito tanto e tão preciso quanto as “Peregrinações” nos deram.

 - Um neto meu, que ainda leva o meu sobrenome, Fonseca, e um dos organizadores deste tão simpático encontro, andarilho pelo mundo já esteve em muitos dos locais a que te referes. E eu, taxado de comunista, que jamais fui, e até muito contra aquele odioso regime, mas anarquista porque não suporto o domínio de quem quer que seja sobre um outro, sempre me deliciei a ler as tuas viagens.

 - Aqueles que pensam, infelizmente raros, procuram a verdade e a coerência, e concluem que a verdade está somente na liberdade. Eu que vivi em Angola e presenciei cenas indignas da triste humanidade também acabei por me considerar um anarquista. Não conseguia assistir a cenas desumanas e manter-me calado. Tive que sair do país por ser contra a administração colonial.

 - Mas os teus livros, Castro Soromenho, continuam a ser elementares para quem quiser conhecer e compreender como eram os tempos de África, no anos 20 e 30 do século XX.

 - Livros que foram ensinamento para os que vieram a seguir. Eu que com o Ernesto Lara Filho fundámos a coleção “Bailundo” para expormos as nossas ideias para uma Angola melhor, e nunca deixei de escrever até ao fim da vida, sempre com Angola na cabeça e no coração, expondo os males da administração colonial e procurando valorizar os elementos nativos!

 - Inácio Rebelo de Andrade, o meu percurso foi menos literário, mas ainda escrevi um pouco sempre com a saudade a querer molhar-me os olhos. Tivemos pelo menos um grande amigo comum, fizemos parte da diáspora dos portugueses que mesmo nascidos em Angola tiveram que sair. Corri mundo à procura dum teto para a família, chegando a sentir-me como o Fernão Mendes Pinto andando pela China!

 - Oh! Guilherme Valadão. Sofreste, mas o pouco que escreveste é de um mestre, filósofo. Enquanto andaste pela Terra, pensaste, faculdade rara, porque a maioria não pensa, diz que “governa” e essa é a causa da razão do atraso dos povos.

 - É certo, daí o anarquismo, hoje sinónimo de destruição, luta, etc., é o modo de pensar de quem realmente pensa. Aqueles que não odeiam ninguém, não destroem obras, não promovem distúrbios, mas os que lutam para transmitir o entendimento, a verdade, que é a liberdade. Muitos assim procederam, e, olhem ali está uma das primeiras médicas portuguesas, considerada anarquista por ser contra instituições de poder que pouco ou nada resolviam. No seu tempo era vedado às mulheres o voto. Viúva requereu ser considerada “Cabeça de casal” porque vivia só com a sua filha, e assim foi-lhe concedido  também o recenciamento. Votou, a única mulher a votar (!) o que foi um escândalo nacional, e mais uma vez os homens alteraram a lei para privar as mulheres do voto. Infelizmente faleceste muito nova, mas foste uma lutadora, Carolina Beatriz Angelo.

 - Tens razão Tomás da Fonseca, não imaginam a quantidade de tabus que tive de combater desde o início até ao final do curso. A começar pelo escândalo de uma jovem solteira observar um cadáver masculino anatomicamente exposto, até aos dichotes de colegas e perguntas embaraçosas de professores… Na prática médica dediquei-me sobretudo à clínica feminina e cada mulher que observei foi menos uma que se teve de expor a um homem que não era o seu marido. Sim, iniciei a banalização da mulher

