segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Ciclo dos Amantes

A tia da perna curta

Há uma velha anedota que parece terá vindo da Saxónia, lá das bandas de Dresden, dum pequenissimo lugarejo perto de Reichenberger, onde vivia uma família de agricultores, pobres, o que era normal naquele tempo, século XVIII ou começo do XIX.
O casal pouco mais fazia do que cuidar de alguns animais e da horta, e à noite, sobretudo no inverno, quando o frio aperta... mais um filho.
Gerhart, o mais velho, com quatorze anos, tinha aprendido com os pais as primeiras letras, e as lides camponesas, mas eles queriam que fosse para a cidade para se instruir, seguir os estudos e, se possível, encarreirasse pelo seminário o que lhe daria uma vida mais folgada, e os próprios pais subiriam de conceito no meio dos camponeses.
A mãe tinha na cidade uma irmã um pouco mais nova do que ela, solteira, que quando menina tinha caído num penhasco e ficado a mancar, com uma perna cerca de quatro centímetros mais curta do que a outra, o que sempre afastou pretendentes, apesar de ter o restante físico bem composto e uma cara saudável. Vivia fazendo um trabalhinho aqui, outro além, e morava igualmente numa casa pobre, só com duas divisões, a entrada, onde estava a cozinha com uma pequena mesa, e por cima, o sótão, esconso, com um enxergão onde dormia, e um pequeno baú onde guardava o pouco que tinha, como roupa.
Gerhart acolhido na escola oficial na cidade, foi morar com a tia, porque dinheiro para mais não havia. Nos fins de semana voltava a casa, uma dúzia de quilômetros de distância, e sempre regressava com alguns produtos da horta, salsichas e pão, aquilo que os pais tivessem para que a tia não gastasse dinheiro com o sobrinho. Só a colhida em sua casa tinha sido uma ajudo imensa.
Gerhart, como a tia, à noite vestia uma camisola de dormir, que lhe descia até aos pés, e dormia no sótão, naquele enxergão não muito largo, mas nunca frio. Da cozinha subia um pouco de calor e as cobertas eram suficientes para passarem a noite agasalhados.
E ainda tinha o abraço da tia que o agarrava junto a si, para se aconchegarem melhor... e não só.
Sempre dormia de costas voltadas para a tia, não se sentia muito à vontade, mas habituado como estava, desde sempre a dormir no chão com mais quatro irmãos todos alinhados a seu lado, achou aquilo normal e sempre aproveitava o pouco mais de calor que a tia compartilhava com ele.
Os quatorze anos são o despertar da primavera e não demorou muito que Gerhart sentisse o peito da tia amaciar lhe as costas, e alguma sensação nova ia aparecendo pelo seu corpo, sem que ele soubesse exatamente o que era, mas sentia nas faces que, se aqueciam, deviam corar.
Começou por estranhar aquele calor e aquele encosto suave e firme, que lhe causava cada dia mais prazer.
É evidente que a tia ia percebendo e sentindo as reações do sobrinho e uma noite, depois que percebeu que ele adormecera, passou uma perna entre as dele, e assim se deixou ficar até de manhã.
Quando acordou, Gerhart sentiu que alguma coisa estava acontecendo. Gostou. Levantou-se, foi para a escola e à noite ao deitar-se fez o possível por ficar acordado o máximo de tempo que pudesse.
A tia deitou-se a seguir, levantou um pouco a camisola e voltou a colocar a perna entre as do sobrinho.
Bem devagar foi mexendo a perna, afagando... Gerhart, que pela primeira vez sentia fenômeno novo, foi “ver” o que estava a acontecer, sentindo-se nervoso. Passou também a mão na perna da tia, que acariciou, gostou, mas ficou sem saber o que fazer, tanto mais que se sentia em alta tensão!
Virou-se, pensou até em perguntar à tia o que aquilo era, mas tinha vergonha de o fazer. A tia fingia que dormia, mas a camisola deixava à mostra todo o seu corpo da cintura para baixo.
Com a claridade, fraca, que entrava pela janela do sótão, Gerhart destapou-a mais um pouco, pesquisou com cuidado todo o espetáculo, sentido-se a despertar para algo que mal sabia o que era, achou que podia juntar-se mais e mais, o que o instinto natural lhe ditava.
A tia, “a dormir”, foi-se ajeitando para que Gerhart se encaixasse todo. Como sonâmbula, com ambas as mãos ajeitou o sobrinho, conduzindo-o até ao “abrigo” certo.
Ambos fingiam que dormiam, mas quando Gerhart adentrou com o rompante da vontade e da muita juventude, ela soltou um gemido que o assustou, e disse:
- O que é isso Gerhart?
- Desculpa tia. Eu não queria fazer-lhe mal. Desculpa, eu vou sair daqui.
Gerhart pensou tê-la machucado e quando se preparava para se afastar ela agarrou-o com força.
- Não Gerhart. Olha, já que está assim, deixa ficar! Não fizeste mal nenhum, eu é que não esperava. (Mentira!) Deixa ficar como está, que nos agasalhamos melhor!
Gerhart não sabia o que fazer, não queria de forma alguma deixar aquele encontro que estava a saber-lhe como nunca havia pensado. Ficou quieto enquanto a tia o arrumava bem em cima dela, sentindo então toda a força daquela mulher que se coxeava a andar, ali se mexia duma forma que o levava às alturas.
A tia, Gertrude, parecia dançar debaixo dele, primeiro a um ritmo lento que foi crescendo, bem como a sua respiração acompanhada de respiração profunda. Gerhart também suava, e uma espécie de chorinho da tia preocupavam-no. Receava que a estivesse machucando! Aquela estreia, inesperada, e já há algum tempo pressentida no subconsciente, compensava-o de todo o esforço que fazia desde que saíra de casa. Apetecia-lhe gritar, cantar, dançar, mas não sabia o que fazer, abraçado à tia que o mantinha acorrentado nos seus braços.
Terminada a estreia, a tia, antes de voltarem a dormir, fez o sobrinho prestar um solene juramento de jamais, com quem quer que fosse, falar no que tinha acontecido ali entre eles. Se o fizesse ela iria queixar-se que ele a tinha atacado, que não o queria mais em casa, etc.
Gerhart jurou tudo o que podia. Por todos os santos conhecidos e a conhecer mais tarde no seminário. Não queria igualmente que alguém viesse sequer a desconfiar do que se passou, e passaria entre eles, muito menos perder aquela cama e as noites que, de certeza se seguiriam.
