domingo, 29 de setembro de 2019



AMIGOS - 37
Mais um irmão de toda a Vida

Já os nossos pais eram amigos em solteiros. Crescemos juntos, entrámos juntos para o Liceu, cada um seguiu a sua vida, mas a magia de África nos uniu ainda mais.
Uma magia que não tem a ver com a cor da pele dos indivíduos. Quem viveu África esqueceu até da cor de alguns com quem partilhou vivências inesquecíveis, porque a atmosfera era outra.
Tanto se dormia num bom hotel, como no chão, no meio do mato, encostado à cabana de algum nativo. Não era o mesmo luxo, mas um luxo a que poucos tiveram acesso, na mesma serenidade e certeza da mesma atenção e confiança, além da boa disposição e natural acolhimento que os povos nos faziam.
Tudo simples, alegre, natural. Melhor que os 5 estrelas. Ali, em noites bonitas víamos miríades delas!
Para recordar um pouco mais estas vivências, temos de voltar à caça.
1958, outro visitante, João, solteirão ainda, experiente caçador na Europa, como não era diretor ou dono de empresa teve que ficar inspecionando Angola durante seis meses. Tempo mais que suficiente para por ela fatalmente se apaixonar. Várias e profundas foram até as suas paixões, terrestres e aéreas. Físicas e psíquicas! Angola é assim, todos tinham que se apaixonar por ela e por algo mais. Sobrava paixão naquela terra.
Numa das primeiras caçadas em que participou, equipado com uma caçadeira calibre 12, dois canos, porque os animais visados eram de pequeno porte, teve o seu momento de glória. Ninocas conduzindo o jeep que corria num terreno irregular, João em pé na traseira no meio de dois companheiros, todos ferozmente agarrados à estrutura tubular que sustenta a capota, retirada e dobrada no fundo do carro, vê aparecerem no alto de uma pequena colina dois veados! Nome genérico dado às diversas espécies de antílopes de porte médio, pouco maiores do que uma cabra, e naquele dia, concretamente os Golungos (Tragelaphus scriptus) muito bonitos, com cerca de noventa centímetros de altura de espádua e uns cinquenta quilos de peso.



Os dois veados destacando-se imóveis lá no topo, numa posição quase desafiante, o capim alto, João sem se largar para não cair, o carro parado, instinto treinado, aponta, sai o primeiro tiro, um veado some, segundo tiro e o segundo veado some também.
- Hurraaah! Um duplo aos veados!
Mal tinha acabado de pronunciar este grito de justificada satisfação e glória, o carro arranca e chegou a vez do jeep por sua vez cair num buraco e tombar de lado! João, como os outros cai também, e fica com os canos da arma, felizmente já descarregada, pressionando-lhe a barriga. Um parceiro por baixo, outro por cima, uma pequena confusão que logo se resolve, todos a quererem levantar-se o mais rápido possível. Num instante estão de pé, cada qual procurando certificar-se que nada mais que uma ou outra pancada ou esfoladela, coisa comum, os tinha atingido. Todos, exceto o João, que continuava deitado, a gemer!
- O que foi? Onde te dói? Dá cá a mão que a gente te ajuda a levantar.
Os companheiros preocupados.
João levanta-se bem devagar, confere com a mesma lentidão a completa integridade do físico e quando se certifica que nada lhe tinha acontecido, respira fundo.
- Estás ferido?
- Não. Não. Graças a Deus.
- Então porque estavas a gemer?
- Eu estava “à rasca” naquela posição, os canos da arma enfiados na barriga, sem saber se tinha quebrado alguma coisa, achei melhor começar logo a gemer, para o que desse e viesse!...
Gargalhada geral. Eram uma animação aqueles incidentes!
Foram procurar os dois veados que deveriam estar caídos a vinte ou trinta metros dali. A elevação onde foram vistos dava para uma profunda barreira em acentuado desnível, talvez com cinquenta metros até à base, onde por sorte o jeep não caiu porque o tal buraco o segurou primeiro! E os dois veados “abatidos” num brilhante duplo de mestre? Onde estão? Bem os procuraram, mas é de crer que eles se assustaram com os tiros, fugiram barreira abaixo, sãos e salvos, e até hoje não consta que tivessem sido encontrados! Um grande duplo aos veados!
Mais uma aventura de caça que dava muita luta, muita conversa, anos de recordações, muito boa disposição no regresso a casa, ao fim do dia, quase sempre com aquela paradinha obrigatória no mesmo bar que ficava a uns dez quilómetros de Luanda, no Cacuaco, uma pequena enseada de pescadores. Esse bar, misto de casa comercial, tasca, restaurante, etc., era paragem compulsória para matar sede e fome, e fechar o dia comentando com tremenda animação aquela e outras caçadas. Os petiscos habituais eram as gambas, o magnífico camarão grande de Angola, uma delícia, choquinhos en su tinta, e outras pequenas maravilhas que permitiam que a cerveja ainda melhor corresse pelas gargantas poeirentas e ressequidas.
A cerveja de Angola, naqueles tempos era a Cuca, onde ambos trabalhávamos. E, para quem voltasse daquela zona de caça era quase obrigado a ir beber Cuca no Cacuaco. A cacafonia ajudava a divertir os bebedores, atraídos sobretudo pelos petiscos, sem dúvida. Quantas vezes se chegava ali ainda de dia, só para lavar a garganta, cheia de pó do mato, e saia-se já noite entrada, bem petiscado e bem bebido. As tais paradinhas!  Mas ao chegar a casa ainda havia muito a fazer: dividir e preparar a carne que se trazia, quando se trazia, limpar e arrumar as espingardas, e por fim tomar um belo banho!
Como tudo aquilo era bom...