- Sobre o anarquismo posso contar-vos um caso, curioso, e passado não faz muito tempo. Como sabem, o Jorge (Amado) e eu, logo de entrada fomos comunistas, de que depois desistimos ao ver o descalabro soviético, a expressão máxima do anti anarquismo, mas a minha mãe era anarquista convicta e grande apreciadora do Tomás da Fonseca. Para além de ter todos os seus livros, assistiu a todas as palestras que ele proferiu quando veio ao Brasil. Ela morava conosco no Rio. Apesar das nossas diferenças ideológicas, nunca entrámos em confronto e sempre mantivemos um bom ambiente familiar. Então, o Jorge e eu decidimos fazer uma surpresa à minha mãe e convidámos o Tomás da Fonseca para jantar no nosso apartamento. Então, no dia e hora aprazados, o nosso convidado chegou.  Depois de cumpridos os protocolos das boas-vindas, fui dizer à minha mãe que estava na sala uma surpresa para ela. Não ligou e continuou a ler o que tinha entre mãos. Apenas fez um pequeno gesto como quem diz «Deixa p’ra lá». Desisti e fui pedir ajuda ao Jorge. E, sim, lá veio ela. Ao ver de quem se tratava, solta uma exclamação de espanto, cumprimenta efusivamente o visitante e começam uma conversa entusiástica que nem o Jorge nem eu ousámos interromper. E assim foi até que a hora determinou a chegada de quem vinha buscar o Tomás da Fonseca para o levar ao hotel. Moral da história: nada melhor do que dois anarquistas convictos para calarem dois comunistas militantes.

 - Tu Josué, por te teres dedicado a estudar a fundo o problema da fome, culpa universal dos homens, acabaste por indispor a ditadura militar. Cancelaram-te a embaixada e todos os cargos oficiais, mas não deixaste de ser apreciado por muitos países, onde foste professor, agraciado, reconhecido. Sabendo de casos como o teu, que há aos milhões, quem não deseja o anarquismo?

 - Foi um grande golpe que me deram, mas consegui sobreviver, e hoje ninguém mais sabe quem eu fui, o que estudei, e o que propus. Ainda agora fico perdido não compreendendo porque pelo menos não se ensinam os povos a comer. Seria o primeiro passo, o mínimo, e quase sem custos. Mas a quem interessa? Dará lucro esse trabalho? Toda a gente sabe que as antigas civilizações foram construídas sobre um excedente econômico tão limitado que não poderiam subsistir senão à base de uma extrema desigualdade na distribuição de seus patrimônios. Todas as civilizações foram apenas minúsculas ilhas de cultura, emergindo de um imenso mar de pobreza e de escravidão. A agricultura tem que estar a serviço da saúde coletiva; os considerandos econômicos têm que passar para um plano inteiramente secundário. Se a humanidade deseja sobreviver tem que mudar-se para planos mais elevados. A fome sempre existiu como sempre houve pobreza e miséria ao lado de pequenas ilhas de riqueza e luxo, que emergem de um imenso oceano de pobreza e escravidão. Enquanto os governos não se interessarem, a fome do mundo nunca acabará.

 - Tens razão, Josué de Castro. Toda a razão, e, sendo tão fácil e simples, parece impossível porque não se avança nesse sentido.

 - Josué, muito me impressionou o teu profundo trabalho sobre a Fome, a Geopolítica da Fome, e foi talvez essa importantíssima obra que me inspirou a escrever “Morte e Vida Severina!

- E é o mais realista e ao mesmo tempo o mais triste retrato do Brasil. Ninguém lê esse poema e fica com os olhos enxutos. E hoje que o Brasil exporta alimentos que vão tirar da fome quase dois bilhões de seres humanos, continua a ignorar umas dúzias de milhões de brasileiros que comem mal, às vezes, quando comem! Até quando?

 Aproxima-se devagar um africano, bem escuro, baixinho, cabeça muito redonda, batina branca e ar humilde.