E seguiram.
Ao chegar a casa Gerhart tinha sempre que estudar, pelo menos uma hora, enquanto a tia arrumava alguma coisa e preparava o parco jantarzinho, que mesmo como pouco, hábil cozinheira, fazia milagres. À noite passaram a comer depressa para se irem deitar mais cedo e poderem ficar na cama o máximo de tempo possível.
Gerhart fingia que se deitava para dormir, mas assim que a tia se metia por debaixo das cobertas ele sentia as suas mãos procurando-o ao que ele não se fazia rogado, e logo aparecia disponível. Do mesmo modo as mãos do jovem percorriam o corpo da tia com muito cuidado, apreciando e excitando-se cada vez mais, mas logo se viravam um para o outro e seguiam em frente. Gertrude já não se deitava com a camisola. No escuro do sótão e o sobrinho de costas, despia-se toda e só depois se tapava com as cobertas. Folgada e carente, as mãos de ambos todos os dias descobriam novas sensações, tudo era novidade e ela beijava-o na cabeça, depois no pescoço, onde quer que pudesse.
Não podia durar muito tempo nestas cavalgadas. O sobrinho era muito jovem e até lhe parecia que começava a emagrecer. Ela era forte e resistente, mas tinha que ter muito cuidado para não estragar a sua “galinha dos ovos de ouro”, cansada de fazer inúmeras promessas para que tal lhe caísse um dia em casa. Aliás, na cama.
E tratou de o forçar a comer melhor. Mais salsichas e ovos e leite e batatas, tudo quanto pudesse contribuir para a robustez do jovem que acabara de fazer quatorze anos e a botar corpo e... o resto.
Felizmente ia bem nos estudos e logo seria chamado para o seminário. Aí acabaria aquela cama gostosa, quentinha e sensual, o que, só de pensar, lhe dava tristeza. Tinha que arranjar uma maneira de, mesmo quando no seminário, poder continuar a visitar a querida tia que tão bem o havia acolhido e introduzido nas artes do amor.
Gerhart só descansava nos fins de semana, e nas poucas férias, apesar de ter sempre muito trabalho, a ajudar os pais nas fainas diárias, a contar histórias aos irmãozinhos menores e a fazer, nos fins de semana, aquela caminhada de ida e volta, tanto no verão como no rigoroso frio do inverno.
Acabou o ano letivo. No dia seguinte Gerhart voltaria para casa e quando regressasse já tinha o seminário para onde ir. Na véspera Gertrude passou o dia a limpar as lágrimas. Ia ficar sem aquele calorzinho, aquelas pernas gostosas enroscadas, e o resto! Nos últimos tempos economizara o quanto podia, sempre abaixo de pouco, para preparar uma bonita ceia de despedida.
Quando o sobrinho entrou em casa ela agarrou-o logo, encheu-o de beijos e nem mais lembrou da tal ceia especial. A despedida tinha que ser de outra forma.
Subiram atabalhoadamente os poucos degraus até ao sótão onde chegaram já despidos. Ela chorava de e saudade antecipada, ele parecia um cavalo na corrida, até que por fim, amainaram.
Descansaram um pouco e:
- Gerhart! Tinha preparado uma ceia especial de despedida. Vamos descer de novo.
Vestiram as camisolas e foram para a festa do estômago, acompanhada com um copo de vinho para cada um.
Mas não era esta comida que cada um mais desejava.
- Tia. Eu acho que vou conseguir uns momentos livres quando entrar para o seminário para vir visitá-la. Ainda não sei bem como, mas de certeza que vou continuar a aparecer.
Ela levantou-se emocionada, beijou-o e:
- Vamo-nos deitar. Não podemos comer mais nem perder mais tempo.
As mesmas cenas, as lágrimas, tudo.
De manhã Gerhart, ao sair, para ficar uns dias de férias em casa dos pais, sem nada dizer levou um sapato da tia, que ela calçava do lado da perna mais curta. Em casa, com habilidade, de madeira forte fez uma sola espessa, que compensasse a diferença de altura das pernas, forrou a sola com um pedaço do couro de porco. Por fim pregou tudo com muito cuidado, pintou a madeira de preto e calculou ter feito um bom trabalho.
Acabadas as férias, Gerhart saiu de casa dos pais um dia de antes da entrada para o seminário e, além de levar mais alimentos para ajudar a tia, carregava, como surpresa, o sapato.
Quando chegou foi recebido com imensa alegria e muito “atraso” nas lides escusas. Depois de se terem reposto as saudades, Gerhart pede à tia que lhe mostre o pé, calça-lhe o sapato e pede-lhe que ande, para ver o resultado.
Para espanto dela, quase não coxeava, e como as saias iam até quase ao chão ninguém se aperceberia do “truque”. Outra vez teve que agradecer, e muito, este carinho que o sobrinho lhe levara. E os agradecimentos eram sempre calorosos.
Ele teve que se apresentar no seminário, prometendo que apareceria sempre que possível, e assim foi acontecendo durante algum tempo, com intervalos mais regulares do que imaginara.
Um dia um dos professores, simpático, no meio da aula avisa os alunos que ia que deixar o seminário. Fora mandado para uma paróquia em Zwickau, a mais de 100 quilômetros dali. No fim da aula em conversa com Gerhart lamentou-se, porque gostava muito de lecionar, e no novo cargo, solteiro, iria ter que tomar conta da igreja, da casa, viver sozinho, o que lhe parecia sombrio.
Gerhart lembrou-se logo da tia, que bem merecia um homem bom com quem casasse.
- Herr Lehrer. Eu conheço uma senhora, minha tia, solteira, muito simpática e educada, que seria uma esposa ideal para o senhor. Pobre, irmã de minha mãe, muito trabalhadora. Venha comigo que eu vou apresentá-la.
- Gerhart. Casamento não se faz como quem vai comprar batatas! Precisa tempo.
- Mas primeiro precisa conhecer. Depois... é problema de ambos.
- Vamos então lá conhecer a sua tia.
- Deixe-me ir uns cinco minutos na frente para a avisar que vem um amigo, para ela se poder arrumar um pouco, mesmo não sendo pessoa de se exibir, nem dinheiro teria para isso.
Quando entrou em casa a tia agarrou-se logo a ele, e Gerhart teve dificuldade em se desenvencilhar.
