sábado, 1 de agosto de 2020


A Vespa e as fraturas!

 

F… já é avô, e de uma linda mocinha de quinze meses que faz parar o trânsito, pedestre, das vizinhas! Todas adoram a Joaninha! Dizer que a sua neta é bonita seria quase pleonasmo, porque o nosso herói não admitiria que outra coisa dela fosse dita! Mas ele naquele dia ainda não tinha visitado a neta!

Arranjou um pretexto para sair, vestiu um agasalho de algodão, lindo, bem branquinho, pôs o capacete na cabeça, montou a sua Vespa, novinha, muito bem conservada, com pouco mais de seis meses de uso, que ele hoje em dia só usa para pequenas saídas ou para circular em áreas de tráfego intenso, desde que o tempo esteja bom, e foi até à casa do contador (guarda-livros, o senhor Valério, um muito simpático homem) para com ele discutir os detalhes da abertura da firma que será a proprietária da nova loja que está abrindo, e vai dar às filhas.

A firma chama-se “SAMBORÁ” Comercio de Artesanato e Móveis, Ltda.. Samborá significa em língua tupi-guarani “o pólen das flores”, a matéria prima das maiores artesãs do Universo!

O dia estava bonito, com um solzinho gostoso, sem frio nem chuva, seriam s quatro horas da tarde. A distância a percorrer era curta, talvez uns quatro a cinco quilómetros, e pouco trânsito.

O avô ia apreciando a tarde bonita, e pensando como era agradável sair de vez em quando na Vespa, calmamente, sem a preocupação de ter que procurar lugar para estacionar, nem sem se assustar com possíveis engarrafamentos do trânsito. De fato tinha sido uma grande invenção para o trânsito das cidades.

O contador não estava em casa e o nosso “vespeiro”, viu a porta fechada e nem sequer teve que parar o veículo. Seguiu em frente para voltar para casa, pela rua da Paz, muito mal calçada de pedra, uma espécie de paralelepípedos mal cortados e bem desalinhados. Esta rua, de paz nada tem, porque todo o mundo que por ela transita, xinga a Prefeitura pelo desmazelo em que o piso se encontra e ainda pelos obstáculos que ali foram colocados para diminuir a velocidade da circulação, que por foça do péssimo empedrado já é muito baixa.

A 30 km/hora, com seu dono em cima, a Vespa seguia tranquila qual jumentinho paciente a caminho do Egito. Sucedem-se os buracos, as vibrações da calçada mal conservada, e os cruzamentos. Num destes um carro aguardava que o trânsito passasse para cruzar a rua. Ao aproximar da Vespa, com tranquilidade em inércia, o carro ignorou a Vespinha, e avançou! Ambos bem devagar. O carro trava, e a Vespa, além de ter que travar, com o desgraçado parado na frente, foi obrigada a desviar-se para não lhe bater. Com aquele miserável piso, agravado com restos de água e lama, a Vespa escorregou e o seu cavaleiro foi obrigado, mais por solidariedade do que por necessidade, a imitá-la! E ali ficam os dois em pleno cruzamento, estendidos no chão!

A Vespa ligeiramente aranhada, calma e paciente aguardava que alguém mais bondoso a levantasse do chão, porque até ficava mal a uma máquina andarilha, depois de nada sofrer, ficar ali estendida como algo inútil. O vovô depois de ter feito uma “viagem” de uns escassos dois metros, esfregando a barriga e o visor do capacete por cima daquele desalinhado e porco empedrado, pára bem em cima de uma poça de lama e começou logo, mentalmente, a xingar o desastrado motorista que o fizera cair!

Sentou-se, e depois de ver a sua dedicada montada em posição tão indigna, concluiu que para além do seu lindo agasalho “ex branco” e das calças todas sujas, o prejuízo fora unicamente os leves arranhões na montada. Coitada! Só ela sofrera, porque como para ele nada mais parecia haver do que o pequeno susto sofrido, mandou ao desastrado, um jovem...  que lhe pusesse a moto em posição decente, e o ajudasse a levantar.

Já em pé pergunta ao motorista:

- Você não sabe que esta rua tem prioridade? Não viu ali, olhe bem, a placa com essa indicação?

- É. Eu olhei, não vi a moto, e arranquei, até bem devagar!

- E agora, tem seguro?

- Não, não tenho!

- Então está aqui a fazer o quê? Ponha-se a andar.

E com desprezo, o despediu.

Acarinhou a montada e tentou pô-la de novo a funcionar. A Vespa estava amuada com a figura que a tinham feito fazer ali no meio da rua, e recusou-se a trabalhar!

Custou-lhe a convencê-la que ninguém a havia feito cair com intenção de a humilhar. Finalmente o seu motor, depois de aceite a desculpa voltou a roncar, e ela aceitou com a costumeira humildade o seu cavaleiro para a viagem de regresso a casa.

No caminho passaram em casa da neta para a ver, só, porque a mãe tinha ido ao hospital, mas sujos como estavam unicamente se inteiraram que tudo estava a correr bem. 

Mal disposto porque lhe haviam riscado a sua Vespa e sujado a roupa, foi para casa trocar-se e retomar o trabalho do escritório, onde ficou até tarde da tarde.

