domingo, 20 de janeiro de 2019


Amigos – 20

Histórias da História de Moçambique


Tenho falado só nos amigos que já nos deixaram. Hoje vou contar uma pequena história em que participaram muitos amigos, uns que ainda estão conosco, outros que já descansam e uma boa porção de que perdi o rasto, mas a quem mando na mesma um abraço, virtual ou etéreo.
Em 1969 fui trabalhar, em Luanda para o BCCI, que mais não era do que o Banco Borges & Irmão em Angola e Moçambique.
Alguns anos antes já tinha sido desafiado, ou convidado, para assumir a direção comercial da Mac-Mahon, a cerveja 2M e Coca-Cola em Moçambique, cujo acionista majoritário era exatamente o BCCI, o que declinei por não querer sair de Angola.
Em princípios de 71 o diretor geral do Banco, em Luanda, meu patrão e muito amigo, regressa de Lisboa e diz-me que traz uma proposta do patrãozão! Já desconfiei!
Ir para Moçambique, diretor comercial, blá, blá, blá... Ainda pus o problema:
- Se eu disser que não... ele põe um teto na minha cabeça, não é ?
- Deve ser!
- E se for?
- Sobes dois furos na hierarquia dos diretores.
Fui!
Um ano e meio depois, instalado em Lourenço Marques – Maputo – onde fui encontrar amigos de infância e fazer outros novos, o patrãozão, decide, mandar o diretor geral de Angola para Moçambique e o de Moçambique, que também me acolhera com muita simpatia, regressar a Prtugal.
Achei que o melhor a fazer seria uma festinha de recepção a um e despedida a outro.
O meu colega na 2M, Rodrigo Pombeiro, grande artista gráfico, responsável pela publicidade da companhia, desenhou o convite que mandei aos amigos, convidando-os para um churrasco com batuque:


Dentro deste magnífico convite seguiam as “instruções”, em pura linguagem camoneana:

Lourenço Marques – Festa de Recepção e Despedida

l          ANDAVA O CÉU INQUIETO, REVOLVENDO,
AS GENTES INCITANDO AO SEU TRABALHO;
O QUINA(1) NELES SEMPRE REMEXENDO
DECIDIU FAZER MUDANÇA POR ATALHO.
FORAM-SE AS DÚVIDAS TODAS DESFAZENDO
E APARECEU A SOLUÇÃO JÁ SEM ORVALHO:
MANDOU-SE O COSTA(2) PARA A LUSITÂNIA,
TRANSFERIU-SE O ABREU(3) P'RÁ TAPROBANA!
2         CESSEM DO SÁBIO COSTA E DO ANGOLANO
AS MANIFESTAÇÕES GRANDES QUE TIVERAM;
CALE-SE O ALEXANDRE(4) ALENTEJANO
DOS CONHECIMENTOS QUE POR ELE OBTIVERAM;
QUE EU CANTO PEITO ILUSTRE MOÇAMBICANO
A QUEM MARRABENTA E CHURRASCO OBEDECERAM.
CESSE TUDO O QUE DOS LAURENTINOS CANTAM,
QUE OUTROS VALORES D’ANGOLA SE ALEVANTAM.

3         INCLINAI TODOS UM POUCO A MAGESTADE
AINDA QUE VOS PESE ESTRANHAMENTE;
POIS VIMOS O ABREU NESTA CIDADE
DESEMBARCAR, ALTIVO E SABIAMENTE.
QUAL GAMA NO SEU TEMPO E SUA IDADE,
TRAZEDO BEM ALTIVO E FIRMEMENTE,
UM MARCO(5) DE AFIRMAÇÂO LUSITANA,
NA COMPANHIA DA SUA TRIBU ANGOLANA.

4         DAI-ME UMA FÚRIA GRANDE E SONOROSA
E NÃO INDIFERENÇA MOLE COMO BUDA,
NEM TRISTEZA VELHA OU BELICOSA,
POIS ISTO AGORA OU RACHA OU MUDA!
DAI-ME IGUAL CANTO AOS FEITOS DA FAMOSA GENTE NOSSA,
QUE LÁ EM CASA TANTO AJUDA!
E QUE SE ESPALHE E SE CANTE SEM CESSAR,
QUE HÁ DEZOITO ANOS NOS FOMOS A CASAR!