- Tia, vem aí um amigo meu, um professor que a quer conhecer.
- Ahhh! Mas eu estou nesta figura miserável!
- Que nada. Dê um arranjo na aparência e deixe as coisas correrem.
Conforme o combinado, pouco depois o professor bate à porta, Gerhart vai abrir e logo a seguir Gertrude desce do sótão. Corada, roupa modesta, cuidada, e uma cara que logo agradou ao pretenso pretendente.
Apresentações, um pouco de conversa cerimoniosa, Gerhart diz que tem que sair por uns minutos e deixa os dois sós.
Meia hora depois, ao voltar ainda estavam os dois em animada conversa.
Professor e aluno saíram juntos. Um beijo na face da tia. um Auf Wiedersehen, bis bald, meteram-se a caminho do seminário.
- Muito simpática a sua tia. Sabe que gostei dela?
- Eu já sabia. Ela é ótima pessoa, e o senhor precisa e merece alguém assim. Tenho a certeza que farão um belo casal e que serão felizes.
Gerhart não voltou a procurar os carinhos da tia. Queria mesmo que ela fosse feliz. Ela bem merecia.
Nos dias que se seguiram, o professor aproveitava todos os momentos livres para visitar Gertrude. Ao fim de um mês tinham casamento marcado.
Fizeram a festa em casa dos pais de Gerhart, que começou a tomar consciência que a vida de pastor não se coadunava com sexo libertino, e sentia-se feliz por ter ajudado a tia.
Ajudou-a muito... e ela a ele, mas isso eram águas passadas.
Agora a vida era outra, para todos.

Maio/2014

segunda-feira, 20 de novembro de 2017


7ème Arrondissement


Continuemos com os amantes. A vida é curta!

Paris, Rue Rousselet, um petit Cafe-Restaurant, Fignier, uma rua tranquila.
Há quantos anos o Restaurant ali estava, ninguém sabia ao certo. Nem a dona. Ela e o marido o haviam comprado há mais de vinte. Clientes habituais, um salão de jantar de tamanho médio, muito arrumado, um pequeno café e bar na entrada, e sempre, sempre, uma cozinha gourmet.
Clientes habituais e quase diários, como Jean Louis, aposentado da SNCF, que raro o dia ali não almoçava. Íntimo da casa, entrava sempre com um sorriso e um belo cumprimento para a simpática, eficiente e trabalhadora dona, madame Simone.
Madame Simone tinha enviuvado há quase sete anos e, de entrada foi-lhe difícil continuar com o negócio, que quase só ela e o marido mantinham. Teve que se organizar, arranjar um ajudante de cozinha que ela nunca deixava de supervisionar, e ao mesmo tempo atender ao bar, onde a maioria dos fregueses já quase faziam parte da família.
Jean Louis era um desses fregueses a quem madame Simone, como a outros, fazia questão de atender pessoalmente.
- Sempre bela, madame Simone! Então o que me recomenda hoje?
- Não seja tolo messieur Jean Louis. Já não sou jovem, e ouvir esses cumprimentos até me deixam sem graça. Sabe que nós devemos ter quase a mesma idade! Bom, que tal un petit filet avec pommes sautées et des artichauds au beurre?
Jean Louis era também sempre atencioso:
- Ah! Madame, vous me portez toujours vers le ciel! Não esqueça o vinho. Pode mandar trazer já, mesmo antes da comida.
O garçon trouxe o vinho da conhecida preferência do habitual cliente, mas era sempre madame Simone quem fazia depois questão de servir o prato com a comida.
- Voilà.
- Sempre uma maravilha. Obrigado.
Com muito tempo e calma, Jean Louis, nos seus sessenta e alguns, saboreava o magnífico filet, bebia uns dois copos de vinho, e por fim alguma sobremesa leve e o indispensável café.
Se o restaurante não estivesse cheio deixava-se ali ficar sentado um bom tempo. Assim que saísse não tinha rumo certo, a família toda vivia longe, teria que passear pelas ruas, dele sobejamente conhecidas, vagava, vez por outra ia ao cinema ou a um teatro, enquanto no restaurante havia movimento, alguma animação e sobretudo a sua amiga, sim, porque de há muito se consideravam amigos, madame Simone.
Só aos domingos, e nem todos, é que ia almoçar com a única filha e netos. Era praticamente só essa a variante da sua vida.
Quando todos os clientes saíam, por vezes madame Simone vinha comer a sua refeição na mesa do cliente, o que a este dava um prazer especial. Conversavam, sobre assuntos banais, mas Jean Louis começava a sair de lá frustrado. Vivia só e aquela companhia estava a animá-lo, sobretudo a fazer-lhe falta.
Chegou o dia em que se atreveu ir um pouco mais longe.
- Madame Simone, a senhora mora aqui por cima do restaurante, não é?
- É verdade.
- E vive sózinha?
- Vivo. Mas como costumo sair tarde daqui, muitas vezes nem tempo me sobra para pensar nisso, já que bem cedo estou de volta e começa todo o trabalho de novo.
- Mas às segundas-feiras, o restaurante fechado, era ocasião para relaxar um pouco.
- Mas é isso que eu faço. Levanto-me mais tarde, dou uma volta pela casa, que apesar de não ser grande sempre precisa de mão de mulher, depois saio, vou almoçar fora, e tudo isso já é uma variante.
- Vamos fazer o seguinte: numa próxina segunda-feira eu venho buscá-la, de carro, e vamos almoçar fora de Paris. Tomamos um pouco d’air de la campgne, almoçamos num lugar tranquilo, e nesse dia não tem que se preocupar com nada. Fica, inteiramente, por minha conta! O que acha?
- Messieur Jean Louis. É muito amável da sua parte, mas...
- Não tem mas... É um convite sincero, e devo dizer-lhe que me sentirei muito honrado se aceitar.
- Vou pensar. Durante o resto da semana voltaremos a falar nisso. Mas eu não quero, de forma alguma, atrapalhar a sua vida.
- Meu Deus! Atrapalhar a minha vida! Jamais. Pelo contrário. Seria para mim uma grande alegria.
No sábado, madame Simone, quando serviu o almoço ao seu cliente, muito rapidamente e em voz baixa disse-lhe
- Segunda-feira. Combinaremos isso mais logo.
Jean Louis não cabia em si de contente. Parecia um menino a quem prometeram o brinquedo desejado.
