domingo, 27 de agosto de 2017




O Melhor: dormir bem! - 2 –


Em “Dormir bem! - 1 -“ não arranquei da memória, muitas, muitas, outras “dormidas”, algumas com quase 70 anos passados que continuam bem “acordadas” na minha cabeça, e que acho graça compartilhar. Vou tentar lembrá-las por ordem cronológica. Comecemos por
1950. Numa excursão para rapazes organizada pela Acção Católica em Portugal, navio Mouzinho (já um “velhinho” com mais de 30 anos) fretado, aí vão a caminho de Roma umas largas centenas de jovens, para celebrar o Anno Santo! Já escrevi sobre isto mas vão mais uns detalhes.
Os mais afortunados nas cabines de 1ª ou 2ª classe, e os “proletários” nos porões transformados em casernas, com dezenas ou centenas de camas – beliches – onde, como é se supor a farra era constante. Mas com o embalar do Mediterrâneo, e com a juventude, todo o mundo dormia como os anjos... e com eles.
Em Roma algo de “separação de classe” também se passou e nós, os “proletários, ficámos alojados em colégios de freiras (atenção: as alunas estavam nas férias de verão) onde, além de maravilhosa comida que as santas freirinhas nos preparavam - normalmente a deliciosa pasta romana com qualquer coisa, que comíamos como esfaimados, também tinham as camaratas primorosamente arrumadas. Coisa que, se tivéssemos ficado em colégios de padres.... Enfim, foi uma delícia.
Misturando um pouco a intenção cronológica, aproveito para falar de outras navegações. Em 1954 a caminho de Angola, no “Moçambique”, os dois primeiros dias foram passados com um semi-enjoo miserável. Depois, de repente, estava em forma e o resto da viagem foi magnífica, até pousar os pés em Angola em 1o de Agosto de 1954.
Pior foi, em 1961, a travessia da Inglaterra para a Dinamarca! Apanhámos um daqueles infames temporais do mar do Norte, e o navio levou bordoada da boa. A nossa cabine – ia com a minha mulher – era um cubículo mínimo, com um beliche. Ela, apavorada com os imensos balanços do navio, de proa à ré e de bombordo a estibordo (em pindorama é boreste), nem se deitou; ficou sentada na borda da cama a noite toda, o que me valeu não ter caído várias vezes porque rolava na cama e chocava com ela! Felizmente a viagem demorou só 18 horas.
Em 1952 era eu um valeroso defensor da pátria, cumprindo o meu dever militarmente em Belém, Regimento de Cavalaria 7, hoje extinto. Por somente duas ou três vezes fiquei de serviço ao Regimento, uma espécie de big-chefe sem quase ninguém a quem comandar!
À noite levavam-me o jantar, que dava para comer e manter o físico em ordem, o calor de verão a apertar, o único lugar agradável era por cima da sala de refeições... no telhado. Vista magnífica para o Tejo, uma aragem feita de propósito para amenizar a dura vida daquela “guerra”, os soldados de serviço recolhidos sempre fingiam que nada havia de anormal... e ali dormi algumas horas!
Em 1955, por Angola, e por muito lugar. Fui um dia visitar um fazendeiro que queria comprar um trator. Nova Sintra, sempre Catabola, e hoje com este nome oficial, o agricultor tinha comprado barato em leilão, uma fazenda abandonada há muitos anos por uns ingleses. Casa espaçosa, antiga, paredes de adobe de 70 ou 80 cm. de espessura, necessitada de boa restauração, inclusive janelas que não tinha. Num quarto grande duas camas com mosquiteiros, uns bons cobertores, mais de 1.500 metros de altitude. Adormecer foi fácil, mas a partir de certa altura o zunido dos mosquitos era tanto que não consegui mais dormir. Quando o dia clareou e entrou luz no quarto, o teto não se via! O maldito mosquiteiro era um pouco curto ou estava mal colocado e por aí entraram uns trilhões de mosquitos!
E como dormir com a cabeça por baixo dos cobertores não é muito confortável, foi um sufoco danado.
De Benguela para lá tinha ido no combóio, e nele regressei. Mas falar nos combóios da Companhia de Benguela... pode parecer mentira, mas eram uma delícia!
Cabine individual, com cama, lençóis impecáveis, saía de Benguela, com muito calor e logo que começa a subida para o planalto o tempo começa a refrescar e virava uma delícia! Jantar no vagão restaurante e, a seguir, cama. Subia em altitude e subiam os cobertores para cima. Chegada a Nova Lisboa ou a Catabola, depois dum belo mata-bicho, e ali éramos recebidos pelo clima magnífico de altitude.
O regresso a casa passava-se de modo inverso. Deitar bem acobertado e logo que se descia a serra, começava a retirada dos agasalhos, para, por fim, chegar cheio de calor.
Não esqueço um dia, a caminho do interior, antes do jantar li um jornal e também o idiota horóscopo que me dizia “não esqueça o seu dentista”! Não esqueci. No meio do jantar quebrei um dente! O jantar era ótimo, um bom tinto a acompanhar, mas o dente é foi-se!
Por dentro, sobretudo de Angola, andei por todo o lado, de carro, combóio e avião.
E lá vou mais uma vez naquele horrível Renault, nas horríveis estradas. Fez-se noite, encontrei um grupo de angolanos caminhando na estrada, dois casais com duas crianças pequenas, e decidi dar-lhes carona. Como o carro era um furgão, entraram todos para trás e lá se ajeitaram.
Tarde, o sono a implicar comigo e eu a tentar vencê-lo. Dei uma cochilada, o carro saiu fora da estrada, por sorte passou entre duas árvores, deu um pequeno salto na vala lateral e parou. Aviso aos passageiros: “Vou dormir um pouco. Façam o mesmo”! Meia hora depois, refeito, pronto para prosseguir, o carro, com uma roda metida na vala, derrapava e de lá não saía. Saíram os passageiros, deram um puxãozinho e em menos de um minuto estava o carro na estrada e todos a caminho de onde é que já não lembro!
Mas nem sempre foram dormidas assim tão incómodas.
Nas visitas de trabalho que andei a fazer na Europa em 1961, começámos (minha mulher e eu) por ficar numa pensãozeca em Versailles, porque ali perto estive dois meses a estudar, e o Centre d’Etudes ficava a uns escassos centos de metros. Pension Regina, parecia do século XVI, muito barata, o banheiro no andar de baixo, que se acessava por uma escada externa (!!!), mas assim mesmo confortável e com ótima comida. Uma pensão “de famille”, de velhinhos! Um dia, para ler já não sei que problema que se passava em França comprei o jornal Le Monde. Quando a dona da pensão me viu a ler um jornal comunista ficou aterrada! Tive que lhe explicar que era profundamente anticomunista e que nem sabia que o jornal era vermelão. Estava simplesmente a ler uma notícia. Creio que ficou mais tranquila mas foi dizendo que não queria comunistas na sua pensão!
Estávamos perto de Paris e muitas vezes ali íamos à noite ao teatro ou ópera, ou até para estar com alguns amigos que lá conhecemos. Decidimos mudar para a capital, um hotel ao lado da Gare de Saint Lazare, de onde saía o train que me levava em poucos minutos para Versailles. Hotel ótimo, o nosso quarto tinha um banheiro que dava para fazer uma academia, e na altura hospedava também uns quantos pilotos da Força Aérea Portuguesa, em estágios, que, por diversas vezes os vi “voando” baixinho com uma francesa para o quarto onde certamente treinavam aterragens e decolagens!
Quando comecei a correr por outras cidades de França, uma tarde decidimos ficar fora de Paris, em Saint-German-en-Laye, e nada mais simpático nos apareceu do que o Pavillon Henri IV, um “chiqué” sensacional. Não esqueço as almofadas! Gordas, fofinhas, quando me deitei e a cabeça desceu por cima daquela delícia e se enterrou, deixei de ver para os lados. Cheguei a perguntar se a minha mulher ainda estava ali a meu lado! E de manhã um mata-bicho real!
Já não sei quanto custou. Mas não lamentámos!
E sem lápis espetado nas costas!