 Depois que mudamos para a Vida Eterna acabamos por saber quem são todos os que nos rodeiam, mesmo os que não conhecemos na Vida Terrena, mas de qualquer maneira, devo dizer que estou aqui sem convite, e por isso vou já embora. Nasci e cresci num país colonial sempre com o estigma do colono, da administração colonial e tendo quase entrado na luta armada. Mas eu era já cónego, queria lutar, sim, pela paz e justiça. Um dia comecei a ter algum contato com indivíduos brancos, e contra as minhas expectativas fui muitíssimo bem recebido por todos. Olha, Gomes de Amorim os teus descendentes, ainda pequenitos, que ali viviam, gostavam tanto de me ver quando ia a casa deles que me chamavam de “tio”. Foi quando eu realizei que o problema não era a pele, eram os governos, as instituições, a ganância. Mas, nem a luta armada, nem o anarquismo conseguem consertar o mundo. Depois da independência, fui Arcebispo de Luanda, e quando pensava que tudo se ia começar a consertar, o novo governo, esmagado pelos comunistas, fez tudo quanto podia para destruir a Igreja. E não eram brancos. Foram anos de grande sofrimento e tristeza. Lutei, mas era uma luta em tremenda desigualdade. Adoeci seriamente e tive que resignar. Não adianta ser anarquista, comunista ou capitalista, se não começar por reconhecer no Outro um seu igual. Cristo foi o maior anarquista, mas só lutou com a palavra e o exemplo.

 Quando terminou o que tinha para dizer, desapareceu.

- De quem foi esta Alma grande?

- Dom Eduardo André Muaca, Arcebispo de Luanda e muito amigo de um dos que organizaram este Encontro. Uma figura notável.

A continuar... mais umas 4 ou 5 postagens

quarta-feira, 17 de abril de 2024

 

Novo Encontro de Escritores

 Imaginem uma coisa destas: desde há uns seis anos que, volta e meia, sou perturbado durante a noite, com sonhos estranhos, eu que normalmente chego ao fim do dia já todo arróinado (mesmo com “o”), fruto desta longa viagem que começou há um monte de decénios, e a essa hora quando tudo que almejo é cair na cama e adormecer como um justo (que talvez não tenha sido, tanto quanto a consciência me está sempre a lembrar).

Aparecem uns sujeitos, a maioria bigodudos e/ou barbudos, vestidos à moda antiga, que berram comigo porque reuni uma quantidade de ilustres escritores da língua portuguesa para que pudessem ter uma conversinha entre eles, na eternidade fora desta Terra, e ainda por cima, além de terem estado no mais belo mosteiro beneditino de toda a Europa, ainda tiveram a prova de que o planeta continua a dar coisas boas, porque beberam vinhos especialmente selecionados para esse convívio. E alguns até beberam bem!

Zangados comigo por não terem sido convidados!

Faltaram muitos, e alguns especiais para mim, e outros tantos que não tiveram tempo para conversar porque o dia estava a nascer e as suas condições etéreas não lhes permitia ali ficar depois do sol nascer. Além disso o refeitório teria que estar aberto para os monges!

Quando acordo, por vezes meio estremunhado, tento reconhecer quem esteve a perturbar-me, e não consigo recordar nenhum, até porque os sonhos são sempre confusos e precários.

Decidi que tinha que os atender. É evidente que uns tantos desses autores lusófonos são muito interessantes, mas o espaço que disponho para reunir alguns outra vez é exíguo.

Mas esta noite vi nitidamente dois deles que, não estando bravos comigo, muito pelo contrário, foram até de um carinho e ternura especial. Primeiro foi o meu bisavô e homónimo, que tanto escreveu sobre o Brasil, a Amazónia e seus povos, e que me dizia o que fixei:

 - Tu meu muito estimado bisneto, tens que dar um jeito nesses Encontros. Eu mesmo quero voltar a estar com alguns que conheci bem e outros com quem no tempo troquei bastante correspondência. Aqui, onde estou, no éter, não se podem fazer essas coisas. Eu sei que tu tens iniciativa de sobra para organizares outro Encontro. E gosto muito de ir sabendo o que tens feito durante muitos anos para que o meu nome não ficasse mais esquecido.

 E sumiu. O curioso é que escutando esta conversa, aliás monólogo, porque eu nem abri a boca, outra figura cuja cara nunca vi, nem em fotografia, pôs a mão nas minhas costas sussurrando no meu ouvido:

 - Tu, que te interessaste também pela minha vida, e divulgaste muito interessantes atos que pratiquei, tens que me chamar também para esse Encontro. Sou também teu bisavô, João Frick. E sabes que escrevi algumas coisas! Até sobre Camões, polémicas, mas sempre discutíveis.