Em 2002, quando me aventurei pelos ensaios pinturísticos, fiz-lhe estes dois ensaios de retratos, um deles lembrando o famoso “duplo”, o outro com uma pacaça no canto, lembrando as inúmeras vezes que andámos atrás delas.
Em 1961 telefonou-me, de Lisboa para Luanda, convidando-me para assumir a administração duma empresa familiar, no Norte de Portugal. Angola era já a minha terra (?), e voltar a Portugal, mesmo com uma situação que se apresentava promissora estava fora do meu mundo. Tive, depois de muito lhe agradecer, que rejeitar a oferta.
Trocámos durante anos razoável correspondência e foi ele quem me incentivou a escrever. Sobretudo as histórias das caçadas. Comecei a escrever por aí e não parei mais.
Grande amigo, grande irmão, teve um fim de vida muito sofrido, triste.
Foi-se embora há poucos dias, e ainda me custa muito falar dele. Deixou um imenso vazio, muita saudade e o coração ferido pelo que sabíamos que sofrera.
Descansa agora, meu querido João Cardoso Salgado. Jamais te vou esquecer e, com saudade, rir das nossas aventuras.

07/08/2019

segunda-feira, 23 de setembro de 2019



Histórias da Baía dos Tigres
Angola


Lá... bem no sul de Angola, perto da foz do rio Cunene, há uma formação de areia, uma duna do deserto, em pleno mar! Durante muitos anos foi ligada a terra, formando uma baía a que se deu o nome de Baía dos Tigres, não porque lá tenha aparecido alguma vez um tigre, mas pela formação das areias do deserto, junto ao mar, sempre batidas por ventos fortes, que acabou separando os grãos da areia conforme o seu peso: claras e escuras dando a sensação de representar a pele dum tigre.

Esta foto não representa bem mas espera-se que dê uma ideia

Toda aquela costa é batida pela rápida corrente de Benguela e seus constantes ventos e por mais de uma vez separou a “península” do continente, transformando-a numa ilha, como está hoje.
Ali apareciam muita vez pinguins e focas e o mar era de uma generosidade incomparável.

Como era                              e como está

Mar muito rico em peixe de primeiríssima qualidade, no tempo colonial a Baía dos Tigres era um lugar cheio de pescadores, algumas pequenas indústrias de secagem e de farinha de peixe, edifícios da administração - que não perdia a oportunidade de sacar uns impostos aos homens do mar - tinha igreja e até pista para aviões, onde regularmente iam os famosos Dragon, que todos ali acabaram  com as rajadas de vento transversal que passava entre as casas.
Estes aviões, magníficos, de construção tubular e forrados de lona, para 7 passageiros, acabaram sendo ali desmantelados e levados em traineiras para... para sucata.
Era razoável a colónia de pescadores que fóra da pesca nada tinham o que fazer, nem para onde ir.
Cerveja... bebia-se bem, não havendo outros atrativos!
Um dia fui visitar aquela comunidade, boa cliente da Cuca. Era sábado. Fui de avião alugado o que causou enorme espanto naquela gente. Coisa rara. Logo uns quantos acorreram a casa do distribuidor da cerveja, que amável, nos recebeu em sua casa, porque todos queriam ver quem seriam os alienígenas!
Após os óbvios cumprimentos e “como andam as coisas” – pergunta de grande profundidade socio-filosófica – a  primeira coisa que o anfitrião fez foi perguntar o que queríamos para almoçar: camarão, mexilhão, caranguejos, santolas do fundo do mar, peixe acabadinho de pescar, enfim, um sem número de iguarias que ainda hoje me fazem crescer água no bico.
E entretanto fluíam já as histórias daquela gente que vivia quase isolada do resto do mundo. Todos tinham alguma coisa para contar, o que não havia era ouvintes! Lembro bem de duas delas.
Toda a ilha estava assente em cima de areia, como está, de modo que mesmo se chovesse muito, o que jamais acontecia, não havia perigo de inundação; as areias absorviam logo tudo. Assim mesmo as casas eram construídas sobre palafitas de cimento para ficaram afastadas da areia.
Um dos “causos”: uns quantos pescadores, nos fins de semana, juntavam-se para jogar cartas. A famosa bisca lambida, ou somente bisca, e há quem lhe chame sueca.
Os jogadores sentavam-se, dentro de casa, à volta duma mesa de jogo, e cada um colocava a seu lado três - 3 - caixas de cerveja de 12 garrafas de 0,6 litros cada o que dava uns 10 litros por caixa.
Durante o jogo ninguém se podia levantar para... “verter águas”, e o passatempo só terminava quando as cervejas estavam todas bebidas!
Solução para ir descarregando aqueles 30 litros que iam bebendo: cada um colocava o seu “vertedouro natural” enfiado numa mangueira com o comprimento suficiente para despejar o líquido fora de casa, naquelas infindas e absorventes areias!
E assim aqueles maduros pescadores jogavam a tarde toda sem se levantarem, quase que nem no fim do jogo, porque os 30 litros bebidos dificultavam demasiado o esforço de se levantarem, a movimentação, e certamente o carteado!
Mas era uma das raras, raríssimas, distrações daquela terra sem distração alguma, e tenho ideia de que isso acontecia quase todos os fins de semana!
Aqueles que por obras valerosas se iam assim do tédio libertando, e cantando espalhavam por toda a parte, porque a tanto os ajudava o seu  engenho e arte... e o álcool.
Outra história contada aos visitantes:
Um dos homens que acorreu para ver quem seriam os estranhos ali chegados, trabalhava numa das pescarias. Sobre o baixote, aí talvez menos de 1,60 m., quis contar também a sua vivência naquele desterro.
Vinha um dia, ainda no continente, de jeep, quando avista, aparentemente dormindo na areia, uma foca. E foca naquela terra que só raras vezes era abastecida de carne, cheirava a bom petisco. Ótimo.
Aproxima-se, pára o carro, deixa-o a trabalhar, e como não carregava nenhuma arma de fogo, lembrou-se de levar a chave de rodas e com ela dar uma marretada na cabeça do bicho que ressonava tranquilo.
Devagar, andando de mansinho por detrás, mas o caminhar na areia sempre faz um barulhinho que as focas conhecem e distinguem desde antes mesmo de terem nascido.
Ao chegar perto, arma já levantada para dar o golpe na pobre bichinha, esta sentiu o perigo, deu um berro e ergueu-se.
O nosso amigo, o preposto caçador, contava então:
- Aproximei-me muito devagar, e quando estava quase a poder dar-lhe a martelada, ela se pôs em pé e foi quando eu vi que era enorme. Aí da minha altura!
Os presentes, todos da terra, que o conheciam bem, quase em uníssono disseram:
- Se era do teu tamanho não era muito grande. Era até pequena.
O “caçador” engoliu o comentário e não gostou que lhe tivessem chamado baixinho. Corou e emburrou!
Foi uma gargalhada geral, quebrada logo de seguida com a chegada dos mariscos que se tinham ido buscar, e com o correr da Cuca que eu, ali representando a Companhia, liberei com generosidade!
A independência de Angola, fez desaparecer toda aquela atividade de pesca. Não ficou ninguém e a povoação entrou em total ruína.
Houve portugueses que conseguiram de lá sair nas suas traineiras e chegar a Portugal. Um feito e tanto.
Hoje lembra aquelas vilas do Oeste americano construídas com a febre do ouro e abandonadas quando este acabou!