Um pouco mais tarde, restaurante quase vazio, madame Simone traz o seu prato e vem sentar-se na mesa de Jean Louis.
- Então segunda feira vamos para o campo! Há anos que não saio de Paris, e só de pensar que posso respirar um pouco de ar puro, achei que deveria aceitar o seu amável convite.
- A que horas devo vir buscá-la?
- Pelas nove e meia, para nos podermos afastar mais da cidade, e sair dos engarrafamentos. O que lhe parece?
- Esplêndido.
À hora combinada, Jean Louis no seu carro, um pequeno Citroen, lá estava à porta da casa. Madame Simone, desceu, ele saiu para a cumprimentar e lhe abrir a porta do carro, e seguiram direção Norte.
- O que lhe parece irmos até à Normandia?
- Para mim é igual. Só de sair da cidade já é uma maravilha.
Optaram por estradas secundárias. Não tinham pressa e a idéia era gozarem a natureza. Era Maio e os campos estavam lindos, muitos deles cobertos de flores.
Pararam em vários lugares, ora para apreciar a paisagem ora visitar um monumento antigo, e pareciam felizes com toda aquela descontração. Sempre Jean Louis chegava primeiro ao carro para abrir a porta à sua companheira, o que ela não deixava de notar e se sensibilizar.
À hora do almoço acabaram por deparar numa estrada quase sem movimento, un Petit Auberge – Café – Restaurant, com uma estrela Michelin, garantia de qualidade, que logo lhes chamou a atenção. Fora, a povoação estava rodeada de campos e floresta, o lugar quase idealizado, para que, longe do tumulto das cidades, respirassem o tal ar puro.
Restaurante simples, a proprietária, madame Michelle, recebeu-os muito bem, uma senhora amável, que lhes propôs o que ela achava melhor nesse dia:
- Terine maison et aprés perdrix embeurrée de choux, foie gras et cèpes. (Cépes, um delicioso champignon!)
- Mas como deve ser bom! – Jean Louis já lambia os beiços – O que acha?
Madame Simone confirmou que seria ótimo.
- Du vin?
- Que tal um Bourgogne Nuits Saint George?
- Magnífico.
Conversaram, comeram o almoço que estava delicioso, depois um crème brulé, e café. Não podia ser melhor.
Sairam, deixaram o carro em frente ao Auberge e foram andar um pouco pelo campo.
Sentiam-se felizes, e como o caminho pelo campo era de piso irregular, Simone de repente tropeçou e teve que se apoiar em Jean Louis. Daí para a frente seguiram de braço dado.
Quando viram que era chegada a hora, de novo à estrada, a caminho de Paris, e volta e meia respiravam fundo! Lembrar do ar puro que haviam inalado, ou alguma espécie de nervoso pela presença um do outro?
Ao entrarem em Paris:
- Madame Simone: tenho outra surpresa! Tenho aqui bilhetes para irmos hoje ao teatro! Théâtre La Bruyère, ver “Leu jeu de l’Amour et du Hasard”, com Leonie Simaga e Alexandre Pavlov. Tem recebido ótimas críticas.
- Oh! Gostei da ideia. Mas vou ter que trocar de roupa.
Passaram em casa, Simone subiu para se arrumar, enquanto Jean Louis, discreto esperou no carro.
O teatro foi muito bom, o título da peça parecia ter sido escolhido para eles que muito gostaram,
De volta a casa, mais uma vez Jean Louis fez questão de abrir a porta do carro. Simone, saiu.
- Foi um dia maravilhoso. Não sei como lhe agradecer.
- Não tem nada a agradecer. Eu é que lhe agradeço muito a sua fantástica companhia. Foi um dia ótimo e, para mim, inesquecível.
- Também foi muito bom para mim. Muito obrigado.
- De nada. Amanhã nos veremos.
Boa noite, boa noite, Jean Louis foi embora sorrindo. Alegre.
A semana ia correndo dentro da mesma rotina, com Jean Louis sempre procurando ficar o máximo possível no restaurante. Passou até a chegar um pouco mais tarde para permitir que os restantes clientes fossem saindo primeiro.
E lá vinha madame Simone sentar-se ao lado dele.
- Não me sai da cabeça aquele nosso passeio. Temos que repetir. O que lhe parece?
- Eu também apreciei muito, e acho que qualquer dia voltaremos a dar outro passeio.
- Que tal já na próxima segunda-feira?
- Nesta não, porque na última não consegui dar um trato na minha casa, e não posso deixá-la ao abandono. Vamos deixar para a outra. Fica já combinado.
Jean Louis não via o tempo passar. Tinha que esperar uns dez dias que lhe pareceram uma eternidade, e no dia aprazado, lá estava ele, no seu Citroen a abrir a porta a madame Simone, que vinha com uma roupa mais fresca. Fim de Maio, um dia de sol, Jean Louis também só com uma camisa de verão, um boné na cabeça, enfim, dois turistas autênticos.
- Sabe uma coisa: fomos tão bem recebidos naquele Auberge que sugiro que voltemos lá para almoçar de novo. O que acha?
- Perfeito.
- Vamos é por outras estradas. O campo é sempre lindo, mas é bom variar.
Flores, monumentos, algumas villages que mereciam uma parada para serem apreciadas, e de novo no restaurante.
- Madame, aqui estamos novamente. É porque gostámos.
Madame Michelle desta vez disse-lhes:
- Nem vou dizer-lhes o que tenho para o almoço. Será surpresa. Mas se não gostarem, troca-se pelo que quiserem.
- O que lhe parece?
Madame Simone achou a idéia ótima.
- Merece vinho tinto ou branco?
- Acho que tinto.
- Então por favor traz o mesmo que bebemos da outra vez. Lembra?
- Muito bem.
Jean Louis, antes de chegar o almoço, pediu desculpa, levantou-se da mesa, disse que precisava de lavar as mãos e dirigiu-se à proprietária do Auberge, sem que madame Simone o visse.
- Tem algum quarto vago?
- Sim, porque?
- Por favor, reserve um, de preferência com uma vista bonita para o campo.
E voltou para a mesa.
Madame Simone estava com um ar também de felicidade. Ela que estivera enclausurada anos seguidos e que, mesmo as férias passava em lugar triste, perto de uma irmã. Somente aproveitava para descansar, mas não tinha distrações nem nada que a atraísse.