Olhem o "chiqué" ! 

Na Cuca, avião alugado, um monomotor, visita ao Chinguar na margem do rio Cuito, fronteira com a Namíbia. Lá pró fim do mundo, no Sul! Quando aterrámos, meio da tarde, a temperatura estaria em 42° C ! Só eu e o piloto, aguardámos na pista que alguém da povoação nos viesse buscar, encolhidos debaixo da asa porque o calor e sol nos queimavam. A ideia era ir ver como se negociava a cerveja trans-fronteiriçamente (!) onde, apesar de haver um funcionário da fazenda, as mercadorias passavam de um lado para o outro conforme as necessidades dos de cá e dos de lá, sem taxas nem burocracias.
Fez-se noite, e ali não havia hotel ou pensão, mas um dos comerciantes tinha em construção uma casa perto da pista, naquela altura ainda só paredes e telhado. Portas e janelas, nada. Lá se arranjaram duas camas, cada uma num quarto, e bons cobertores porque naquela região semidesértica de altitude – uns 1.200 metros - a temperatura de noite cai muitas vezes abaixo de zero.  Como seria de esperar despi-me, tirei botas e meias, que coloquei aos pés da cama, e dormi como um justo!  Sem frio.
De manhã, cara lavada, vá de me vestir, mas não conseguia encontrar uma das meias! Como a casa não tinha portas vislumbro lá fora, a poucos metros, uma cabra se deliciando a comer a minha meia!
Segui viagem só com uma!
Aí por 1958, o meu grande amigo – grande em todos os sentidos por devia medir uns 2 metros – a simpatia em pessoa, de visita a Angola, pensou em comprar uma pequena fazenda de café! Conseguimos saber que lá para os Dembos havia um indivíduo que se enquadrava nos seus projetos. E aí vamos nós, estrada de lama, ao encontro do preposto vendedor. Um mestiço, fala barato, bem disposto, tinha alguma coisinha, bem pequena, mal definida, julgo, hoje, que sem documentação conveniente, e uma casinha de madeira a cair de podre! Pois foi nessa casinha, com uma única cama que o «proprietário» nos cedeu para passarmos a noite! Cama horrível, encostada à parede, estreita para dois homens, um com 2 metros, o Xico Manolete (Francisco de Andrade e Sousa) preposto comprador mandou-me entrar para o lado da parede, pudicamente colocou a almofada entre os dois, deitou-se e ficou com os pés de fora. Como se pode imaginar foi uma noite ótima, até porque estava frio, as paredes tinham frechas por todos os lados e até no teto. Acordamos cedo, não houve negócio e o melhor foi chegar a casa e tomar um belo banho!


Da direita para a esquerda : Xico Manolete, o ‘’ dono’’ do terreno, o vendedor fala-barato e o guia que nos levou até lá

Só mais duas historinhas para não enjoar os leitores.
Já imaginaram o que é passar uma noite, chuva torrencial, quatro caçadores sentados dentro de um jeep só com uma capota de lona e sem nada nas laterais? Molhados até ao tutano, tiritando de frio, dor no lombo e de caimbras, o jeep atolado na lama esperando uma ponta de luz para estudar a situação e sair dali. Não caçámos nada, além duma imensa estafa! Mas recorda-se, sempre, com saudade.
Em 1975 aí estamos nós já refugiados no Rio de Janeiro, sem trabalho, a pouca grana a acabar, um sufoco para tentar arranjar trabalho, as famílias em Portugal, o Zé Perestrello, meu querido Pestrelão, miraculosamente conseguiu de uma tia a cedência dum pequeno apartamento, de um quarto com duas camas, mini sala e super mini cozinha. ÓTIMO. E eu fui um dos que usufruiu, uma vez mais, dessa amizade, porque dinheiro para hotel... já era.
Eu fazia o jantar, o Zé não deixava ninguém lavar a louça – ele era impecável – depois tomava o seu duche, vestia um lindo roupão de seda, sem nada mais por baixo e estendia-se no sofá para ver a grande novela Gabriela. Adormecia em poucos minutos! Entretanto o roupão, de seda, ia escorrregando para os lados abria-se todo e o Zézão roncava com os pudendos todos ao léu ! Um espetáculo digno do Olimpo! Quando soavam os dois trrim-trrim da Globo indicando o intervalo, ele acordava, olhos semicerrados e dizia-me : ‘‘Vou dormir ; amanhã contas-me o resto da novela’’. Nunca contei nada. Nem tempo houve para isso!
Vou ficar por aqui com as ‘‘dormidas’’.
Contradizendo Manuel Bandeira :

Não quero ir pra Pasárgada,
Lá nem conheço o rei.
Tenho a mulher que escolhi
E uma cama que comprei.