Ruínas! Casas dos antigos funcionários, resquícios da pista de aviação,
e ao fundo a vila dos pescadores, vendo-se chaminés de fábricas.

É uma pena e um enorme desperdício. Mar riquíssimo de peixe, crustáceos – como o tão saudoso como delicioso caranguejo dos fundos, pescado a uns 800 metros de profundidade... huumm... – e marisco, que bem explorado podia dar interessantes divisas para Angola.
Mas... onde estão os angolanos interessados???

15/08/2019

segunda-feira, 16 de setembro de 2019



O Tangapema

Quase trinta anos em África e vinte no Brasil, onde se refugiara depois das independências das colónias portuguesas, já a bater perto dos noventa, mas ainda cheio de saúde, foi viver parte do ano em Portugal onde um filho conseguira alguns bens, entre eles uma razoável propriedade agrícola, onde construiu uma pequena moradia para os pais, ambos vivos.
De qualquer modo precisavam de alguma privacidade, em vez de se sentirem hóspedes em casa do filho, o que pressupõe sempre alguma cerimónia e consequente desconforto e liberdade.
Que fossem para lá viver ao lado dele, sem preocupações com finanças, pessoal para limpar a casa, etc.. De tudo isso o filho se ocuparia.
A propriedade não muros à volta, nem cerca, como praticamente todas são, mas o lugar era bonito, bons ares, uma serra ao longe que lhes enviava ar fresco durante o verão, horta, árvores de fruta, vinha e olival, belas caminhadas pelo sossego dos campos, onde aqui comia um figo, além umas amoras ou outras delícias, de vez em quando via passar correndo um coelho a quem desejava boa sorte, enfim, um fim de vida que se aproximava com descanso e conforto.
Ninguém se preocupava muito com uns assaltos que alguns agricultores na região tinham já sofrido, normalmente de imigrantes ilegais ou estrangeiros, e a vida continuava sem que se pusessem trancas nas portas.
O velho pai fazia questão de ajudar o filho nas suas fainas agrícolas, dentro das fracas forças que ainda lhe restavam, sobretudo na época de provar o vinho, vivia despreocupado, sem deixar de continuar a devorar livros que lhe ocupavam as horas em que necessitava de se sentar e repousar um pouco.
Levantava-se normalmente cedo, assim como se deitava com as galinhas, ou até com os pintainhos, e preparava sozinho a sua refeição matinal, que se compunha duma fruta e alguma aveia, como os cavalos (!) que lhe diziam, ser muito bom para o trato intestinal. Naquela idade todo o cuidado era pouco.
Um belo dia, ainda o sol não raiava, passando uma leve claridade entre os ramos das oliveiras, vê que lhe entram pela cozinha dois indivíduos, mal encarados, com alguma coisa na mão que não percebeu se se tratava de faca ou pistola, vozes de sotaque estranho, roucas, pensando aterrorizar os que lhes aparecessem pela frente, e logo começam a ameaçar.
- Ó velhote vai buscar o dinheiro e as jóias quando não quebramos isto tudo e deixamos-te as tripas de fora.
Raimundo – o seu nome – só pensou na mulher que habitualmente se levantava mais tarde e na pequenina bisneta que dormia também, e ficou desejoso que ambas dormissem ainda mais. Se alguém podia perder a parada seria somente ele.
Tranquilo respondeu:
- Na minha idade já não há mais jóias nem dinheiro. O mais que vos posso dar é um café da manhã, e fingir que nunca aqui vocês vieram. É bom que aceitem.
Os assaltantes, nervosos.
- Deixa de conversa, ó pá. Vamos revistar a casa. Anda, levanta-te. Nós vamos atrás.
Raimundo não gostou da segunda ameaça. Guardava de recordação, pendurado na porta da cozinha, um “tangapema”, arma que os índios da Amazónia usavam nos rituais ao sacrificar um inimigo. Madeira dura como ferro. E um pouco mais dentro de casa outra “arma” ainda mais perigosa, um “javite” africano, peça antiga de muita estimação, mas... ai de quem leve com ela! Abria-o ao meio.
                                                                   