Jean Louis, talvez o calor do dia o estivesse a estimular, pegou na mão da sua amiga Simone. Colocou-a entre as suas, e sem dizer nada ficou a olhá-la. Ela deixou, sentiu um ligeiro rubor, mas não reagiu.
- Simone, vou deixar o “madame”. Não calha nós estarmos aqui como amigos com esta cerimónia. Por favor trate-me por Jean, ou Jean Louis, como quiser.
- Acho muito bem.
- E...
Entretanto chegava o almoço, e enquanto se serviam estiveram calados. Nem repararam bem o que tinham na frente para comer.
Olhavam-se nos olhos.
- Eu ia dizer-lhe que nós, que não somos já meninos, podemos pensar em nos juntarmos.
Simone estremeceu. Ela sabia que não tardaria a vir uma proposta assim, mas não esperava que fosse tão direta, e no momento ficou sem saber o que responder.
- Eu não vou meter-me no seu restaurante, não vou atrapalhar em nada a sua vida, mas temos muitas horas que sobram aos dois, e vivê-las em conjunto será certamente muito melhor do que cada um no seu canto, isolados.
- Jean. Não sei o que lhe dizer. Conhecemo-nos há muito tempo, temo-nos sempre respeitado, o que me leva a receber essa proposta com toda a seriedade. Mas não sei se seria bom para ambos.
- Porque?
- Não sei, e olhe o que vou dizer: essa idéia também já me passou pela cabeça, e eu tentei esquecê-la.
- Porque esquecê-la? É uma proposta que não deve estranhar. Já de há muito tempo que olho para si com olhos diferentes. Procuro ficar no restaurante o máximo de tempo possível, porque no fundo a sua companhia me faz bem, e eu sinto muito a sua falta logo que nos afastamos.
- Vamos comendo isto que está com ótimo aspeto.
Jean Louis nem apreciou o que comeu. Engoliu. Estava preso no que Simone lhe poderia dizer.
- Simone, eu não deveria dizer que a amo, porque poderia soar um tanto infantil, mas a verdade é que a desejo muito. Você é ainda uma mulher atraente, cheia de vida. Porque desperdiçá-la sozinha?
- Jean, está a deixar-me confusa, sem saber o que lhe dizer.
Acabaram o almoço. Jean Louis estava disposto a jogar todas as cartas.
- Simone, prometa que não se zanga comigo, com o que lhe vou dizer, e propor.
- O que é?
- Pedi á senhora para reservar um quarto para nós. Vamos lá acima. Não faremos nada que não queira, mas conversaremos mais sobre tudo isto. Sabe que eu seria incapaz de ir contra a sua vontade. Tenho-lhe muito respeito e não queria que jamais pensasse mal de mim.
Simone estava, aparentemente, sem resposta. Mas no fundo sabia que também essa proposta um dia chegaria. As mulheres têm um sentido mais profundo do que os homens!
- Está bem. Vamos lá conversar sobre as nossas vidas.
Jean Louis vibrava e o seu coração batia mais forte. Quarto número 4, à direita.
Abriu a porta, fez com que Simone entrasse e voltou a fechar com a chave. O quarto tinha uma bela janela com uma magnífica vista para o campo. Simone aproximou-se, olhou e disse “que beleza”.
Jean que veio por detrás passou-lhe carinhosamente os braços pela cintura. Simone teve a melhor reação que Jean podia esperar: aconchegou-se. E assim ficaram uns quantos momentos, sem falar.
Então Jean virou-a para ele.
- Simone já senti a sua resposta. Estou no céu. – E abraçou-a com mais calor.
Ela, de entrada meio inerte, não tardou a passar os braços em volta dele também, e o inevitáel, aliás o esperado, aconteceu. Um beijo, e muito silêncio.
Jean, como sempre delicado, e receoso com uma possível reação negativa, aponta para a cama.
Simone, também devagar, senta-se nela. Voltam a abraçar-se, e já começam a querer tirar a roupa.
Jean diz-lhe:
- Simone, use a salle de bains para se pôr à vontade.
Ele despiu-se, deitou-se dentro dos lençois e ficou, com o coração a bater, à espera que a porta da salle de bains se voltasse a abrir. Não tardou. Simone sai enrolada num lençol de banho, cabeça baixa, com vergonha de cruzar o olhar com o parceiro, e correu para dentro da cama.
Abraçaram-se, acarinharam-se, ferviam beijos, mon amour, até que chegou o momento inadiável. Jean estava preparado, Simone entregou-se.
Duram sempre pouco, estes momentos, mas deixaram os dois em sublime felicidade. Olhavam-se e riam. Parece que, realmente se amavam. O amor não escolhe idades.
- Jean, isto é tudo muito louco! Mas a verdade é que há muito tempo eu sonhava com um encontro destes. Não com um homem qualquer. Você foi maravilhoso, e eu acho que estou pronta para aceitar a proposta que me fez ao almoço. Hoje vamos aproveitar estes momentos, sem falar mais nisso. Eu estou muito feliz.
- Simone, mon amour, eu também não tenho palavras, mas agora então é que não a quero perder. Amanhã começaremos a discutir os detalhes da nossa união, se bem que não haja grande coisa para discutir! Há muito que eu também sonhava com este encontro, e estou até com dificuldade em realizar que tenha acontecido.
Deixaram-se ficar deitados, abraçados mais um bom tempo, até que chegou a hora do regresso.
À saida, Jean Louis disse à proprietária:
- Madame, vamos voltar em breve para a nossa lua de mel, e queremos o mesmo quarto!

05/03/2014





quarta-feira, 15 de novembro de 2017


Meio século

Vida nova!
Acabados os estudos de engenharia, emprego garantido, a força da juventude a garantir a saúde e a boa disposição, e um trabalho de responsabilidade para enfrentar os clientes e propor-lhes as soluções técnicas mais indicadas para cada caso.
Com vinte cinco anos, Pedro, estava a pensar casar com a garota que conhecia, e se amavam, há já cerca de sete anos.
A empresa, com cerca de cinquenta funcionários, reservara-lhe uma pequena sala, com uma segunda mesa ao lado, para uma secretária, quando necessária, ali datilografar propostas, relatórios, o que fosse.
Manuela tinha um corpo lindo! O esqueleto recoberto com carnes suficientes, uma cintura fina, um peito maravilhoso, e uma cara arredondada, sempre com as faces rosadas, e uns olhos claros, meio de gata. Uma beleza. Simpática, descontraída, alegre, eficiente, os seus vinte e um anos não pareciam habilitá-la a que fosse tão responsável.