 Não vi a cara dele, mas sei alguma coisa da sua vida.

E antes de despertar, outra figura se aproxima, barba cerrada, porte digno, que também me quis dizer algo.

- Sabes bem que eu fui o único bisavô que te conheceu. Sou o outro, o Arroyo, a quem a tua mãe tanto queria, e não digas a ninguém mas ela era a minha neta preferida. Tu eras muito bebé, e tanto gostaria de te ter visto crescer, mas... o meu espírito foi chamado para outa dimensão e deixei-vos tinhas tu pouco mais de dois anos. Nada escrevi sobre o Brasil, ou África, que parecem ter sido os temas de maior interesse, já que a história foi bem conversada, mas vê se me dás um cantinho para assistir a um novo Encontro e aproveito para conhecer os teus outros antepassados.

 Moral da história: tenho que arranjar outro Encontro, nova gente, mas resta decidir onde será, com quem e como será, etc., e não posso deixar de chamar os bisavôs. Eles depois que conversem sobre o que quiserem que isso já não será minha responsabilidade.

Vou tentar. Juntar uns tantos de lusófonos, sempre será muito interessante vê-los, nos seus trajes da época, e ouvi-los conversar.

Uma vez que vou fazer isto “a pedido” de meus antepassados, terei que lhes dar um lugar com algum destaque e, já que eles podem aparecer em qualquer lugar, sem terem que reservar lugar em aviões ou foguetes, elegi um lugar aqui no Rio de Janeiro, maravilhosamente adequado: o Real Gabinete Português de Leitura, e, ainda por cima na rua Luís de Camões!

Não cabe muita gente, mas... os etéreos não se chocam uns com os outros!

Em vez de lhes dar vinhos de Portugal... terão um bom café, poderão escolher entre caipirinhas e frutas variadas, e não faltará bom vinho brasileiro, selecionado por um renomado sommelier que irá recomendar e encomendar o necessário (!).

Também estão designadas quatro testemunhas que depois, além de serem os garantes do que acontecerá, farão os seus comentários, e que serão conhecidas pelas siglas ARS, AVC, HBM e TPA.

Conversado, o administrador do Real Gabinete, a quem foi complicado fazê-lo acreditar no Encontro havido há uns sete anos em Alcobaça, finalmente autorizou, disponibilizando as salas, garantido que ficou a segurança e a impecável limpeza posterior, e a autorização para entrarem somente os organizadores do Encontro, dois, e as testemunhas.

Marcada a data para um sábado após saírem todos os funcionários,  para  que  domingo  se  possa  deixar  tudo

impecavelmente limpo e arrumado.

Marcou-se a data, para daqui a uns quantos dias.

Entretanto tive que novamente chamar o São Pedro (que ele não gosta que lhe chamem santo!). Conversa, silenciosa, meditada, que lá no Alto, onde não há santos, é Simão, o pescador, que me dá a entender que podia convidar quem quisesse. Lembrava-se bem do Encontro em Alcobaça, onde ateus, cristão e judeus tão bem confraternizaram. Era só elevar o pensamento que eles viriam, mesmo que alguns, eventualmente, tivessem ainda no seu curriculum eterno algumas pequenas dúvidas, sempre perdoadas, porque amaram  o Outro e foram, na Terra, mal compreendidos.

Tudo preparado - caipirinhas, frutas que alguns talvez nunca tenham provado em vida, e alguns docinhos, como os quindins da Iáiá e os vinhos das boas vinícolas do Rio Grande do Sul, sobretudo o Prossecco que arrefece a garganta e convida ao papo!