 Tangapema
Javite


Levantou-se, devagar, virou as costas aos bandidos, e pareceu caminhar para o interior da casa, seguido pelos assaltantes.
Discretamente tira a “arma amazónica” do seu lugar e voltando-se, sempre devagar, para trás, um dos bandidos muito perto, acerta-lhe com o tangapema na cabeça que o prostra logo no chão. O outro fica uns momentos petrificado e não tardou a levar a mesma dose.
Sempre com muita calma, o velhote pega numas tiras de pano e cordas, enquanto os agredidos tentavam acordar, sangrando da cabeça, e amarra os dois, pés e mãos pelas costas, sem largar a arma, não fosse o caso de ter que dar mais uma dose em quem necessitasse.
Para que não aparentassem muita ferida vai buscar um frasco de água oxigenada, limpa-lhes as cabeças e ainda lhe deita um pouco de tintura de iodo! Deve ter ardido, mas era para o bem deles!
Depois, pelo telefone chama a GNR e o filho, este que logo acorre assustado, e fica perplexo ao ver o panorama daquela cozinha.
- Dá uma mão aqui.
Amarram melhor os dois, separados, guardam a arma dos assaltantes - um ameaçador e grande facão - dentro dum saco de plástico para guardar as impressões digitais e, com muito esforço, carregam os dois na mala do carro para depositá-los à entrada da quinta.
Passado um pouco chegam a GNR, vê o quadro, insólito, algemam os estúpidos, vêm os estragos nas cabeças de ambos e convocam o “agressor” para um depoimento, o que este recusa, e encenando, de bengala na mão a mostrar mais velhice.
- Foi você que fez isto ou o seu filho.
-Eu.
- ???!!!
- Sou assaltado em casa e vocês querem que eu vá agora contar a história lá no vosso quartel. Não. Não vou. Já não tenho idade para essas coisas. Venham vocês a minha casa que lá eu conto como tudo se passou.
Ali mesmo deu fez uma descrição do que acontecera, deixando os zelosos guardas desconfiados que fosse um velho a fazer aquilo, além do que deveriam ter deixado os dois onde os amarraram em vez de os levarem para fora.
Mas não quiseram mais conversa, foram embora com as duas prendas.
Passado pouco tempo o “agressor” recebe uma intimação do Tribunal Judicial da Comarca de ... , para  ir depor perante o juiz. Aí teve que ir, acompanhado do filho e da mulher, mas sem advogado.
Por mais incrível que pareça era acusado de ter agredido dois indivíduos!!! Passava de vítima a agressor!
Quando o juiz lhe lê o relatório em que ele era acusado de agressão e de não apresentar evidências do assalto, e pede explicações.
Raimundo, a bater nos noventa anos de vida e muita experiência, assume:
- Doutor juiz, excelência, como se usa dizer no Brasil. Imagino que o senhor, com idade para ser meu neto, não deveria gostar de ver entrar às 7 horas da manhã dois bandidos pela sua casa ameaçando-o até de morte. Olhe, senhor doutor juiz, eu também não gostei. E como vi que eles estavam armados, com um imenso facão que imagino esteja, como prova, na posse deste tribunal, que na altura nem distingui se era faca ou pistola, e vendo que a ameaça se estendia até à minha mulher – que está ali, olhe – e mais a pequenina bisneta, que estava em nossa casa, tive que reagir o mais rápido que a minha idade permitiu.
Sabe senhor doutor juiz, eu vivi em África, muitos anos, desde 1950. Andei por todos os caminhos possíveis, incluindo no tempo da guerra. Nunca fui ameaçado, era sempre muito bem recebido pelas povoações locais. Enfrentei perigos de outra ordem, inclusive nos meus quase vinte anos no Brasil onde são assassinadas mais de cinquenta mil pessoas por ano. Tive por duas vezes revolveres apontados para a minha barriga. Nem um só disparou e um dos assaltantes acabou preso. O outro fugiu. Sempre pensei que, quem sabe, um dia, eu teria que me defender, e fui-me sempre mentalizando para saber como reagir se isso acontecesse. Aconteceu agora. E vou-lhe dizer mais. Só não acabei com a vida desses dois vermes porque respeito muito a vida de quem quer que seja. Até dos meus inimigos. Mas ficar quietinho e deixar que roubem e maltratem a família, ainda hoje eu não consinto. Ver dois delinquentes me ameaçarem e à minha família que estava ainda a dormir... Essa não. Só não entendo, excelência, porque sou eu o acusado, e ficarei muito grato se vossa excelência me explicar.
- Interessante a sua explicação, mas o senhor agrediu duas pessoas, e como as retirou do local do crime, não permitiu que os agentes da autoridade pudessem certificar-se do que se tinha passado.
- Mentira, doutor juiz. Eu defendi a minha vida e a dos meus, e pelo que agora se está a passar eu deveria ter dado mais umas mocadas na cabeça dos dois imprestáveis até que eles entregassem a alma do demo! Só me faltava que fossem eles agora as vítimas. Pode vossa excelência me condenar. Mas creia, deveria ser o maior absurdo jurídico deste país.
Porque os agentes da GNR não foram a minha casa conferir? Veriam o sangue no chão, pelo menos. E eu tirei os bandidos de casa porque não queria que a mulher e a pequenita se levantassem e vissem aquele horrendo espetáculo. E os senhores agentes limitaram-se a algemar os bandidos e foram embora. Ainda lhes disse que fossem lá a casa conferir. Havia sangue no chão. Mas não foram.
O juiz engoliu em seco. Chamou o promotor e um dos guardas da GNR, segredaram entre eles. Ninguém sabia o que dizer ao “réu”. Se estava certo ou errado. Por fim sentenciou:
- Levante-se o réu.
Raimundo ficou sentado.
O juiz repetiu, não viu reação e mandou que o oficial de diligências avisasse o réu, que lhe responde:
- Isto é brincadeira? Eu é que sou o réu?
- É melhor o senhor se levantar quando não pode ser considerado um desrespeito ao tribunal.
- Pois eu não me levanto. Não sou réu. Sou a vítima. Podem até me mandar para a prisão.
O juiz percebeu que tinha perdido a partida, e, voz cordial, pediu então:
- O senhor quer fazer o favor de se levantar?
- Pedindo, assim, com todo o prazer.
Levantou-se
­- Parece que efetivamente há aqui um erro, quando a GNR apresenta queixa pelas lesões sofridas pelos dois meliantes. Assim sendo considero o “réu” não só inocente, como injustamente chamado a este tribunal como réu. Encerrada a sessão.
O tribunal inteiro bateu palmas.
Raimundo não sabe se as palmas foram para ele ou para o juiz.
O tangapema, depois de bem lavado, voltou a ser colocado em local estratégico.

