quinta-feira, 2 de maio de 2013





Em Lisboa
A  BICA  DO  ANDALUZ

X E : M : CCC : LXX : IIII : O : CON
CELHO : DA CIDADE : DE
LISBOA : MÃDOU : FAZ’ : ES
TA : FÔTE : A  S’UIÇO : D’ : D S
E : D : NOSO : SENH’ : REY : DÕ : A :
P (ER) : GIL : STEUEES : THESOURE
YRO : DA : DITA : CIDAD : E A : SOA
RIZ : ESCREUAM : DÕ : GRÃS.

por J. M. Cordeiro de Sousa –
in “OLISIPO” – Boletim do Grupo Amigos de Lisboa – Janeiro de 1944

Leitura:
ERA, 1374. O CON/CELHO DA, CIDADE DE / LISBOA MANDOU FAZER ES/TA FONTE A SERVIÇO DE DEUS / E DO NOSSO SENHOR REI DOM AFONSO / POR GIL ESTEVES, TE­SOURE/IRO DIA DITA CIDADE, E. AFONSO SOARES, ESCRIVÃO. DEO GRATIAS.
Suponho que nada mais se sabe acerca da consstrução do chafariz do Largo do Andaluz, além do que nos conta a velha inscrição que, há bons seiscentos é seis anos, lhe colocaram, comemorando a obra.
Corria o ano de 1336, quando o Conselho da Cidade encarregou o seu tesouireiro e o seu escrivão, de o mandarem fazer para serviço de Deus e do bravo vencedor do Salado, que é como quem diz: para refrigério dos sedentos cami­nhantes.
Nem sequer ao sítio se conhece a origem do nome, que, quanto a mim, os autores fantasiam, pondo de parte a mais razoável, e até a mais simples.
Diz-nos Veloso de Andrade que a sua água vem do poço de uma quinta na rua de S. Sebastião da Pedreira», e que já em 1769 constava de certo do­cumento do Senado da Câmara que de «há muitos anos é própria do público». Essa quinta, conta-nos frei Luiz de Sousa, ficava «ao sair de Lisboa, junto ao mosteiro de Santa Marta,... na estrada que corre da cidade para o lugar de Nossa, Senhora da Luz», e chegava até o largo onde está o chafariz que «lhe fica ser­vindo de espelho a uma janela, e fazendo o sítio delicioso à sede e cansaço dos passageiros, como ao cómodo e divertimento dos vizinhos».
O mosteiro, como se sabe, fora edificado em terrenos de uma quinta que D. Álvaro de Castro legara para um colégio de missionários da Índia, que veio a ser fundado em 1699.
Freire de Oliveira cita uma Carta-Regia de 21 de Dezembro de 1513 àcêrca do lançamento de um imposto destinado a obras nesta bica. Depois, pensaram em trazer-lhe a água para o Rossio, o que parece não ter chegado a efec­tuar-se. Mais tarde, quando as freiras se acolheram ao convento de Santa Joana, após o terremoto de 1755, já lá encontraram uns tanques e uns canos «antiquissimos» para onde corriam os sobejos da bica.
Esses sobejos, e mais a têrça parte da água, fonam, em Abril de 1769, concedidos às madres claristas que muito insistentemente os haviam pedido desde 1766 para os gastos da comunidade, muito embora frei Cláudio da Conceição anos diga que esta bica era uma das nove de água salobra existentes na capital.
Muita sêde deviam ter as pobres freiras!