Quando circulava entre os colegas, todos os olhos a seguiam, ávidos. Ela percebia, olhava para eles e sorria.
Pedro disfarçava os seus olhares, comprometido com o seu casamento, e mais, sabendo que onde se ganha o pão... tinha que respeitar a colega, e não se arriscar a pôr tudo a perder: o trabalho e a noiva.
Nunca alguém viu Manuela dar “troco” a qualquer colega. A todos tratava muito bem, sempre sorrindo, sempre agradável, deixando os homens babando e as colegas roendo-se de inveja!
Quando saía, no fim do expediente, o povo nas ruas abria alas para ela passar. E lá seguia Manuela, sorridente, sem se querer exibir, mas sem poder esconder a sua beleza.
Pedro um dia perguntou-lhe:
- Onde estão arquivados os projetos do ano passado?
- Estão no arquivo. Eu vou buscar. Não se incomode.
O arquivo era num pequeno quarto, um cubículo interior, estreito, escuro, com prateleiras nos dois lados da parede, até ao teto. Para acessar a todos os “andares” tinha uma escada que encostava nas prateleiras.
- Onde estão que eu pego? – diz Pedro
- Não. Eu é que os arquivei e sei onde estão. Vou pegar.
Na última prateleira. Manuela subiu os degraus necessários e a sua saia passou um pouco acima dos olhos de Pedro. O espetáculo fê-lo estremecer! Prendeu a respiração. As pernas, lindas, da Manuela, torneadas como nenhum artista seria capaz de copiar, ali, sobre o seu nariz, deixando ver até... Vidrado, sem se mexer, e sem saber o que fazer, aguardou o fim da procura.
- Pronto aqui está o que pediu. – e passou-lhe o arquivo.
Para descer, Pedro fez questão de a ajudar, e ela deixou-se deslizar encostada ao peito dele, que arfava. Quando pousou os pés no chão as caras deles ficaram bem de frente, olhos nos olhos, ela aguardando a evolução do inesperado (?) encontro, ele, com ela nos braços, sem saber como sair da situação.
Não resistiu. Aquilo era demais. Aproximou mais a cara e beijou-a; com toda a força e vontade.
Manuela devia estar à espera de algo como isso e em vez de se desenvencilhar correspondeu com ardor.
Logo depois saíu do cubículo, as faces sempre rosadas, como se nada tivesse acontecido, e Pedro, aflito, teve que se esgueirar para o banheiro para poder recompor a respiração e pensar nos passos que deveria dar a seguir.
Voltou para a sua mesa, e Manuela aguardava instruções de trabalho. Ele não queria levantar os olhos e ter que a encarar. Mas o seu coração batia forte. Tinha sido um momento demasiado arrasador.
- Se o senhor engenheiro agora não tem nada para eu fazer, volto lá para o escritório.
- Muito bem, mas por favor, um pouco antes de sair passe por aqui que eu vou deixar preparado o trabalho para começar logo de manhã.
Não conseguia preparar nada. A sua cabeça rodava em alta frequência, e nem sabia com que cara iria encarar a noiva.
Passou pouco tempo...
- Senhor engenheiro, está quase na hora de eu sair. Quer fazer o favor de me passar o serviço.
Pedro, abstrato, quase deu um salto na cadeira.
- Por favor, Manuela, sente aí um pouco. Quero pedir-lhe desculpa pelo que se passou. Você sabe que é muito bonita e eu não tinha o direito de fazer o que fiz.
Manuela segura da situação:
- Creio que aqui não é lugar para discutirmos isso. Conhece a pastelaria que tem na segunda rua à direita, quando se sai daqui? Eu vou andando e espero lá por si.
Piorou a situação. Indeciso, mas atraído para o abismo, sabia que era impossível resistir a uma mulher como aquela. O que fazer? Também não podia fugir. Tinha que enfrentar, e, antes disso escolher bem o que pretendia da vida. Mas quem é capaz de decidir algo com o coração a bater daquele jeito? Como um autómato caminhou para a pastelaria.
No canto mais resguardado e escuro Manuela o aguardava.
- Sabe, senhor engenheiro, que eu há muito esperava ser agarrada por si e poder beijá-lo? Não são só os homens que têm atração pelas mulheres. O recíproco é verdadeiro.
- Manuela! Sabe que eu vou casar, e sabe que você é maravilhosa e ninguém lhe resiste. Sinto-me perdido. Gosto muito de si, acho-a uma colega linda, eficiente, e mais do que atraente. Mas...
- Não tem mas! Porque não nos amarmos um tempo? O seu casamento, pelo que disse ainda vai demorar. E eu também sinto muita atração por si.
- Meu Deus! O que vamos então fazer?
- Na rua de cima tem um pequeno hotel. Eu sei porque é no meu caminho de casa. Vamos até lá, porque aqui não podemos conversar à vontade. Tem sempre gente passando. Saia primeiro. Daqui a uns quinze minutos vou lá ter. Diga qualquer coisa na entrada, para que me deixem subir. Dê o nome de, por exemplo, Fernanda.
O hotel simples, mas limpo e arrumado. Pedro pediu um quarto, para descansar umas horas, porque tinha que voltar para o Porto no combóio da noite.
- Ah! É verdade. A minha mulher deve vir aqui ter daqui a pouco. Por favor indique-lhe o quarto e diga-lhe que suba. Chama-se Fernanda.
No quarto Pedro não sabia se continha a respiração, se respirava fundo, nem sabia já se estava com febre! Todo ele era uma pilha de nervos.
Não tardou que Manuela chegasse. Parecia cada vez mais bonita e descontraída.
Pedro não lhe deu tempo a que dissesse alguma coisa, agarrou-a, beijou-a até ficarem os dois sem fôlego. A conversa interessava pouco. O tempo era um quase nada para estarem juntos. Num instante se despiram, ela mostrando um corpo ainda mais bonito do que vestida poderia parecer, ele, com os seus vinte e poucos anos, pronto para os “finalmentes”.
Agarraram-se, beijaram-se, rolaram. Ambos sentiam-se para além do éter!
Manuela não o largava também. Não era primeira vez que estava com um homem, mas a primeira trazia-lhe péssimas, horríveis, lembranças. Com treze anos tinha sido violentada por um tio. Sem darem queixa, porque isso traria consequências para toda a família e sobretudo para a garota, obrigaram o tio e ir embora para longe. Mandaram-no para Moçambique e, em boa hora, nunca mais tiveram notícias dele.