14/09/2019

segunda-feira, 9 de setembro de 2019



Histórias da Arca do Velho

Rebusca, varre o pó dos tempos e da memória e, volta que vira, sempre acabam por se encontrar, bem no fundo da Arca algumas histórias que vivemos, presenciámos ou nos contaram, nos velhos tempos, nos da Outra Senhora.
Desta vez vamos passar pelo Alentejo, região que muito me marcou e onde conheci gente das quais muitas histórias se podem contar. E sem sair da mesma vila ou cidade.
Gente mais velha do que eu, porque quando por lá andei era um jovem que ainda nem sequer às sortes tinha ido.

Um médico, de muito boas famílias e de boas finanças, psiquiatra, alentejano de grande cepa, quando o conheci vivia em Lisboa, e trabalhava entre outros lugares já não sei em que hospital psiquiátrico, no antigo Hospital de Rilhafoles, depois Hospital Miguel Bombarda ou, na altura, no moderno Júlio de Matos, ambos em Lisboa.
Bem casado, lembro bem do carro em que ele aparecia, que me deixavam os olhos vermelhos de, quase, inveja, um Delahaye 1938. Inveja, não, porque não tinha nem idade, nem nunca tive grana para uma maravilha destas:

Igualzinho, só que de outra cor. Creio que azul.

O nosso amigo entre os seus serviçais tinha um que era também seu motorista, e algumas criadas, por uma das quais o motorista se apaixonou, e decidiram casar. Amável, sempre, o patrão, além de apadrinhar o ato, como presente deixou que os noivos fossem no seu carro passar a noite de núpcias num hotel.
É evidente que os noivos estavam apaixonados, mas o motorista, já na estrada, olhava para a SUA parceira e o excitamento crescia.
Não aguentou. Onde encontrou um lugarzinho para estacionar, o menos possível à vista de outros passantes, salta em cima da mulher e começa a função que, normalmente, seria prevista para quando chegassem ao hotel.
Estavam no bem-bom quando a polícia vê por ali um carrão, raro e caro, e decide investigar! Quando chega perto depara com aquela, indecente, cena conjugal, e acaba-lhes com a farra.
Logo vê que pelo aspeto dos noivos, eles não poderiam ser os donos daquela máquina. Documentos? Nada. Levam-nos para a esquadra (delegacia no Brasil) mais próxima, onde são interrogados.
Explicado o caso, telefonam ao patrão que confirma que lhes emprestou o carro, e portanto não havia nada errado!
O errado foi o ato em si. A pobre da mulher, super envergonhada, chorava, e parece que não quis mais brincar de marido e mulher. Pelo menos durante muito tempo!
O nosso médico era uma pessoa com graça. Até a contar as histórias que lhe tinham acontecido.
Uma vez foi passar uns dias de descanso na Coruña. No melhor hotel. Depois do jantar a mulher foi ao quarto fazer alguma toalete e ele foi para o bar tomar um café e beber um cognac.
Pediu o melhor, na altura o Carlos I, da casa Pedro Domecq. O barman leva-lhe o balão, a lamparina de álcool para o aquecer, tudo como mandam os preceitos para se apreciar completamente um bom cognac, e quando vê que o balão está na temperatura certa coloca-lhe dentro a bebida e serve-a.
O nosso amigo, recostado numa poltrona, leva o balão ao nariz, aspira fundo e... caiu para o lado.
Foi um corre-corre naquele bar e hotel. Chamaram a senhora à pressa, mas ele não levou tempo a recompor-se. Só que não bebeu o tão desejado, e bom, cognac!