A inscrição é composta com os caracteres monacais, vulgares na época do bravo Afonso IV.
Tem poucas abreviaturas.
Na 1a linha: E, abreviatura corrente da palavra Era;
na 3.° linha: FAZ', cuja apóstrofe representa a última sílaba da pala­vra fazer;
na 4ª linha S’UIÇO, correspondendo o mesmo sinal às letras er, som que mais vulgarmente era representado por um traço cortando a letra pelo seu terço inferior; D', por de, o que não é trivial, mas se repete na linha seguinte; DS, abreviatura ordinária da palavra Deus.
Na 5.° linha há a notar a abreviatura SENH', dando à apóstrofe a correspondência da terminação or, mas que comummente corresponde a is, os, us; e A, a clássica abreviatura de Afonso, que se repete na 7ª linha.
Na 6ª linha, o “p” cortado que se encontra a cada passo, não só na escrita lapidar, mas em documentos manuscritos até quasi aos nossos dias, por per ou por.
Finalmente, na 8.° linha, duas abreviaturas que têm intrigado quantos qui­seram ler a velha inscrição: DÕ GRÃS.
Joaquim José Moreira de Mendonça, que pela «inteligência» que tinha «de letras antigas», como ele próprio declara, foi encarregado pelo Senado da Câmara, em 1769, de ir ao Andaluz copiar o letreiro, e que da sua leitura passou petulantemente certidão, interpretou esse grupo de caracteres como de obras; e, como ele, outro leitor anónimo chegou a idêntica conclusão.
António Joaquim Moreira, além de várias incorrecções, e até da inclusão do nome de um Diõ (?) Afonso, que não está lá, interpretou as embaraçosas abreviaturas como do conc.°
Ora, o que lá está é simplesmente DÕ, que se traduz por D(e)o, e GRAS que quere dizer gr(ati)as, fecho devoto e vulgar de todo o arrazoado.
Lumiar, no dia de Nossa Senhora da Luz do ano de 1942.


 *          *          *
Sobre esta mesma Bica encontramos mais umas notas com interêsse (para quem gosta de Lisboa!) no livro:

MEMORIA
SOBRE CHAFARIZES, BICAS, FONTES E POÇOS PÚBLICOS
DE
LISBOA, BELÉM, E MUITOS LOGARES DO TERMO

por José Sérgio Velloso d’Andrade, Lisboa, 1851
Tem um padrão aonde se diz ter sido feita em 1374, e é a maior an­tiguidade que temos encontrado em toda esta nossa curiosidade. A sua água vem do Poço de uma Quinta na rua de S. Sebastião da Pedreira N.° 141 a qual pertence á Sr.ª D. Maria Gertrudes, viuva do ex-Ministro do Bair­ro d'Andaluz João Antonio Mayer
Em 1522, o Dr. Luiz Teixeira, e sua mulher D. Filipa Mendes senhoria util desta Quinta, por ser um prazo em vidas, proposeram uma acção ao Senado pela falta que lhes fazia a água daquele Poço. Morreo o dito Dr. Teixeira, e a Viuva D. Filipa tornando a casar com Fernam Martins, Desembargador do Paço, estes celebraram uma Escritura com o Senado, em 3 de Setembro de 1524, na qual se diz que querendo ele e sua mulher escusar aquela demanda, as fadigas e despezas, e outros inconvenientes que se seguiam; e mais temendo o duvidoso juízo, que não sabiam qual das partes ficaria vencedora; vinham de suas livres vontades fazer composição amigável, por via, e modo à transacção, e era, que quer eles experimentassem perda na tirada da água, quer não, recebendo 30$000 réis ficavam satisfeitos, e cediam desta demanda; cuja convenção era pelo tempo de três vidas, que ela D. Filipa tinha o dominio util d'aquela Quinta. O dito Fernam Martins e sua mulher receberam a dita quantia como consta da mesma Escriptura.
No ano de 1766 as Freiras do Convento de Santa Joana, represen­taram ao Senado que elas experimentavam grande falta d'agua, e que tinham por notícia, que um Francisco Garcia Lima, que então possuía a dita Quinta, pusera uma nora n'aquele poço para regar a sua horta; e esta era a razão da falta que sentiam. Despachou-se neste requeri­mento em 8 de Julho d'aquele ano. O Senado vai fazer vistoria quinta feira pelas 9 horas da manhã 31 do corrente mez, deferindo assim a este requerimento.
Na mesma ocasião apareceu outro requerimento das mesmas Freiras, pedindo se lhes mandassem dar os sobejos desta Bica, e a terça parte da água pura, alegando haver no seu Convento mais de 500 pessoas, e se bem que Clausuradas, se julgavam com igual direito aos mais habitantes; se com tudo os não podessem haver gratuitos, estavam prontas a fazer aforamento. Este requerimento teve por Despacho no dito dia 28 de Ju­lho de 1766. Apresente-se no acto da vistoria, que está mandada fazer.  
Desde este sobredito dia nada mais aparece senão um requerimento do mencionado Francisco Garcia Lima, queixando-se de se ter feito uma vistoria no seu Poço sem ele d'isso ser sabedor; e este requerimento teve por Despacho, em 18 de Março de 1769, (mais de dous anos depois). Proceda-se a nova vistoria, e citadas as partes se assine para ela o dia terça feira ás 3 horas da tarde, que se hão-de contar 21 de Março.
A isto se seguiu a vistoria no mesmo dia 21 de Março, em cujo auto se diz que dentro da Cerca das Freiras se viram dois tanques e canos, antiquíssimos, por onde se encaminhava a água; que a nora se achava sem calabre; e que neste acto da vistoria se entregaram todos os papeis ao dito Garcia, para ele no primeiro dia de Despacho passadas as férias da Páscoa, responder ao Senado.
Não consta o que se passara até ao dia 4 de Abril do mesmo ano de 69, mas com data deste dia existe uma Ordem do Senado que diz assim; O Vereador do Pelouro das Obras, com todos os seus Subalternos passe à Calçada de S. Sebastião, e Quinta de Francisco Garcia Lima, é nela faça demolir o engenho de nora, e pilares em que este assenta do Poço de que a ágoa ha muitos anos é própria do publico e não de particu­lar, por Escriptura que se celebrou com este Senado, no Arquivo do qual se acha.
Ao que fica dito seguiu-se uma Consulta do Senado com data de 7 do mesmo mês d'Abril, (três dias depois d'aquela Ordem) remetendo os mesmos dois requerimentos das Freiras, que tiveram os Despachos em 1766, como acima fica dito, na qual o Senado era d1opinião favorável áqueles pedidos; e cuja Consulta baixou resolvida em 20 do dito mez, mandando dar-lhe a água e sobejos sem ónus, ou pensão alguma. As Frei­ras lavraram uma Escriptura de posse com data do 1º de Junho do refe­rido ano de 1769.
Do expendido se vê; que na Cerca das ditas Freiras existiam dois tanques, e canos antiquíssimos por onde se encaminhavam os sobejos; que elas já d'antes os recebiam, por que se queixaram da sua falta e, fi­nalmente, que propunham até fazer deles aforamento; e por que isso oferece duvidas, parece-nos que este caso se pode explicar assim:—No logar aonde hoje existe este Convento havia, unicamente a Igreja de Santa Joana, pertença de uma Quinta de D. Álvaro de Castro, o qual falecendo a deixou em seu Testamento para ali se estabelecer um Colégo de Missionários da Índia; cuja fundação teve logar em 25 de Novembro de 1699; e quando estas Freiras fugiram do seu Convento d'Anunciada, assustadas de verem morrer dez Religiosas nas ruínas, pelo Terremoto de 1755, e juntas com as dos Conventos da Rosa, e Salvador entraram neste seu actual Convento; se bem tivessem tão poucas acomodações, que lo­go em seguida se gastaram duzentos mil cruzados nas Obras, que se man­daram fazer; não foram por certo aqueles tanques e canos, por que se diz—antiquíssimos—e as, ditas Freiras apenas ali contavam onze anos de existência; logo temos por mais coerente, que os sobejos haviam d'há muito sido dados ao sobredito D. Álvaro, e as mencionadas Freiras na falta de Titulo legal, é que propunham aquele aforamento.
Á agua desta Bica tambem se projectou trazer ao Rocio, (Praça de D. Pedro) para o que houveram imposições na Carne, e Vinho; e por Carta Régia datada de Almeirim aos 23 de Fevereiro de 1515, se deter­minou,—que visto já haver dinheiro para aquela Obra, se desse princí­pio a ela; mandando em especial a João Fogaça, que tomasse disso cui­dado, e fizesse pôr mão na dita obra; com tudo, nada mais encontra­mos sobre este objecto, nem mesmo no nosso exame ali descubrimos vestígio algum d’esse princípio.

Será que ainda se encontram vestígios desta antiga “bica” no Largo do Andaluz???
Quem vai lá procurar?

26/04/2013

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