27/08/2017



terça-feira, 22 de agosto de 2017


O Melhor: dormir bem! -1 -

Como imaginam, ao longo desta já longa vida, tenho dormido nos mais inusitados lugares. Quando não era rico dormi algumas vezes num dos mais caros hotéis da Europa, como o fabuloso Hostal de los Reyes Catolicos em Santiago de Compostela, dormida que hoje não conseguiria repetir – pai, mãe e duas crianças pequenas, 1957 – porque as finanças... se esgotaram com o tempo, e o maravilhoso e tão saudoso Grande Hotel da Huila, Sá da Bandeira, de que já falei algumas vezes e que sempre considerei o melhor hotel do mundo. Nem as torres majestosas e de insolência financeira, das “noites das arábias”, lá nos reinos do pitróil lhes chegam perto.

O Grande Hotel da Huila, restaurado

Estes dois são os que guardo de tempos em que a vida parecia que era mais simples. Parecia... e era!
Lá por Angola lembro outra noite de “grande luxo”! Regressava a casa, em Benguela e era já noite. Tarde da noite. Cansado, estrada velha, estreita, esburacada, o inconfortável Renault de molas (?) de concreto, ainda uns 150 quilômetros a percorrer, decidi parar, creio que no Chongoroi, na altura uma povoação com uns... 20 habitantes e uma casa comercial que, amavelmente dispunha de um quarto para quem necessitasse pernoitar. Eu quis.
O “luxo” do quarto era uma modesta cama, com um daqueles colchões de palha de milho, onde sobram, talvez para recordação, alguns simpáticos e petrificados carolos (!), uma cadeira, uma bacia e um jarro de água, e a roupa da cama que não devia ser mudada desde há alguns anos! Mas eu estava estafado. Não me atrevi a despir-me, possivelmente como todos os anteriores “hóspedes” terão feito, cobri a fronha da almofada, onde o branco original já estava a aproximar-se do negro do luto, envolvi-a com o meu casaco, cobri-me com o cobertor, porque ali, à noite faz frio – são quase 800 metros de altitude – e adormeci.
Quando acordei, já dia, uma dor nas costas como se tivesse sido mordido. Não era mordida. Um dos anteriores dorminhocos “esqueceu” um lápis dentro da cama que acabou espetado nas minhas costas!

Mas quando se era obrigado a ficar nesses cinquenta estrelas, a razão era ditada pelo cansaço que não permitia andar mais sem risco de adormecer ao volante. Era o que havia!
Mais estrelas ainda tinha outro hotel. Dessa vez, talvez final de 1954, minha mulher fazendo “turismo” a acompanhar o marido trabalhador (!). Saída de Kuito, Antigo Silva Porto, a caminho de Serpa Pinto, hoje Menongue. Uns trezentos e tantos quilômetros naquelas auto-estradas... Fez-se noite, tomámos contato com um animal que nunca havíamos visto, um Cuio ou Lebre Saltadora (Pedestes capensis). Não chega ao dobro do tamanho de uma lebre e lembra um canguru pequeno com membros anteriores muito desenvolvidos, sobre os quais se desloca saltando, e os posteriores muito pequenos de tamanho suficiente só para ajudar a levar a comida à boca. Herbívoro inofensivo, vive durante o dia em tocas, só à noite sai para se alimentar. Seus olhos refletem a luz com imenso brilho, vendo-se, quando se lhes apontam os faróis, uns pontos luminosos moverem-se aos saltos!

Chegámos a Menongue perto da meia noite. Na povoação não se via viv’alma! Embrulhado num cambriquite um homem fazia “guarda” ao Posto da Administração do Concelho, e foi a ele que perguntámos onde havia um lugar para dormir. Estremunhado e espantado de ver aparecer àquelas horas tardias um jovem casal, lá nos disse que na casa comercial ali quase ao lado tinham uns quartos que alugavam. Obrigado.
Lá fomos bater à porta, sente-se barulho dentro de casa e percebe-se que estão a acender um Petromax, perguntam quem era e o que queríamos, abrem a porta e aparece o chefe da casa, a mulher e duas filhas pequenas, tudo em pijamas e agasalhos (Menongue está a uns 1.400 metros de altitude, região de savana aberta, de noite... gelada). Queríamos dormir!
Foram-nos mostrar um quarto que só tinha porta para a rua, entregaram-nos um castiçal com uma vela e... pronto. Vá lá que ali os lençóis estavam limpos. A pressa para cair na cama era muita, os ossos doíam com o frio e os quilômetros andados.
Depois de deitados e a vela apagada, assim que me habituei à escuridão do quarto, começo a ver uma imensa porção de estrelas no teto! Não, não era a classificação turística hoteleira! Faltavam alguns pedaços das telhas, o que permitia ver aquele céu, lindo, quando se quer apreciar, mas pouco convidativo quando o buraco do telhado é bem por cima da cama! Por acaso nessa noite não choveu!