5         ESTÁ NO FADO JÁ DETERMINADO
QUE TAMANHAS FARRAS, TÃO FAMOSAS,
HAJAM OS VIAJANTES ALCANÇADO
DAS AMIGAS GENTES TEMEROSAS,
QUE AO DAR-LHES SÓ CHURRASCO E MAL ASSADO,
SE ACHARAM 'INDA MUITO GENEROSAS.
OH! VÓS QUE FICAIS OU QUE IDES PR'ÓS CONFINS,
NÃO ESQUEÇAIS TÃO DEPRESSA OS AMORINS!

Em Lourenço Marques, no:
Centenário do Camões
Chegada dos Abreus
Partida dos Costas
Implantação dos Marcos
e outros festejos
em 16/17 - Julho – 1972

1.- Quina: o patrãozão, Miguel Quina, presidente por vias genitais do Banco Borges & Irmão, que depois do 25/Abril abandonou os seus principais colaboradores, foi para Paris onde ainda sobrava alguma coisa do banco, fez um monte de vigarices e até creio que foi preso.
2.- Costa: Afonso Costa, neto do célebre homónimo do princípio da República, era o simpático diretor geral do banco em Mçambique.
3.- Abreu: Manuel Teixeira de Abreu, de diretor geral em Luanda para Administrador em Moçambique;
4.- Alexandre... Duarte Silva, diretor do banco em Moçambique, alentejano de Évora, que me recebeu como irmão quando ali cheguei;
5.- Marco: João de Avillez Soares Cardoso (Marco), especialista em informática do banco.

O local escolhido foi um Drive-In que estava em construção, pertença dum Sul-Africano, Mr. Fick, com quem estava em negociações para instalar lá a nossa cerveja.
Foi uma grande farra, a que compareceram 49 amigos, que me vou limitar a escrever os seus nomes. De alguns eu já mal lembro. Perda grande! Paciência.
Os homenageados e citados no convite, José de Azeredo e Vasconcellos, Adalberto Correia Mendes, Manuel Quartim Basto, Nuno Gorjão Henriques, Duarte Nuno Gorjão Henriques, Carlos Soveral, Rui de Sousa, Luis Herédia, José Manuel Pinto Coelho, Palma Sequeira, António Jonet, Luis Reis Costa, António Braz Teixeira, Teófilo Esquível, Rui Sanches da Gama, João Faria, António Vaz, João(?) Perdigão, Luis Alvim Cardoso, com as respetivas esposas, os anfitriões, os donos da casa e mais um conjunto de músicos moçambicanos que batucaram até às tantas.
Destes, com saudade, muitos já cá não estão, mas continuam lembrados.
Pouco tempo depois o Rui Sanches da Gama, que estava como diretor na Biblioteca Nacional de Moçambique, telefona-me a pedir se eu lhe mandava algumas caixas de refrigerantes. Precisavam de fazer uma grande arrumação lá na Biblioteca, mas isso só podia ser feito fora de horas e não havia dinheiro para horas extras. Então teriam que comer qualquer coisa, à noite, mas nada tinham para beber. O Rui comprara umas sanduiches, mas precisavam algo para beber.
Mandei logo umas caixas de Coca-Cola, 7-Up e também a 2M (para o final da festa!).
Como agradecimento o Rui mandou-me um cartão muito especial que, como se vê guardo até hoje com o maior carinho e saudade:

Na mesma linguagem camoniana:
“Chiquíades”
Cessem das Reunidas e da Impala
A fama das bebidas que tiveram.
Ao pé desta que tanto nos regala,
Que da 2M, para cá, nos deram.
Gulbenkian, Rockefeller e outros assim
Não valem puto ao pé do Amorim.

Nota: Reunidas era a concorrente da 2M e Impala uma das suas cervejas.