Naquela terra vivia um homem, já velho, que desde há muitos anos, de manhã, mal se levantava, atravessava a rua, ia à tasca da frente matar o bicho¸ beber um copo de 2 dl de aguardente. Depois, durante o dia continuava nesta farra e bebia, quando pouco, 5 litros de vinho e mais uns tantos copos da tal bagaceira.
85 anos, um dia sentiu-se mal, nem se levantou e chamaram o médico, que conhecia a ficha do paciente, e a única coisa que pôde fazer foi dizer-lhe:
- O senhor agora não pode beber mais de 1 litro de vinho por dia e nada de aguardente.
Resposta do agonizante (com sotaque):
- Atão pa beberi tã pouco nã bebo nada!
No dia seguinte apagou!
Eu tive um colega, alto fortão, cavaleiro tauromáquico, de quem fui muito amigo. Um dia estávamos a comer já não sei o que, e a beber uns copos – normalmente do tinto – e o dito colega foi abusando do álcool e já estava a trocar as pernas e as voltas.
Recomendaram que tomasse um Alka-Seltzer, aquela pastilhona grande efervescente, que tem uma bela atuação em quem já está com os copos.
- Tome uma coisa destas. Dissolve em meio copo de água que logo ficas bom.
Todo macho, responde:
- Eu não preciso de tomar com água. Tomo mesmo direto.
Meteu na boca, engoliu e quando aquilo começou a efervescer no estômago, o coitado saltava, a sentir-se mal, e nós a vermos que lhe ia dar uma coisa!
Quando parou, estava estafado, mas a bebedeira havia passado!

Naquele café-bar lá da terra, talvez o único daquela magnífica terra, que continua a ser O Café, havia por cima de uma das portas que davam para a rua um magnífico painel de azulejos que era frequentemente declamado pelos amantes da bebida!


Sempre que algum novato ou de outra terra ali aparecia, obrigavam-no a ler, em voz alta os famosos mandamentos. E depois, arcar com 10 copos de vinho!
Um dos habituais frequentadores, como toda a gente dali, era um senhor que tinha um problema na coluna, e o coitado andava bastante torcido. Pois aquela gente até às custas dele queriam tirar sarro e mandavam-no ler os mandamentos que estavam em posição elevada, obrigando o homem a torcer-se todo para ler. Por fim já entrava a recitar. Tanta vez o tinham obrigado a ler que os tinha decorado! Já não precisava de se torcer!

Um tradicional proprietário dali, com casa em Lisboa e na vila, em certas épocas do ano ia todos os dias para a herdade e levava um ajudante.
Tinha um velho carrinho de 2 lugares conversível, aí dos anos 30, que nunca avariava.
Pois este senhor, pai de amigos meus, bebia, SEMPRE, 5 litros de vinho ao almoço! E quando se metia no carro, sabendo que via tudo em duplicado, seguia estrada fora com uma das mãos a tapar um olho. Nunca teve um acidente, nem andava a mais de 30 ou 40 kms/hora.
Quando ia para a herdade parava no bar e mandava o ajudante ir lá dentro buscar um garrafão de vinho, o tal de 5 litros, para o almoço, que preparavam lá no campo.
O almocinho pronto, abrem o garrafão que não levava rótulo algum e.. para grande espanto, no bar tinham-se enganado e entregue um garrafão de água!

Olha os velhos garrafões! Como consumi disto!!!

O nosso amigo fica furioso, manda o ajudante, a pé, à vila, reclamar e trocar o garrafão e ele ficou sentado à espera da volta para almoçar.
Comeram tudo frio, do vinho não ficou pinga, e regressaram no carro, um dos olhos tapados.