Novamente a caminho da Huila. O mesmo furgão, Renault, duro, incómodo, e dois passageiros. A minha mulher e o ajudante, o Sebastião.
Este, que um dia depois de eu ter ido embora de Benguela me escreveu uma longa carta que começava com Meu amado mestre, que quase me fez sentir o Messias! Rapaz novo, o Sebastião, humilde, alegre, pedia-me, para Portugal que lhe mandasse 20$00 escudos! Nada sabia de mecânica, mas foi sempre imensamente prestável, quando o carro avariava no caminho, em casa dos agricultores onde tantas vezes tive que prestar assistência a equipamentos agrícolas, e até nos escritórios da empresa, na montagem das máquinas novas que iam chegando. Ao fim de um ano de andar comigo já fazia muita coisa. Talvez daí o tratamento de Mestre!
Desta vez o Renault ia com o motor a falhar. Engasgava-se com facilidade, sobretudo nas subidas. A gasolina não chegava bem ao carburador, e nunca se chegou bem a saber se era a bomba, que foi trocada, mais tarde até colocada uma outra em paralelo, elétrica, que a original era mecânica, desmontou-se e lavou-se o depósito de combustível, limparam-se os canos, enfim fez-se tudo o que era possível, e o carro continuava a falhar.
O destino era Sá da Bandeira, cidade situada no alto da serra, mil e oitocentos metros de altitude, um clima maravilhoso, e a pensar que íamos dormir no melhor hotel do mundo: o Grande Hotel da Huíla. Chegar a qualquer hotel depois de uma viagem por estradas de terra, poeirentas e esburacadas era sempre uma maravilha. Mas chegar ao Grande Hotel da Huíla, e sobretudo lá ficar alguns dias, era o máximo que se podia almejar.
Depois de Cacula a estrada começa já a subir para o planalto, e o carro falha cada vez mais.
Engasga-se. Pára. Abre o capô. Olha-se para dentro e nada se faz porque não há nada que se possa fazer, apesar de carregar sempre no carro uma completa mala de ferramentas. Seria a tal bomba de gasolina? Talvez, mas mesmo que fosse não havia outra para trocar em pleno mato. Com isto vai-se perdendo tempo e, entretanto, a noite adensa-se. O local mais próximo onde ficar era no Toco, no entroncamento das estradas de Sá da Bandeira para Benguela e para a Matala.
Depois de Hoque a estrada entra no começo do alto da serra e sobe íngreme e ziguezagueante até chegar ao topo, a dois mil metros de altitude.
O carro, cada vez mais engasgado, não consegue subir. Fez-se tudo, e... nada. Só de marcha a trás, de ré! Faltando ainda uns doze a quinze quilômetros, a única solução para não ficar na estrada foi virar o carro e ir às arrecuas p´a trás!
Abriu-se a porta traseira do furgão, o Sebastião sentado com as pernas para fora, lanterna na mão tentando alumiar, mal, as bermas da estrada, e eu com o pescoço torcido quase 180º conduzindo aquela droga de carro montanha acima. O frio entrava pela porta aberta e ia congelando a todos. Velocidade lenta. Lenta, ainda é pouco, lentíssima. Por todas as razões, e até porque o motor podia não aguentar e fundir de vez!
Nem o motorista aguentava muito apesar da sua juventude! Anda um pouco, pára para descansar e mexer o pescoço. Anda um pouco mais, torna a parar, e assim, com uma canseira imensa, finalmente chegámos ao Toco às duas horas da manhã. Ainda hoje não sei como conseguimos tal proeza. Os vinte e poucos anos de idade...
Dizer-se que ia cansado é piada. Arrasado. Depois de ter saído de Benguela a pensar que ia dormir no melhor hotel do mundo, para onde tinha telefonado a reservar o quarto, e não poder lá chegar, qualquer lugar servia para descansar e tentar endireitar o pescoço, mais do que torto!
No Toco, a que eufemisticamente se chamava povoação, onde como é evidente luz elétrica não existia, havia somente três casas, todas pertencentes à mesma família. A de comércio, a habitação e uma espécie de hotel ou albergue, construído num local um pouco mais elevado, em cima de uma rocha. Era um edifico térreo com cinco portas para a rua, aliás a estrada. Cada porta dava para um quarto com meia dúzia de camas, onde os viajantes, praticamente só camionistas, à medida que chegavam, qualquer que fosse a hora, se deitavam para dormir. Nenhuma porta tinha chave. Não fazia falta. Era assim a África, tranquila.
A organização ali era simplíssima. Quem fosse chegando procurava uma cama vazia, deitava-se, dormia, e no dia seguinte pela manhã, depois de matabichar pagava a sua conta e seguia viagem. O matabicho, para gente que além ter estômagos fartos, não sabia quando chegava ao próximo destino, compunha-se de café, leite, pão e manteiga, e ou bifes, grandes, com batata frita, ou então bacalhau cozido com batatas! O que no Brasil se chama café da manhã, ali era algo de substância. E matabichar às cinco, seis horas da manhã, uma bacalhauzada, era ótimo! Já se saía aviado para o que desse e viesse.
Dormiam os viajantes uns quantos no mesmo quarto e muitas das vezes nem se chegavam a ver pelo desencontro das horas de chegada e partida. Mas dormiam e roncavam.
Pescoço à banda, braços e costas doloridos, todos nós enregelados, tudo o que eu naquela ocasião pedia a Deus que me desse era uma cama com dois cobertores de papa bem quentinhos. Não aguentava mais.
Abri a primeira porta, entrei sem acender a luz, porque nem havia, adivinhei algumas camas vazias, e cansado como estava comecei logo a despir-me. Minha mulher atrás, lanterna na mão, cautelosamente percorrendo os cantos do quarto à procura de alguma barata! Eu queria lá saber de baratas. Só queria mesmo era deitar-me. De repente o foco da lanterna ilumina uma cadeira que tem pendurada um par de calças. De homem. Mais uma camisa e no chão umas botas.
Sussurrando, chama-me e mostra-me a descoberta. Aponta a lanterna para a cama, e lá estava outro hospede, dormindo o sono dos justos, profundamente.
Eu já tinha despido a camisa e as calças. Pegamos tudo novamente e vá de ir procurar outro quarto. O segundo estava vazio, bem confirmado pela lanterna que desta vez não procurou mais baratas mas percorreu todas as camas.
Para não dar hipótese a que outro retardatário viesse dormir conosco, improvável, devido ao adiantado da hora, empurrei uma cama para a porta, para teoricamente a trancar. Não trancava, mas pelo menos dificultava a entrada de alguém mais e talvez, talvez, se tentassem forçar devia fazer suficiente barulho para nos acordar e assim podermos avisar que o quarto estava ocupado! Cansado como estava, eu não acordaria de jeito nenhum, mas ficámos moralmente mais à vontade!
Num instante acabei de me despir e em menos de outro estava enfiado por cima daquele colchão de palha, mesmo duro, debaixo dos tais cobertores pesados. Não sei quanto tempo levei para adormecer, mas creio ter entrado na cama já com um olho fechado!
Depois daquela viagem incrível, com um frio miserável, de ré, todo torcido, aquela cama mesmo sendo bastante péssima era uma maravilha! E devo ter dormido bem porque me levantei só a meio da manhã! E não perdoei o meu matabicho de herói!
No dia seguinte, feriado, 8 de dezembro de 1954, conseguimos finalmente, e com muita engasgadela do motor chegar a Sá da Bandeira, porque já não havia mais subidas íngremes, a estrada desenvolvia-se pelo topo da serra, e aí, sim, descansar e gozar aquele clima e Aquele Hotel.
Que saudades!...