Manuela sabia que as relações com um homem que ela amasse não podiam deixar-lhe nenhum trauma. Ela via os pais se amarem na cama, e sabia que era bom, porque no fim sempre se beijavam. E agora, com vinte anos, e muita conversa com amigas, o seu passado estava esquecido. Quase.
Não se percebia quem estava com mais prazer neste encontro. Os dois pareciam loucos de amor e desejo.
Para ela, Pedro era um jovem, bonito, forte, educado e, quando trabalhava a seu lado, sempre a respeitara. Não era como os outros colegas que não desgrudavam os olhos dela, olhos ávidos de fêmea, que a incomodavam. Olhos que lhe lembravam o tio. Um horror. Ela sorria para todos. Era a arma que usava para os acalmar. Pedro comportava-se como uma pessoa respeitável. Mas, como ela, era jovem.
Do mesmo modo Pedro, se bem que o seu coração sempre aumentasse um pouco o ritmo quando a via, procurava disfarçar e tratá-la com o maior respeito, o que a atraía ainda mais.
Aquele encontro no cubículo do arquivo, tirou a máscara aos dois! E agora ali estavam a amar-se, sempre com medo que o encontro chegasse ao fim, porque, como estava, devia durar eternamente.
- Manuela: não sei o que lhe dizer, mas eu estou no céu e no inferno ao mesmo tempo!
- Por enquanto guarde só o céu. Ainda temos mais uma hora. Depois falaremos sobre o infer...
O dia começava a escurecer. Eram mais do que horas para que ambos voltassem a suas casas.
- E agora? O que fazemos?
- Não sei. Amanhã falaremos nisso. Entretanto vamos pensar em alguma coisa.
Sairam juntos, na esquina do quarteirão, sem ninguém a passar, um último e apaixonado beijo. Depois cada um seguiu para seu lado.
Pedro, autômato, repetia para si: “Entretanto vamos pensar em alguma coisa.” Estava incapaz de pensar no que quer que fosse, e num terrível pânico, pânico, de ter que enfrentar a noiva. Ele sabia que a amava, que era a mulher da vida dele, mas Manuela obcecara-lhe todos os pensamentos. Parecia hipnotizado. Dominado por aquela flor linda, mais que apetecível, que não o deixava pensar em outra coisa.
Dormiu mal. No dia seguinte, no trabalho mal levantava a cara para falar com qualquer colega, com medo que lhe adivinhassem o pensamento. Nervoso, não conseguia concentrar-se, nem terminar o projeto que deveria passar a Manuela para datilografar.
Quando ela entrou, nem levantou os olhos.
- Daqui a pouco eu já a chamo para lhe entregar o trabalho.
E demorou para chamar. Sabia que o projeto não estava bem preparado, mas não podia disfarçar mais. Depois, quando estivese mais tranquilo o refaria.
No fim do dia, Manuela foi despedir-se dele.
- Boa noite, senhor engenheiro. E baixinho: - vou esperar no hotel.
Pedro sofria, não podia libertar-se, estava com um encantamento de que queria e não queria fugir. Era uma maldição maravilhosa, mas antevia um final dramático, difícil e que poderia destruir a sua vida, os seus planos.
Mas o apelo era mais forte. Procurou ver se não era seguido, passou na portaria e o recepcionista, sabido do encontro, malandro, ainda se atreveu a perguntar:
- É até à hora de ir para o Porto? – E fez um sorriso de gozo, que Pedro disfarçou.
Assim que entrou no quarto já se agarraram os dois. Dois amantes loucos, imparáveis, insaciáveis, com uma paixão que normalmente leva a um fim trágico.
Não falavam. Amavam-se, amavam-se com uma fúria imensa, cada um temendo ou adivinhando que um dia perderia o outro.
- Pedro eu acho que também estou louca, com medo de te perder. E sei que isso vai acontecer. O teu casamento é a tua vida, e tens que a seguir. Mas até lá quero estar contigo todos os momentos que puder.
- Manuela, de fato o que se passa conosco é uma paixão violenta, e não acredito que qualquer de nós tenha força para a interromper. Eu, pelo menos, não sei como largar-te. Até no escritório o meu rendimento caíu quase a zero. Não consigo concentrar-me. Só penso em ti, e como é bom estarmos juntos. Uma loucura.
- Vou-te contar o meu segredo. Há um vizinho meu, um jovem que está bem de vida, simpático, educado, e que não larga a minha porta. Já falou com os meus pais, e quer, porque quer, casar comigo. Eu disse-lhe que não tenho pressa nenhuma em casar, mas que iria pensar nisso. Mas eu pensava que haveria de aparecer uma oportunidade para estar contigo antes que lhe desse o meu sim. E agora, não posso dá-lo tão depressa.
- Mas depois de casada eu não quero estar mais contigo. Seria infâmia da minha parte.
- Nem eu. Por isso tenho vindo a adiar. Vamos deixar passar mais uns dias e ver se consumimos um pouco do fogo que temos dentro.
- No que eu não acredito!
E voltaram a amar-se. Muito. Os beijos mal os deixavam respirar, sempre profundamente abraçados.
Uma semana passada todos os dias no hotel “à espera do combóio da noite!”
Perto do fim de semana o chefe da empresa chama Pedro e diz-lhe que ele tem que ir à Escócia, possivelmente ficar lá uns oito dias, porque a fábrica de uns equipamentos que representavam estava a desenvolver uma máquina nova e queriam saber se ela se adaptaria às condições de outro país. Ainda estariam a tempo de fazerem alguma alteração. “Prepara tudo que seguirás no voo de domingo.”
Pedro neste tempo só via a noiva a correr. O hotel absorvia-lhe quase todas as horas vagas. Disse-lhe que tem andado a estudar um projeto, e agora, por milagre, parecia que tudo se encaixava, uma vez que tinha que ir ajudar a desenvolver um equipamento novo. Na Escócia.
Nessa tarde, sexta-feira, no hotel, entre beijos e tudo o mais, Pedro diz a Manuela que vai ficar, pelo menos oito dias fora. Na Escócia. Ordens do patrão.
- Manuela, este vai ser o nosso último encontro. Diz ao teu vizinho que aceitas a proposta de casamento. É uma oportunidade para nos separarmos, se bem que aqui dentro do meu coração e pensamento, tu jamais vais sair, porque no fundo eu te amo enormemente.