Nas mãos começou a sentir um pouco as batidas nas pedras, mas coisa sem importância.

Depois dessa hora, sozinho em casa, preparou um whisky, coisa rara nele que prefere normalmente um gin tónico, levou para perto se si um pouco de chocolate e algumas nozes, foi sentar-se no seu canto habitual, conhecido como o cantinho do papai, onde gosta de ficar a ouvir música e tentar ler o tanto que não conseguiu durante a vida já passada, por preguiça ou falta de oportunidade!

Agora chora o atraso e a imensa ignorância a que se deixou entregar durante tantos anos, e sobretudo por saber que o tempo perdido jamais pode ser recuperado!

Foi ouvindo e lendo, as mãos começando a doer mais!

Apesar do whisky achou que não era má ideia tomar uma aspirina, e aproveitou para amarrar com uma ligadura a mão direita que estava a incomodar demais. As dores continuavam a aumentar de intensidade.

Quase às 10 da noite, sua esposa, regressa a casa depois de ter estado no hospital com a nora, que ali tinha ido fazer um procedimento ginecológico. Uma gravidez perdida, mesmo nos primeiros dias, traz sempre alguma complicação para o físico de uma mulher, e havia-se perdido a esperança de um segundo neto para os babosos avós.

- Então correu tudo bem?

- Correu. Ela já está em casa, mas terá que repousar pelo menos um dia. E você, como está?

- Estive muito bem até há pouco quando me começaram a doer as mãos e agora não aguento com dores! Têm vindo a aumentar e agora doem-me horrivelmente.

A, mulher treinada em hospitais, por andar já com todos os filhos, talvez dezenas de vezes, por esses lúgubres lugares, logo concluiu que o melhor era irem ao hospital.

No primeiro em que entraram não tinha ortopedista, no segundo a equipa estava operando um acidentado e finalmente no terceiro, onde chegaram com o “doente” parecendo um marciano, verde de dores, já sem conseguir mexer um só dedo, finalmente encontraram a equipa de médicos que logo mandaram fazer as necessárias radiografias da mão direita.

A cada dez minutos tinha que se deitar porque não se aguentava já em pé. De posse dos exames o médico tratou de o enfaixar, aliás, engessar todo o braço e a mão direta. Ficou igual a uma múmia.

A seguir voltou a dizer ao médico que lhe doía igualmente a mão esquerda. Volta aos Raios X, nova radiografia, e entretanto o médico sumiu!

Veio um outro, louro, aspecto de ariano nazi, pegou na mão do doente, depois de olhar para as chapas, e enquanto dava um bruto aperto onde já doía imenso, perguntava:

-  Dói aqui?

O grito de dor era reposta suficiente! Mas o bruto, não contente com a resposta apertou com exagerada força em diversos locais onde esperava que doesse e sempre, friamente, perguntava:

- Dói?

- Imenso, como deve dar para notar.

- Mas aqui não tem nada.

- E na outra?

- Tem que ficar engessada durante duas semanas por suspeita de fratura do escafoide. Se a fratura se confirmar, depois são mais seis semanas.

- Muito obrigado. E sussurrou – “grande besta.”

Tanto trabalho, canseira e só suspeitas.

Imagina agora o acidentado com a mão direita com quatro dedos de fora, sendo que o polegar, só por sacanagem, ficou bem longe deles, não conseguindo assim segurar em nada. Além de ter o braço imobilizado até ao sovaco.

A sua Vespa vai ter também que ficar imobilizada uns tempos. Nem guiar o carro pode, que lhe faz a maior falta para a sua vida profissional. E o peso do gesso?

Olhem, o coitado não sabe onde colocar aquele trambolho quando se deita para dormir. Não é capaz de se pentear, lavar as mãos nem o sovaco esquerdo. Mesmo levar a colher de sopa à boca, com a mão esquerda é uma canseira. Também não consegue tirar aquelas chatas carrapetas do nariz, o que tem feito toda a vida, umas vezes com mais discrição do que outras, mas sempre com os eficientes dedos da mão direta, sem nunca ter previsto que uma situação destas o viesse a deixar na mão!

Mas o desalento não o atingiu. Não.

Ele ainda se lembra de já ter vivido mais de mês com uma enorme perna de gesso, muito mais incomoda do que isto agora, sem igualmente ter sofrido fratura. Naquela ocasião, bem jovem ainda, 21 anos, recuperou-se com facilidade desse acidente provocado por um trator que lhe passara desastradamente por cima das duas pernas, e que unicamente lhe provocara rotura dos ligamentos internos do joelho esquerdo.

O pior é que, com todo este trabalho, dores e gesso, ainda desta vez não conseguiu uma fratura digna para mandar dizer à sua mãe e à irmã Luiza que finalmente havia alcançado o status conveniente para poder entrar o “Club Privê” delas. (Coitadas, muito se quebraram.)

 

Escrito em 06/Julho/1987

Recuperado nos papeis velhos em 01/08/2020

 

 

 

 


Um comentário:

  1. E já lá vão 33, a farinha que vale por três! Constituição de ferro. Saúde!

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