Tem mais dormidas, mas ficam para a próxima!

domingo, 13 de agosto de 2017

 

Caminhos do Sol – 7 -

Por Jorge Ferrão


Continuando com a fauna de Moçambique
(Já publicado em 18/05/2010 no blog “A Bem da Nação”)

O  DELTA do BANHINE

 

O delta do Banhine, que hospeda o Parque Nacional do Banhine (PNB), estende-se entre as planícies do Alto Limpopo e do Alto Changane, a noroeste da província de Gaza, em Moçambique. O delta é coberto por finos depósitos aluvionares, transportados por riachos efémeros subterrâneos cujas nascentes localizam-se no Zimbabwe, ou são impelidos por chuvas intensas, ocasionais. Na maior parte da área o nível freático encontra-se a uma significativa profundidade, frequentemente abaixo dos 60 metros. A superfície, porém, possui águas pouco profundas, salobras ou até salgadas.
Uma morfologia e parâmetros biofísicos espectaculares que recordam o delta do Okavango, em dimensões mais modestas. O delta mistura o misterioso, inexplorado, sagrado e romântico. Um lugar imprevisível que muda os cenários tão depressa como a coloração das suas águas superficiais.
Os habitantes locais designam a área por Banhine que em shangane significa planície de inundação. Banhine ressurge e catalisa a atenção de um selectivo grupo de turistas e ornitólogos que procuram paz, harmonia e aves exóticas. A população de avestruzes que habita o PNB é um dos últimos “gene pools” de “avestruzes puras” na África Austral. Para surpresa e agrado de todos, a população voltou a ser visível e encara os visitantes com maior naturalidade.
A área do Parque é de 7.000 km2.

O Serengeti moçambicano

Em 1972, esta vasta região de Banhine foi proclamada Parque Nacional e nesta altura terá vivido os seus momentos de glória. Conhecido como o Serengeti de Moçambique, devido à presença de um grande número de mamíferos de grande porte que ocupavam a extensa planície de inundação, o Parque representava o habitat ideal para as avestruzes que ainda sobreviveram às várias ameaças, em parceria com os antílopes de médio porte e as aves aquáticas, para além de uma importante diversidade de peixes.
Em meados dos anos 70, o PNB ficou, literalmente, entregue à sua sorte. Sem administração ou fiscalização do Estado, o furtivismo e a captura ilegal imperaram, conduzindo ao extermínio de abundantes populações de mamíferos como elefantes, zebras, bois-cavalos, palapalas e elandes, entre outros. A matança ocorreu em larga escala. Relatos testemunham a exportação de marfim do Banhine para a Europa, no referido período, com a total conivência das autoridades.
Entre os anos 1974 e 1997, Banhine quase sumiu do roteiro da Conservação da Natureza moçambicana. Desde 98, o programa das áreas de conservação transfronteiriças, do Ministério do Turismo, assumiu a responsabilidade pela dotação dos meios e recursos mínimos para a revitalização dos seus ecossistemas. Para a nova administração, a recuperação dos efectivos de avestruzes afigurou-se como uma prioridade, paralelamente à gestão das zonas húmidas, que albergam uma considerável diversidade de aves aquáticas, muitas delas raras ou em vias de extinção. O programa tem surtido resultados positivos a tal ponto que a população de avestruzes já somava 800 animais em 2004.
Olhem a simpatia... à vossa espera!

O PNB tem ciclos sucessivos de inundação e de seca, que proporcionam extraordinárias condições de alimentação e de habitat para um grande número de aves aquáticas, incluindo flamingos, gansos, patos, pelicanos e cegonhas, para além de aves de rapina, como as águias.
Ornitologos da região descobriram o local e viajaram para o Banhine por sua conta e risco. Mesmo sem as condições semelhantes à de outros parques, estes visitantes instalam suas tendas e desfrutam de belezas cénicas impressionantes, sobretudo quando as águas atraem os milhares de flamingos e pelicanos.
Um Centro de Pesquisa Científica foi instalado no local. Para os académicos e outros interessados fica aberta a possibilidade de estudarem, a fundo, este importante ecossistema e a secular actividade piscatória cujo colectivismo é pouco comum.
As águas de Banhine surpreendem, também, por outras razões. Durante a época seca, cuja periodicidade varia entre os dois e cinco anos, as pessoas locais, deslocam-se em grupos para as lagoas para praticar umas das mais antigas e interessantes formas de caça – a pesca colectiva.