Havia lá na terra, onde eram quase todos primos, dois com exatamente o mesmo nome. Ambos de saudáveis finanças, um engenheiro agrónomo e o outro regente agrícola.
O regente era um sujeito meio caladão enquanto o primo era de uma boa disposição contagiante.
Circulava por lá um pobre, meio louco, que vivia do que lhe davam. Um pobre diabo que só perdia a cabeça quando lhe chamavam um nome, alcunha que lhe tinham posto (apelido), e nessas ocasiões insultava tudo e todos. Depois acalmava e voltava a ser o pobre e triste louco.
Pois o tal primo, gozador, encontra-o na rua e diz-lhe que vá a sua casa, um palacete muito bonito, que a mulher tem umas roupas para lhe dar. O pobre ficou contente e para lá vai.
A mulher tinha sido avisada de que o “n”, não lembro já que alcunha o desgraçado teria, iria aparecer, mas que ela primeiro perguntasse se ele era mesmo o tal.
Tudo bem. O pobre bate à porta, a dona da casa sabendo quem era foi recebê-lo e pergunta-lhe se ele é o “n”.
O que foste fazer! O louco perde a cabeça, insulta a senhora, grita barafusta e foi embora.
Quando o marido voltou a casa perguntou se ele tinha lá estado!
Noutra ocasião quando o casal se foi deitar ele contou que andavam uns bandoleiros na região e já tinham assaltado umas casas. Só não disse que tinha colocado em baixo da cama umas bombinhas de carnaval que dão um forte estouro quando rebentam.
De repente começam as bombas a estourar e a pobre da senhora convenceu-se que estavam a ser assaltados!
Além de ser rico e trabalhar em Lisboa como agrônomo, era também criador de touros bravos, que fornecia para as touradas.
Um dia convidou o grande, o maior toureiro português, Manuel dos Santos, para ir lá ver o gado. (Eu até estive em casa dele, no almoço que ofereceu ao toureiro.)
Depois do almoço fomos para a praça de touros para ele mostrar alguns dos seus garraios, e para os tentar tinha lá um ou dois bandarilheiros.
Queria mostrar ao mestre Manuel dos Santos a índole dos animais.
Praça de touros pequena, com lotação para duas mil e poucas pessoas, construída em 1918, que continua, até hoje de pé e a funcionar.
A certa altura ele chama-me para ir com ele até à porta por onde saíam os touros, e fazer uma partida a todos os que estavam atrás da barreira, isto é, soltar um dos garraios por dentro da trincheira em vez de lhe abrir a porta para a arena.
Mas este sujeito fazia tudo na brincadeira, e... mal feito. O garraio vira-se para mim, deu uma forte marrada na porta que eu segurava, e fui eu o primeiro a saltar para a arena para me livrar duma boa surra.
Todos riram muito, saltaram para a arena e o único que saiu esfolado com a brincadeira fui eu.
Foi ao lado desta Praça de Touros que vi um dia um circo, modesto, daqueles itinerantes, com duas ou três carroças, mas de que recordo, entre diversas fases dum sempre interessante espetáculo, quando o palhaço pobre a certa altura com aqueles olhos muito pintados como se estivesse a chorar, se senta na borda da arena, prende um serrote entre os joelhos e com um arco de violino tocou, no serrote, de forma magnífica, As Czardas de Monti.  Sensacional.
Vão muitos anos passados por cima de todas estas histórias. Talvez uns 70. Mas é um prazer relembrar tantas aventuras, todas autênticas.
Não menciono o nome dos “autores” de tudo isto, mas ainda sei, perfeitamente, quem era cada um deles e os recordo com saudade.
Que estejam, todos, no Grande Descanso.

18/08/2019


quarta-feira, 4 de setembro de 2019


Amigos - 35
O meu Ajudante Etnólogo

Já escrevi várias vezes, talvez até demais, que em 1954 comecei a minha vida em África, por Benguela. Fui trabalhar com máquinas agrícolas e, responsável pela metade sul de Angola, tinha o meu local de trabalho com loja e armazém.
Eu ficava sozinho na loja, com exposição de algumas máquinas. Lá dentro o encarregado das peças, Mário Brás, que tinha um profundo asco ao Salazar e queria ir embora para a Rússia(!), e um ajudante, na altura chamados serventes, que era uma figura de legenda.
Joaquim (ou António? Já não tenho a certeza do seu nome, infelizmente.). A personificação da simplicidade e boa vontade.

Pouco tempo depois de chegar a Angola fui para a África do Sul, por duas semanas, fazer um estágio na fábrica local da Massey Harris, e como já tinha alugado casa deixei-a entregue ao Joaquim que lá dormia todas as noites guardando as “preciosidades” do chefe.
No final do estágio a fábrica entregou a cada um um diploma, constando que tinha feito o estágio, de tal a tal dia, assinado por dois diretores, e autenticado, como era de praxe, com um selo de lacre e duas fitinhas de gorgorão (agora já sei mais de coisas femininas, viram?) nas cores vermelha e amarela, as cores das máquinas. Muito bonitinho.
Um mês depois do regresso, da sede em Luanda o patrão mandou dizer-me que devia emoldurar o diploma e colocá-lo na loja para valorizar a nossa organização perante os clientes. Tudo bem.
Em casa dei volta a tudo, que era pouco o que tínhamos no princípio da nossa vida, mas o tal de diploma, aparecer é que nada.
Todos os dias, depois do trabalho ia lá a casa o Joaquim, para ajudar a arrumar e limpar a casa, ganhando assim mais um trocado.
O Joaquim era um tipo sensacional.
O departamento de máquinas agrícolas onde eu trabalhava, tinha na frente, a loja onde se expunha um trator, duas ou três alfaias e a minha mesa. Ao fundo, uma passagem para o armazém de peças, e por fim o pátio, coberto, onde se fazia algum tipo de assistência técnica, abriam os caixotes que vinham das fábricas, se montavam as máquinas e estocavam os restantes equipamentos que não ficavam em exposição.
O Joaquim era o mais humilde dos empregados. Fazia a limpeza do stand e das máquinas, ajudava a carregar e descarregar equipamento, e na sua montagem: segura aqui, cuata aí, cabarera-ó-catita, eram os seus conhecimentos de mecânica!
De vez em quando eu chamava o Joaquim, que pressuroso aparecia num instante.
- Joaquim vai lá dentro buscar...
Nem acabava a frase já o Joaquim desaparecia, solícito, para ir buscar... é verdade, o quê?
Logo a seguir, ar cabisbaixo, mãos atrás das costas segurando a primeira coisa que lhe aparecera, voltava para ouvir o resto do recado, porque só depois de sair correndo é que se dera conta de nem ter ouvido o que tinha que ir fazer.
Eu tentava adivinhar o que ele trazia escondido nas mãos, atrás das costas, para o ajudar a sair daquele difícil transe.
- Joaquim! O que é que eu mandei buscar?
Ele gaguejava, olhava para mim com cara de criança que acabou de meter o dedo no apetitoso bolo da vovó, reservado para as visitas, e não se atrevia a falar.
Quando eu conseguia ver o que ele apanhara, por exemplo, um martelo, dizia-lhe:
- Joaquim, eu preciso é de um martelo.
Abria um sorriso maior do que a Praia Morena. (isto passa-se em Benguela, e como aquela praia sorria...) enchia o peito de ar, ufano e feliz, e entregava-me o martelo. Se naquele momento nem sequer pensava em promoção, devia sentir-se o Soba dos Recados!
Depois de receber o martelo e pousá-lo no chão, já que não precisava dele para nada, dizia-lhe:
- Agora, atenção, ouve bem devagar: vai lá dentro e traz-me, sei lá, uma chave de fendas!
Assim o Joaquim cumpria diligente e humilde o seu dever!
Foi ele que me ajudou a desencaixotar os trastes, que saídos de Lisboa, em Angola viraram imbambas ou bicuatas,.
Com todo o cuidado, os dois fomos desembrulhando livros, pratos, copos e outras coisas bonitinhas que é costume dar-se de presente de casamento, e no meio de tudo isso surgiram uns pequenos bustos, uma dúzia de centímetros de altura, que o meu pai terá obtido na Exposição Colonial do Porto em 1934.
Quando desembrulhei o primeiro deles o Joaquim, arregalou os olhos, fez um ar de espanto acompanhado do clássico Ha! Ha!, segurou numa das estatuetas, olhou, remirou e disse:
- Handá.
- O quê?
- Handá, Chipungo
Recém chegado, eu, não fazia a menor idéia do que ele queria dizer com Handá, mas por via das dúvidas escrevi logo no pé do busto o que ouvi.
Desembrulhei outro. O mesmo espanto, a mesma rápida análise:
- Quilengues.
Etnia Handá- Quipungo             Etnia Quilengues Musso *