- Pedro! Que horror! Porque o último encontro? Eu espero o teu regresso, meu amor.
- Não Manuela. Eu só quero o teu bem, e não poderíamos continuar esta vida eternamente. Casa, procura ser muito feliz, eu sei que não consigo esquecer-te, mas Deus me livre de ser causa da tua infelicidade.
Voltaram a amar-se e viam-se nos rostos de ambos umas lágrimas que apareciam.
Quando voltou da Escócia, Pedro soube que a Manuela tinha pedido dispensa e saira da empresa. Ia casar dentro de poucos dias. Deixara um bilhete, igual ao que dera aos colegas com quem mais simpatizava: “Não falte ao meu casamento!”
Pedro não sabia se respirar aliviado ou correr a casa dela para um “outro” último encontro. Mas também vinha da Escócia com uma proposta irrecusável: tinham-lhe oferecido um cargo importante na representação da fábrica no Canadá.
Posto o problema ao patrão, já ao corrente, porque o presidente da fábrica em Kilmarnock, antes de lhe fazer a proposta lhe, e é evidente que ele concordara. Era o futuro do jovem que estava em jogo.
Dentro de um mês casaria e seguiria para o Canadá, onde começou também a sua nova lua de mel. Maravilhosa, a mulher era uma jovem também muito bonita e que o amava, mas havia um gosto de mistura entre ela e a inesquecível Manuela, que ele não vira mais, mas que nunca lhe saíu da cabeça.
Tinha sido uma paixão de tal violência que deixou cicatrizes profundas. E gratas.

Cinquenta e alguns anos passaram.
Pedro, devagar, desce a avenida onde ficava, e onde ainda estava, a empresa onde trabalhou. Há tanto tempo! Distraidamente olha para a entrada do prédio, já renovada, novas vitrines com máquinas modernas lá dentro, quando de repente choca com uma senhora que vinha em sentido contrário e que também não reparara nele. A senhora, já de idade, quase cai, Pedro consegue segurá-la, pede-lhe mil desculpas.
- A senhora está bem? Machucou-se? Quer sentar-se em algum lugar?
- Não se preocupe, estou bem, sim, nada me aconteceu, além do susto.
E olharam na cara um do outro. Alguma coisa havia atrás daqueles rostos envelhecidos, mas.... o que?
- Olhe minha senhora, eu vinha distraído e não reparei. Peço-lhe imensa desculpa.
- Ora, não foi nada.
- E sabe porque? Eu trabalhei aqui dentro há mais de cinquenta anos. E uma saudade forte bateu.
- Ah! Sabe que eu também aí trabalhei?
- Como é possível? Não diga que trabalhámos juntos. Era o que faltava. Como é o seu nome?
- Manuela.
Pedro sentiu-se mal. Uma tontura e uma forte batida no coração. Teve que entrar na loja e pedir para se sentar. A senhora, assustada segui-o.
- Por favor alguém pode dar um copo de água a este senhor? O senhor sente-se bem?
Pedro mal conseguia falar, mas pouco mais do que balbuciou:
- Manuela! Eu sou o Pedro!
Desta vez a senhora pediu outro copo de água e mais uma cadeira. Sentou-se a seu lado, pegou nas mãos de Pedro e começou a chorar. Choraram os dois. E o pessoal da loja não sabia como acudir àqueles dois simpáticos velhotes, que assim ficaram um bom tempo.
Quando se levantaram:
- Ainda existe aquela pastelaria?
- Creio que sim.
- Vamos lá?
Seguiram, rua fora, de mão dada, limpando um resto de lágrimas, e sorrindo um para o outro. E de mãos dadas ficaram a conversar na pastelaria.
- Porque não vamos para o hotel?
- Pedro?!
- Eu estou num hotel muito mais confortável do que este daqui!
- E onde moras?
- No Canadá, em Toronto. Desde que para lá fui só tenho vindo aqui de tempos a tempos, por alguns dias de férias. E sempre passo em frente à loja a pensar em ti!
- E tu? Eu moro num lugar, fora da cidade, perto da praia. Uma casa pequena, mas que é o meu ninho. Não tive filhos e agora que também já não trabalho, distraio-me passeando. E venho muita vez aqui em frente do nosso antigo trabalho e fico a pensar...
- Deve ser uma beleza onde moras.
- É sim. Mas vivo sózinha.
- Enviuvaste?
- O meu primeiro casamento não deu certo; ele era demasiado ciumento, como se fosse culpa minha ser bonita! Nunca o atraiçoei, mas o ciúme era doentio e resolvemos nos separar. Dois anos depois casei outra vez e aconteceu o mesmo. Durou só mais dois anos. Depois, desisti. E queres crer? Só pensava em ti!
- Pois eu, mudei três vezes de cidade, no Canadá, até ser presidente da empresa e mudar-me para Toronto, onde me aposentei e tenho casa. A minha mulher, com quem sempre me dei muito bem, morreu há cinco anos, mas... nunca, nunca, da minha memória e do meu coração saíu a doce Manuela. Tenho três filhos e cinco netos, todos espalhados pelo Canadá. É raro reunir a família, e o que faço é também passear, tenho vindo algumas vezes por estes lados, sempre com a idéia maluca de te poder voltar a encontrar! E eis que a maluquice... aconteceu.
Acarinham-se as mãos e sorriem, mas nos olhos notava-se um pouco da tristeza de tantos anos passados.
- Não podemos perder mais tempo. Vamo-nos casar! Já.
- Pedro, ficaste maluco?
- Não. Estou perfeitamente consciente, e não vejo razão para não aceitares este pedido, formal..., que acabo de te fazer. E já tenho até planos para a nossa vida: no verão ficamos em Toronto, e o inverno passamos para a tua casa, porque lá no Canadá o frio é horrível! Magnífico plano.
Manuela olhava-o sem dizer uma palavra. Sorria.
- Onde tem uma Conservatória de Registo Civil mais próxima?
- Pedro! Tanta pressa! Não temos que dar satisfações a ninguém.
- Meu amor, não temos nem mais um segundo a perder.
Enquanto a documentação dos noivos não ficava pronta, e ninguém sabe se alguma vez foi utilizada, Pedro mudou-se para casa da Manuela.
E estavam felizes. Como os jovens que se encontravam “à espera do combóio para o Porto”!

06/03/2014