A pesca colectiva no Banhine

As comunidades locais shangane controlam os ciclos de inundação e estiagem nas lagoas do Banhine. Os agregados familiares não devem exceder os 600. Sempre que se antevê um período de estiagem, as famílias residentes convidam aldeias próximas ou distantes, para as intensas sessões de pesca.
A pesca colectiva, passe a designação, assume contornos especiais por não usar métodos e instrumentos convencionais. Todos os pescadores começam por participar numa pequena cerimónia tradicional de culto aos antepassados. Seguidamente instalam-se em cabanas precárias, construídas em poucos minutos junto dos lagos e charcos pouco profundos. Finalmente, quando, a ordem de avanço é dada pelo líder tradicional, entram para os lagos, com a água a dar pelos tornozelos e, servindo-se de capulanas, peneiras, cestos de palha, latas e de outros utensílios, retiram da água praticamente todo o pescado indefeso e sem alternativas de sobrevivência.
A pesca colectiva dura no máximo duas semanas. Pode ser menos se a quantidade de peixe é reduzida. Quando o peixe é retirado, inicia-se o processo de tratamento. Depois de aberto e despido de seus interiores, o peixe é colocado em varões improvisados, para um curto período de secagem. Os pescadores não arredam pé do local. Tudo quanto fazem é pescar, limpar e pendurar o pescado, secar e preparar os fardos para serem transportado e consumido mais tarde noutros locais.
Quando a pesca termina, a estiagem já não dá tréguas e só restam os ovos dos peixes. Estes ovos são o garante para uma nova geração piscícola, quando a água regressar, alguns meses mais tarde. Para os convidados, com os cestos mais ou menos repletos, sobra o longo percurso de volta às aldeias. A estiagem ganha corpo e a planície seca na totalidade. Banhine vira local desolador. O ecossistema “perde” muito da sua vitalidade. As aves aquáticas vão embora, os mamíferos iniciam uma pequena migração para os rios Save ou Limpopo e apenas as avestruzes resistem a tanta secura e ao “pousio” da Natureza.
Pela sua natureza e peculiaridades, jamais esta pesca colectiva foi posta em causa. Nem faria sentido, “desaproveitar” tanto peixe que estaria condenado a morrer de forma natural. O ritual, na realidade, é secular. Até parece que só esta actividade colectiva garante a sobrevivência da planície, da qualidade do peixe e da vitalidade do delta.
Este ano o delta secou. Banhine vestiu-se de nostalgia e de recordações. Memórias, da estação de diversas cores, de penas e pássaros, chifres, pernas e peixes, de movimento e agitação. Por enquanto, o delta repousa. Aguarda, em silêncio por um novo tempo de chuva que venha molhar os espíritos e alegrias dos residentes e as espécies animais.

 

O caranguejo do Coqueiro


Olitoral do norte de Moçambique continuará, por milhares de anos, um local stico. Teremos, todos nós, tanto para contar, e nos faltarão as palavras para descrever tamanha beleza. Regresso ao arquipélago das Quirimbas e a raridade de sua fauna. Caminhando pela praia, agora em época de nidificação ou procriação das tartarugas, identificamos sem grandes esforços, pegadas que conduzem aos seus ninhos. Da mesma forma, outros milhares de traços geometricamente desenhados no chão, nos aproximam da graciosidade de grupos de caranguejos. Dos ninhos das tartarugas nascerão centenas de novas criaturas, porém menos de 10% sobreviverão ao mundo cruel e real. Os caranguejos, mais resistentes, driblam o mal e a natureza, com a mesma arte dos humanos. Por vezes um pouco melhor.
O arquipélago das Quirimbas e a Ilha Vamizi, em particular, hospedam uma espécie de caranguejo designado como Caranguejo do Coqueiro. Caranguejo dos coqueiros (Birgus latro) é crustáceo terrestre encontrado em diversas ilhas tropicais e dos oceanos Índico e Pacífico. Pode pesar, aproximadamente, até quatro (4) quilos e é muito forte. Com duas colorações, alaranjado e meio azul-roxo, o caranguejo dos coqueiros alimenta-se preferencialmente de material vegetal, principalmente, cocos. Portanto, será natural encontrá-lo em regiões com muitos coqueiros.


Bichinho grande, hein?

Uma das características que o diferenciam dos restantes caranguejos prende-se com a sua habilidade em trepar coqueiros e buscar sua alimentação predilecta. Parece até que foi admoestado para galgar coqueiros. Em Vamizi e devido a presença humana, ele pode ser facilmente encontrado pelas caixas de lixo do hotel, terminando os restos do lanho e do coco usado pelos serviços da cozinha ou pelos turistas.
Impressiona, nestes trepadores, como eles abrem os cocos para se alimentarem. As pinças são de tal forma fortes que descascam o coco com a maior das facilidades. Quando inicia a subida pelo tronco do coqueiro ele se mantêm tão firme que, dificilmente, pode ser retirado da caminhada. O coco já foi identificado e tudo se passa em tempos quase cronometrados. Depois os cocos com mais azar tombam. O dispêndio de energia aparenta precisar de ser compensado e, portanto, o caranguejo não desiste nunca de qualquer subida. A Ilha do Vamizi por felicidade, apesar de ter poucos coqueiros, hospeda exemplares do caranguejo trepador. Podem ter vindo para esta Ilha para se refugiarem da perseguição que sofriam em outros locais. Existe uma lenda local, até hoje muito divulgada, que confirma que quem comer ou se alimentar do caranguejo dos coqueiros, jamais sairá da Ilha. As lendas têm o valor que tem e aquelas que lhes decidimos dar. Mal ou bem, também eu advogo esta lenda. Pelos locais onde o caranguejo do coqueiro habita, continua sendo muito perseguido. A sua carne parece ser das mais saborosas que existem. Os insulares consideram-no o caviar das ilhas. Só por isso o caranguejo do coqueiro foi e continua sendo muito procurado.
Em Vamizi e Rongui, pelo menos, eles encontram paz e harmonia. Essa paz que todos procuramos. Protegida pelas convenções internacionais, porém sem qualquer protecção na legislação nacional, o caranguejo do coqueiro corre perigo de extinção. Quem se interessa pela fauna deve imaginar que um número, ainda significativo, poderá ser encontrado, não para que as gerações vindouras o possam conhecer, mas para que os próprios recriem as suas gerações futuras.

