domingo, 11 de agosto de 2019





Ahhh!  Ler Camilo!

Vão fazer o favor de me desculpar a imodéstia, mas eu disse um dia, e até escrevi, que escrever um romance como os do Eça eu talvez fosse capaz. Muita fofoca, muita bambinela, muita, aliás, pouca vergonha, um constante malhar nos grã-finos portugueses etc., mas escrever como  Camilo, jamais.
A verdade é que jamais mesmo serei capaz de escrever como um, muito menos como o outro. Mas que sou fã de Camilo, sou mesmo.
Em 1876 Camilo publica um livro que raros leram e daí ser um quase desconhecido.
O jornalista e escritor, grande especialista em Camilo, José Viale Moutinho publicou, parece que em 1986, o “Curso de Literatura Portuguesa” que eu tinha há muitos anos, mas, confesso, nunca me tinha apetecido ler.
Desta vez voltei a pegar em alguns livros do maior romancista português, que sempre são obras de arte, e lá estava na estante, aguardando a minha coragem, um tratado “histórico-filosófico” sobre literatura. Não se lê como um romance, quem como eu, ignorante nesse passado literato português (e em muitas outras coisas) quase nada conhece desses vetustos escritores e desses temas, mas... escrito por Camilo, a maçada e canseira que é ver desfilarem dezenas ou centenas de nomes de quem nunca ouviu falar, torna-se um jogo de procura por frases que só Camilo seria, foi, capaz de escrever.

Selo comemorativo do centenário do seu nascimento

E então a canseira de ler um livro com interesse quase exclusivo para estudantes de letras, tornou-se um desafio que me levou muita vez a rir com vontade.
Vou desfilar umas quantas frases, nele encontradas, sem que tenham relação umas com as outras. Todas têm com a verve e o espírito crítico de Camilo, sem igual.
Vamos a elas:
- D. João III, à semelhança de Carlos V, ganhou medo aos grandes homens que admirara e estimara enquanto, minguado de compreensão, lhes não previu os intuitos.   
Sobre Manuel de Faria e Sousa que se bandeou para Madrid para agradar à corte, até que um dia perdeu o apoio do rei:
- A baixa lisonja não logrou o estipêndio que os Filipes por via de regra costumavam decretar às consciências vendidas por escritura pública.
Quando diz que nem a História Geral da Etiópia é tão de Baltasar Teles nem a Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires é de Frei Luis de Sousa, porque ambos completaram o que estava escrito por outros: 
- Para os historiógrafos andaram outros alvenéis quebrando os mármores.
O Padre João de Lucena
- ... é inferior a todos os quinhentistas de melhor quilate, e excede-os a todos nas delongas fastidiosas. Escrevia como quem tinha de seu que dizer, e ainda se aproveitava do que os outros disseram.
Sobre o Padre Manuel Bernardes:
- O seu escrever deve ter sido mui de espaço lavrado para sair tão cuidadosamente asseado e ileso das borbulhas que pruíam nos mais talentosos escritores da sua idade.
Do famoso Dr. João de Barros:
- Em 1522 um outro João de Barros, seu parente, publicava a “Crónica do Imperador Clarimundo”, que requinta na insulsez e na inutilidade.
Frei Francisco de Santo Agostinho de Macedo:
- Frei Francisco sabia vinte e três línguas, a índole da portuguesa de Camões e João de Barros decerto era a prejudicada pela confusão da Babel que se fizera na soberbia glótica do franciscano.
O Dr. Teófilo Braga é quem leva mais bordoada! E não lhe perdoa o mínimo deslize. Professor de Letras no Curso Superior de Literatura, escreveu no seu Manual:  “Depois que Camões soube do desastre de Alcácer Quibir, nunca mais teve saúde; ao começarem os motins populares no curto governo do Cardeal D. Henrique, era em volta de Camões que se agrupavam os leais portugueses...” E Camilo:
- Isto não é provável, mas romanticamente é bom.
E volta a Teófilo, sobre a História do Teatro Português, onde diz que Afonso Mendes é um tipo de criado do género de Esganarello (sic) e de Scapin. Confunde o carácter de Scapin com o de Esganarello. Esta segunda personagem não é criado, “é bourgeois et cocu imaginaire” diz o autor da comédia. O comentador, Teófilo,  ainda insiste que “o tipo de criado astuto e velhaco foi (Molière) tomá-lo nas comédias italianas... sintetizando-o em Sganarello e Scapin”. Mas não escapa:
- Não é conveniente que os professores escorreguem assim aos pares, quando a juventude se queixa de ser reprovada em exames por não acudir com resposta certa a perguntas difíceis.


Teófilo Braga, na época em que Camilo não lhe perdoava nada!