Chegou o dia. Entretanto o parceiro que colaborou na organização deste Encontro, decidiu esperar pelos convidados em Lisboa, e descreve assim o aparecimento de alguns:

A sombra amiga do enorme pinheiro manso disse-me que o seu dono há muito ali estava no topo da arriba de Almada, a ver Lisboa na outra banda do Tejo já salgado e quase mar. Abri a cadeira de praia que anda sempre na bagageira do meu carro e sentei-me.  Se Augusto Gil por ali andasse, diria que «nem uma agulha bulia na quieta melancolia dos pinheiros do caminho». Mas não, aquele não era lugar para melancólicos, é sim poiso de sonhadores, com barcos a caminho da esperança e na volta de aventuras.

Estava eu nestas cogitações quando vejo, a certa distância, um homem alto e forte que se aproximava em passo lento e quase solene. Postura de dono de sítio. Estava eu aqui tão tranquilo e vem agora aquele correr comigo daqui para fora. Aguardemos com a calma dos inocentes os convidados que preferirem por aqui passar... com saudade!

E lá vem um.

Nariz proeminente de cana em ângulo recto como os de quem não tem tempo a perder.

 - Já percebi que o Senhor é o dono do local.

 - Esta é a Quinta de Palença que herdei e deixei aos meus descendentes. O meu nome é Fernão Mendes Pinto.

- Eu estou aqui a gozar o panorama e para informar os convidados que o Encontro dos Escritores é no Rio de Janeiro no magnífico Real Gabinete Português de Leitura. É uma beleza. Por favor queiram para lá se dirigir. Vão chegar bem a tempo porque o dia lá está a nascer.

                                                                   * * * * *

Bem cedo estavam a chegar ao Real Gabinete os primeiros convidados, e nós, quietos num canto, à espera.

Já lá estão uns quantos no meio da grande sala, alguns admirados da beleza do lugar, outros que com ela estavam já familiarizados.

Sem quase passarem da porta aguardavam, mudos e quedos os dois organizadores e as quatro testemunhas, que podiam ver e ouvir os convidados, mas impossibilitados de os contatar.

Alguns convidados foram direto tomar um cafezinho e ouviram-se:

 - “Ahhhh! Que saudade!”

 Outros, que não saíram nunca da Europa, estranharam algumas bebidas e frutas que desconheciam, atreviam-se, provavam e se deliciavam, saboreando enquanto se entrosavam com os brasileiros.

 - Que frutas lindas. E que aroma! Delícia.

 

Nota: A continuar, em poucos dias

terça-feira, 9 de abril de 2024

 

Cântico do Irmão Sol

 

Francisco de Assis – Il Poverello

 

Altíssimo, omnipotente, bom Senhor,

a ti o louvor, a glória, a honra e toda a bênção.

A ti só, Altíssimo, se hão-de prestar
e nenhum homem é digno de te nomear.

Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as tuas criaturas,

especialmente o meu senhor irmão Sol,

o qual faz o dia e por ele nos alumias.

E ele é belo e radiante, com grande esplendor:

de ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Lua e as Estrelas:

no céu as acendeste, claras, e preciosas e belas.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão Vento

e pelo Ar, e Nuvens, e Sereno, e todo o tempo,

por quem dás às tuas criaturas o sustento.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Água,

que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão Fogo,

pelo qual alumias a noite: e ele é belo, e jucundo, e robusto e forte.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pela nossa irmã a mãe Terra,

que nos sustenta e governa, e produz variados frutos,

com flores coloridas, e verduras.

Louvado sejas, ó meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor e suportam enfermidades e tribulações.

Bem-aventurados aqueles que as suportam em paz,

pois por ti, Altíssimo, serão coroados.

Louvado sejas, ó meu Senhor, por nossa irmã a Morte corporal,

à qual nenhum homem vivente pode escapar:

Ai daqueles que morrem em pecado mortal!

Bem-aventurados aqueles que cumpriram a tua santíssima vontade,

porque a segunda morte não lhes fará mal.

Louvai e bendizei a meu Senhor, e dai-lhe graças

e servi-o com grande humildade…