Só para receber este cartão até teria mandado mais umas caixas!
Dois anos depois o vintecincobarraquatro desestabiliza tudo, e o Rui antevê que deixar livros extra na Biblioteca eles seriam saqueados, como mais tarde vi na Guiné, e pergunta-me se eu quero guardar alguns. Disse logo que quereria todos os que achasse que podia dispensar. E mandou-me uma boa quantidade deles, que durante anos fui lendo e pesquisando.
Passam anos, uns 26 ou 27. Uma das nutricionistas que trabalhava comigo, aqui no Rio, um dia diz-me que tinha conhecido um moçambicano... lindo!
Estava a completar um doutoramento. Não pela beleza, mas por ser moçambicano, quis conhecê-lo.
Fui para Moçambique em 2001, onde estive seis meses na Casa do Gaiato, e um dia apareceu lá, para me conhecer o “moçambicano lindão”! Foi um gesto de grande simpatia que criou entre nós um vínculo de amizade muito profundo que dura até hoje.
Encontrámo-nos ainda no Rio, e depois, doutorado, zarpou para a sua terra. Trabalhou para a Unesco, nos Parques Nacionais, a seguir é nomeado Reitor da Universidade de Nampula UNILIRIO, e mais tarde Ministro da Educação. O Prof. Dr. Jorge Ferrão, hoje reitor da Universidade Pedagógica em Maputo.
Na altura em foi Ministro da Cultura lembrei dos livros que o Rui me tinha dado. Escrevi-lhe:
Quando “rebentou” o 25 de Abril e o caos tomou conta das colónias - neste caso Moçambique e particularmente o “velho” Lourenço Marques – e começaram a acontecer saques e abandono de repartições, era nessa altura, diretor da Biblioteca Nacional de Lourenço Marques um amigo meu, a quem eu tinha já ajudado, quando diretor comercial da Mac-Mahon, em 1972, oferecendo-lhe umas quantas caixas de refrigerantes e cerveja, porque ele estava, depois do expediente, com os funcionários, a fazer ou obras ou remodelação das instalações e o pessoal não recebia hora extra. Ele pagou, do seu bolso, umas sanduiches e pediu-me refrigerantes que lhe mandei.
Bom, isto é só o preâmbulo.
Quando ele viu que a Biblioteca estava em riscos de ser assaltada, guardou, em lugar creio que meio escondido, uma única coleção completa da revista
“MOÇAMBIQUE – documentário trimestral”
e como tinha uma quantidade de números avulso a mais perguntou-me se eu queria guardar os que pudesse encontrar em bom estado. Como pode imaginar disse logo que sim, e essas revistas, interessantíssimas, ao longo dos anos têm-me mostrado muita coisa de Moçambique que por vezes ponho no meu blog.
Tratam essencialmente de história, etnografia, e ciência ligada a vários assuntos, desde mar a plantas e doenças, e algumas páginas dedicadas a visitas de ministros e até do PR de Portugal.
Enfim tenho 48 exemplares, que vão do nr. 31 - o mais antigo – de 1942, até ao 92 de 1957.
Ainda vou ler e retirar muita coisa para divulgar, mas, atendendo à minha provecta “juventude”, é minha opinião, e vontade, que voltem para casa, desta vez Moçambique, onde haverá muito lugar onde possam ser de interesse, até talvez numa faculdade (a UNILIRIO?).
Não me ofereço para os enviar porque não disponho de $$$ extra, mas posso embalar tudo em caixas de cartão
O que lhe parece?
Capa e contra-capa da revista

Como é evidente o meu amigo embandeirou em arco, e as revistas, enviadas através da Embaixada de Moçambique no Brasil, lá seguiram e foram bem festejadas à chegada.
O que começou com uma batucada, que também recordou, modestamente e alegremente Camões, e acabou com outra festa moçambicana!
O bom filho à casa torna.
Antes do retorno, porém, viajou muito: de Moçambique, a Angola, Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo), Portugal, volta ao Rio e daqui segue para casa. Viajaram mais de 30.000 quilômetros!
Foram quase intactos mas deixaram alguma saudade!
História é história, e é sempre bom revê-la.

10/01/2018

2 comentários:

  1. Francisco:
    Com sua autorização, este vai dar uma volta por aquele Moçambique além e por quem tem Moçambique aquém, no coração.
    Abraço,
    Henrique

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  2. Boa tarde:
    Como sempre muito interessante. Para os interessados há uma colecção do referido Moçambique Documentário Trimestral, se não completa pelo menos extensa, digitalizada pela Universidade de Aveiro, numa das coisas em que se vê algum proveito de se pagar impostos em Portugal. Ligação com o endereço seguinte para quem estiver interessado:
    http://memoria-africa.ua.pt/Library/MDT.aspx
    Cumprimentos

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