Mais adiante, sobre as “Éclogas” de Bernardim Ribeiro, onde falam dois pastores, “Jano” e “Franco de Sandomir”. TB: “Franco” era evidentemente Francisco Sá de Miranda, e “Jano” o próprio Bernardim, que o Dr. TB assenta categoricamente que este se passara do Torrão para Lisboa em 1496.
Entra o sagaz comentário de Camilo:
- Francisco Sá de Miranda nasceu em 1495, e pondo-se a tagarelar pastorilmente nas margens do Tejo com Bernardim Ribeiro em 1496 ficamos em dúvida qual seja mais prodigioso, se o tal Sá pequerruchinho de um ano a falar, se o senhor doutor e mestre de Literatura (TB) a escrever!
 D. Frei Francisco Alexandre Lobo, bispo de Leiria, o mais esmerado biógrafo de Camões e Frei Luis de Sousa, avisadamente presume que Manuel de Sousa Coutinho (Frei Luis de Sousa) esteve em cativeiro dos argelinos em 1577, e como naquele tempo Miguel de Cervantes estivesse também cativo, inferiu o ilustre biógrafo a possibilidade do encontro dos dois escravos. Diogo Barbosa Machado, o abade de Server, historiando o que sabia sobre Frei Luis de Sousa, já tinha dito que Miguel de Cervantes contraíra estreita amizade com Manuel de Sousa Coutinho. Vai daí romanceia uma “linda” história passada com os dois e até inventou um epitáfio para o túmulo de Manuel de Sousa:

Aqui jaz a viva memória do já morto Manuel de Sousa Coutinho,
cavaleiro português, como se vivo fora. ...
Opinião de Camilo:
-  Não lhe parece, caro leitor, que Miguel Cervantes, a custo de muito lidar com o seu D. Quixote de La Mancha, já estava gafado das mesmas roncarias?
Ainda sobre o Abade de Server diz
- Que lhe falta a concisão da linguagem que ele engrinalda de flores sem brilho nem cheiro.
Camilo não duvida nem dos amores nem da existência da religiosa Mariana do Alcoforado, mas, percorrendo a genealogia da família Alcoforado de Beja, conclui:
- Ainda assim cabe alguma glória aos Alcoforados de Beja, se alguns existem, porque lá têm a mimosa vergôntea da apaixonada freira, que provavelmente feneceu e se pulverizou no claustro de Beja, sem ter frutificado, tendo florescido tanto em cartas de fina amante, amando talvez muito o conde, não escreveu tais cartas, e apenas lhe deu o amor e o nome para a vaidosa ficção.
D. Francisco Manuel de Melo:
-  Os seus escritos estagnaram-se na grande represa das obras condenadas pela inutilidade dos assuntos. D. Francisco foi o espírito mais esterilmente afadigado e o mais simbólico das academias do seu tempo.
Sobre “As Odes Pindéricas” de António Diniz da Cruz e Silva
- ... encomiadas hiperbolicamente por Bocage, graças ao seu afeto ao metaforismo, são uns transuntos de crónicas, uns fastos rimados de façanhas orientais que nos estão ressumando o sangue barbaramente espadanado nos estandartes triunfais dos heróis de Dinis, que são os mesmos de João de Barros e Diogo do Couto. Não lustra um lampejo de alguma suave e humana aspiração nessa ininterrupta cadeia de monótonas proezas.
Teófilo Braga, que no seu Manual de Literatura cita um dito de António Ribeiro Chiado: No beber sou um Golias. Camilo não perdoa:
-Não se lhe aceite o dislate. O personagem querendo inculcar que bebia muito, mediu hiperbolicamente o líquido pelo bojo do corpulentíssimo gigante filisteu Golias, a quem David derrubou com a pedrada. Como quem diz sou um gigante.
O professor (TB) porém, confundiu o gigante com o truão enfrascado na taverna fazendo Golias sinónimo do Goliardo. Tem maravilhosas intuições.
Luis Pinto de Sousa Coutinho, (1735-1804) primeiro visconde de Balsemão, casou com D. Catarina Michaela de Sousa César e Lencastre. No dia do casamento dedicou-lhe um Hino Epitalâmico!
- Esta ode (o Hino...) fecha de maneira tão desusada e tão picarescamente original que pode considerar-se a preexistência do realismo moderníssimo!   
Em Vila Real na procissão do Corpus Cristi a imagem de São Jorge desde há muitos anos costumava ir a cavalo. Por razões desconhecidas o senado da terra ordenou que passasse a ir no andor e não a cavalo. António Lobo de Carvalho poeta de língua farpada não perdeu oportunidade de os satirizar. Camilo comenta:
- A razão deste descavalamento não é bem líquida. Há muitos mistérios que nunca se hão-de elucidar, mormente em coisas de cavalgaduras.
Os fidalgos, que os havia em Vila Real, vila dileta d’El Rei D. Dinis, a julgar pelos brasões musgosos em que as andorinhas dormem no verão e as corujas assobiam no inverno, assanharam-se contra o poeta, fazendo-se representar no desforço pelos seus mochilas.  
Tem mais malhação em Teófilo Braga, mas estas já dão uma ideia!
Para rematar, duas pequenas passagens de cartas escritas ao seu amigo José Barbosa e Silva:
Meu Caro Barbosa
Não respondi ontem à tua carta, por que estive de cama combatendo com remédio preventivo um incómodo gástrico. Eu agora, já não as espero, previno as moléstias, e medico-me de antemão. É mais uma originalidade.

D. Eufrázia manda-te abraços. “Horribile dictu!” É sempre boa patroa, pacientíssima, e sedutora no seu género. Ralha e dorme, e faz regularmente digestão.
Camilo chama-lhe em outra carta “D. Eufrásia (La Forêt em 3ª mão)”; tinha casa de hóspedes, onde Camilo viveu vários períodos, e com ela terá mantido relações íntimas!           

23.06.2019

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