E mais um, Cubal, e ainda um busto feminino que escrevi como me pareceu ouvir, Ganguera. Ganguela.
Só não reconheceu de onde seria uma outra cabeça de mulher, nem eu, que nada sei de etnografia, nem de um homem que mais tarde não foi difícil identificar como timorense.

Etnia Cuvale                             Mulher Nhanheca-Humbe

Vim mais tarde a descobrir (?) que a mulher deve ser Ambó-Cuanhama e o homem um timorense.


Ambó – Cuanhama                             Timorense    

Bom a conversa está muito boa, mas e o diploma? Cadê o diploma?
É verdade. Depois de me certificar que não o encontrava, conclui que só o Joaquim saberia do seu desaparecimento, visto ser a única pessoa que tinha a chave de nossa casa, quando tomou conta dela todos os dias sem falhar um único, durante cerca de dois meses, desde que cheguei a Benguela sozinho até que voltei re-casado após o regresso da África do Sul, donde nunca, nunca, tirou uma migalha, e além de mim e da jovem esposa só ele entrava no quarto que tinha espalhado no chão um monte de coisas, como louças, livros, bibelôs, etc. Não só não tínhamos móveis suficientes onde os guardar, como aguardaram a vinda da dona da casa para arrumar o que pudesse e a seu gosto.
Ali, algures, no chão, por cima daquela tralha, daquela, bagulhada, tinha sido guardado o diploma.
O Joaquim quando lhe falei nisso fez-se vermelho (é verdade, sim, os pretos também coram, lá por terem a pele escura, vê-se muito bem) e quase jurou que não tinha visto o bendito diploma.
- Joaquim! Eu quero esse diploma aqui, amanhã!
No amanhã o diploma estava lá! Um pouco amarrotado com a viagem de ida e volta até casa do Joaquim, claro, mas... o lacre e as fitinhas não regressaram!
Aquelas fitinhas e o lacre foram mais fortes do que a resistência do Joaquim contra tentações! Pratos, copos e outros quejandos ele conhecia bem, havia visto muitos toda a sua vida, mas um papel com aquele enfeite bonito...
Resultado: não se emoldurou o diploma, não voltei a falar nele ao pobre homem que caíra naquela terrível tentação, guardei-o, amarrotado e sujo por muito tempo porque a história me enternecia, e por culpa agora das nossas muitas outras viagens o diploma... sumiu!
Ficou a saudade. Grande Joaquim! Saravá Joaquim!

N.- A história do Joaquim (ou António?) está no meu livro “Se as Minhas Imbambas Falassem”, 2000.

*Um dos casos mais interessantes das etnias e da ocupação de Angola deu-se precisamente em Quilengues. É sabido que a maioria do povo angola é de origem Bantu (um disparate de palavra visto que Bantu vem de ntu” (homem) e “ba” (plural) o que significa em língua daquela região, Ocidente de África, todos somos Bantu!
Mas houve, séculos, ou muitos milénios atrás, também migrações da região nordeste de África, dos povos hamitas ou camitas, cujos caracteres antropomórficos são distintos dos Bantu: cabeça mais alongada (dolicocéfalos), lábios menores, outra cultura, etc.
Em Quilengues se juntaram com seus gados e desde sempre convivem, bantus  Quilengues-Humbe, e hamitas Quilengues-Muso, sem que jamais houvesse entre eles casamentos. E mais, as suas habitações também diferem: hamitas retangulares e bantus circulares.
Se o meu amigo José Redinha, grande etnólogo de Angola, lesse isto, certamente mandaria puxar as minhas orelhas. Algo não estaria muito correto. Mas é do que me consigo recordar.
Um abraço lá ... para o alto, José Redinha, meu amigo.

08/08/2019