Alguns pesquisadores e pessoas interessadas ainda prestam atenção ao caranguejo trepador que, a maior parte dos turistas, ainda desconhece. Esta é uma das raridades deste Moçambique que continua desconhecido e ignorado pela maior parte dos nossos concidadãos.

domingo, 6 de agosto de 2017


Caminhos do Sol – 6 -

Por Jorge Ferrão


Continuando com a fauna de Moçambique

Pangolim – um negócio da China

 Pangolim (Manis temmincki) conhecido em algumas regiões de Moçambique, no sul em particular, por alacavuma é uma espécie mítica para uma significativa parte dos moçambicanos. Sempre que se faz presente, em locais residenciais, sobretudo em época chuvosa, sua aparição é, imediatamente, associada a calamidade ou desgraça natural e social em formação. Tudo se deve a sua raridade e ao formato físico pouco comum. No centro e norte de Moçambique e, eventualmente, em outras partes do continente, os mitos lhe conferem sorte diferente. Pangolim, então, é tido como animal que traz a sorte e a prosperidade. O mesmo animal tem, por conseguinte, o condão de suscitar diferentes interpretações.

O belo e simpático Pangolim. À direita em posição de defesa

Aqui pelo norte de Moçambique a aparição do Pangolim, principalmente antes da época das chuvas, aliás quando abundam mais formigas, a sua presença simboliza ano de chuva regular, abundância de colheitas e, fundamentalmente, prosperidades. Apesar de ser o anunciador de bonança, pessoas existem que não ficam por aqui e lhe movem uma desenfreada perseguição. Assim, as comunidades pastorícias, sobretudo elas, capturam o animal e acto contínuo queimam-no vivo, no interior dos currais de gado. Esta atitude, de acordo com a crença, aumenta a fertilidade nos rebanhos.
Existem pessoas que para afastar o “mau-olhado” usam anéis e fios feitos de escamas de Pangolim. Aliás, as escamas são usadas, igualmente, na medicina tradicional. Não se conhecem os seus efeitos, porém todos que procuram um pouco mais de sorte fazem uso do recurso. Pangolim, inofensivo e por ironia do destino está, então, condenado a trazer os sinais de prosperidade e a ser caçado, como se o humano não necessitasse mais de anunciadores de fartura.
No sul de Cabo Delgado, mais para região de Montepuez, o Pangolim também anuncia bonança. Não obstante, encontram no bichinho valor agregado, pois agora descobriram que o podem comercializar. Agora o Pangolim enfrenta, como outros animais de grande porte, os efeitos de uma caça furtiva predadora, desumana e inexplicável.
Comercializado em bacias cobertas de capulanas, ainda vivos, o animal chega a custar até US$3.000. Os compradores predilectos são conhecidos. Asiáticos. Uma vez adquiridos são mortos e a sua escama é transformada em pó e, depois, exportada para Ásia. Aparentemente as escamas possuem propriedades capazes de melhorar desempenhos e apetites nocturnos de homens que vivem escondidos em vergonhas e impotências. Claro que isso é falso e não tem qualquer fundamento.
Mas, verdade ou não, sem que tivéssemos dado conta, já tem o Pangolim na lista de animais cuja demanda ultrapassa os limites do aceitável.

Autoridades na Indonésia queimando mais de 700 pangolins confiscados ao tráfico.
O Pangolim é considerado o animal mais traficado no mundo.
A WWL decretou o dia 18 de Fevereito, o Dia Internacional do Pangolim

Para quem não esteja familiarizado o Pangolim tem o corpo revestido de escamas grandes e compridas, finas, mas muito duras e que se encontram, normalmente, avermelhadas devido a cor dos solos argilosos que ele escava. Tanto a cabeça, como o pescoço e o tronco, estão cobertos de escamas e elas se sobrepõem umas às outras. A cabeça é pequena e pontiaguda, a língua é comprida, protráctil e viscosa e não tem dentes. As patas são curtas, mas as posteriores são mais compridas e cada uma possui cinco dedos. Alimenta-se preferencialmente de formigas e térmites que captura usando sua língua viscosa.
A reprodução é lenta e no máximo a fêmea gera dois filhotes. Em condições normais costuma ser mesmo um. As escamas endurecem, logo no segundo dia de vida, e o filhote costuma ser transportado nas costas pela Mãe. Assim, passeiam o dia inteiro procurando alimento e aparentando caminhar numa atitude pouco discreta.
Na realidade, as regiões não urbanas, são mais propensas à presença de formigas e térmites, daí que mais facilmente se pode encontrar um Pangolim. Sua aparição na região urbana só se justifica por estar procurando um novo morro e alimento. Convenhamos, procura alimentos o tempo todo e abrigo para se refugiar, agora tão necessário, e continuar sua vida pacata. Ainda assim, as poucas pesquisais realizadas, dão a indicação de existirem, em Moçambique, muito menos Pangolins que Leopardos. Qualquer um deles pertence a lista das espécies protegidas no mundo.
Os tempos de paz e sossego do Pangolim começam a rarear. O novo negócio da China preocupa. O comportamento dos vendedores faz crer que todos sabem que a venda do animal é proibida por lei. Ainda assim, os prevaricadores seguem impunes. Caça furtiva e sem quartel. Urge acabar o mal pela raiz. Pangolim desempenha uma função fundamental no controlo das espécies das quais se alimenta. Uma super população de formigas e térmites seria nociva ao ecossistema e sobretudo à agricultura. As regiões que já não possuem exemplares deste animal, ressentem-se da sua ausência.  (X)




O Réptil MAMALIANO DE TULO


A pacata candidata a vila, Tulo, para alguns Tula, no Posto de Lunho, Distrito do Lago, atesta estas meias ou completas verdades. Faz tempo que os locais convivem, quer agrade quer desagrade, com um novo mundo, com outras vertentes. Económicas. Paleontológicas. Os visitantes, de todas nacionalidades, com rostos transbordando simpatias, bolsos com outras intenções, vasculham os interiores do Tulo, para descobrir as preciosidades que a terra esconde em seu ventre.
Tulo, sem que os locais entendam, entrou em definitivo, para o interior de vários dicionários. Primeiro, como importante reserva de ouro. Aflease Gold, baseada em Joanesburgo, agora quase transformada em Gold One International, não desperdiçou a oportunidade e assentou arraiais na região. Os garimpeiros ilegais, até desmerecem referências. Em tempos recentes, tem sido aventada a ocorrência de carvão mineral. Nem sequer deve ser segredo. A prospecção só deve comprovar as viabilidades. Quanto mais carvão sairá dos nossos subsolos, para engrandecer o ocidente?
Porque o tempo não estaciona, as investidas, obrigatoriamente, continuam. Os novos exploradores, nem por isso, procuram ouro ou carvão, porém, algo mais subtil. Vestígios de passado que pretende ser presente. Os resultados, bem longe do final, não poderiam ter sido mais encorajadores. Vejamos a cronologia. Entre os meses de Junho e Julho de 2009, uma expedição científica, paleontólogos portugueses, por sinal, ainda em fase de conclusão de sua formação, nos EUA, escalou Tulo e Muchenga. Não olharam para relógios e, muito menos para as luxúrias. Concentraram-se, no essencial. Escavar.
Ricardo Araújo e Rui Castanhinha, seus nomes, numa missão de pouco mais de 4 semanas, descobriram um importante fóssil, quase completo, raridade nos dias de hoje. Um réptil Mamaliano, nomeadamente, crânio e o respectivo esqueleto. O fóssil já classificado como fazendo parte da família dos Sinapsídeos, quer dizer répteis que habitaram o planeta, bem antes dos colossais Dinossauros. As contas nem por isso são fáceis de fazer. Sua existência data de 230 milhões de anos. Como podem os ossos sobreviver tanto tempo?
Andamos, de alguma forma, sossegados. Estas ossadas pertencem ao estado moçambicano. Existe absoluto controlo.
No momento da descoberta, um dos jovens pesquisadores, Ricardo Araújo, até já havia abandonado o projecto, temendo ter investido demasiado tempo e capacidade, para parco resultado. Rui Castanhinha, mais persistente, bem auxiliado pelos colegas moçambicanos, acreditou e foi até ao fim. A paciência e a persistência saíram compensadas.

Aqui têm o “monstro” (à direita): 15 cm. de comprimento, mas um ancestral de todos os mamíferos

Naturalmente, não existe ainda capacidade científica ou laboratorial para lidar com este tipo de ossadas, dando uma indicação mais aproximada do tipo de animal e da sua era geológica. Assim, e obedecendo aos trâmites legais, as amostras recolhidas foram transportadas para o Museu de Lourinhã, em Portugal e, posteriormente, para os Estados Unidos da América, mais concretamente, para o Laboratório da Southern Methodist University.
O Ministério dos Recursos Minerais de Moçambique e o Museu Nacional de Geologia têm seguido a evolução destas descobertas. Aliás, estes achados confirmam o nosso país e a região do Niassa, como locais com elevado potencial paleontológico, devido ao facto de ocorrerem formações geológicas que não têm sido prospectadas, sob o ponto de vista paleontológico. Estas instituições moçambicanas assinaram um protocolo com o Museu de Lourinhã em Portugal, não apenas para dar seguimento aos estudos deste Sinapsídeo, como para dinamizar o estudo da paleontologia e à formação de técnicos em Moçambique.
Dinossauros, do grego Deinos (terrível) e Saurus (lagarto e, por extensão, réptil) foram uma espécie de fauna reinante no final do período Triássico, cerca de 225 milhões de anos atrás, que terão habitado o planeta Terra durante uma boa parte da era Mesozóica, quer dizer, desde o início do Jurássico até o final do período Cretáceo - cerca de 65 milhões de anos. O filme Jurassic Parque (Steven Spielberg) reanimou o debate em torno destes colossais animais. Quais teriam sido as causas do desaparecimento dos Dinossauros?  Por que teria sido extinta toda a linhagem? A teoria mais comum estaria associada à queda de um asteróide que teria provocado flutuações do nível do mar e dos lagos, redimensionando as regiões alagadas. Neste processo de extinção, sabe-se que só as aves, de acordo com os cientistas, teriam resistido como os seus últimos representantes.
Para os habitantes de Tulo ou de Muchenga, estas abordagens, nem por isso, despertam grande interesse. Porém, para o país, a sua importância é capital. Com frequência somos confrontados com novas descobertas de novas espécies de dinossauros, encontradas na China, Austrália, e um pouco pelo Mundo. Todavia, muito raramente, é feita alguma referência a espécies anteriores aos Dinossauros. Niassa passa pois, a fazer parte de um privilegiado grupo de locais paleontológicos, quer dizer, da elite na área de paleontologia, caso se comprovem as teorias elaboradas à volta do réptil mamaliano/sinapsídeo de Tulo.
O que terá de interessar, quer aos habitantes de Tulo, como a todo o país, obviamente, seria saber se Tulo e Muchenga, no distrito do Lago, seriam capazes de assegurar um fluxo de informação contínuo sobre esta preciosidade, se passariam a fazer parte do roteiro científico dos pesquisadores nacionais, se dos proveitos e benefícios a montante ocorreriam no local. Na realidade, em que medida o turismo nacional estabeleceria uma rota para visitas de rotina e ainda, como se impulsionaria as rotas do turismo científico, académico e educacional?
Para já, a única certeza é de que o Museu Nacional de Geologia elaborou um projecto denominado PalNiassa, para o sequenciamento das pesquisas efectuadas. Para Agosto de 2010 está agendada uma segunda expedição. Técnicos nacionais estão em preparação. Os vários sites da Internet continuarão a dar destaque a Niassa e ao País.