terça-feira, 2 de dezembro de 2025

 " A pedido de várias famílias... decidi escrever mais alguma coisa. Vejam o que saiu, e comentem sem receio de me magoarem!"


Café para Quatro Anarcas

 Passeava há dias em Lisboa, na Baixa, a matar saudades do tempo em que ali vivi, gozava tudo aquilo que fazia parte do ambiente dos anos 50 do século passado, que tão bem conheci e lamentava o que já tinha esaparecido.

Não entrei na Praça da Figueira, hoje uma Praça sem graça, onde tanta vez entrei, sobretudo aos domingos, quando ali ia com um tio comprar uns petiscos para o almoço em casa as dos meus avós que moravam na Praça dos Restauradores.

Na esquina da Rua Agusta para o Rossio já lá não estava a famosa e muito chic Loja das Meias, um pouco adiante a magnífica Pastelaria Suissa, um ícone da Baixa da cidade, uma delícia de Pastelaria, com entrada para o Rossio e para Praça da Figueira também desaparecera, “junto ao Arco da Bandeira”  a velha tasca Tendinha, um padrão imortal” fez-me lembrar com muita saudade as tantas vezes que ali fui comer aquelas sanduiches de presunto, beber um copo de tinto e rematar com uma ginginha, no outro lado do Rossio, já na Rua do Carmo, era a Fotocolor onde mandei revelar e ampliar dezenas ou centenas de filmes fotográficos e que se transformou, imaginem, em Burger King.

Tudo isso estava a levar-me para longe do tempo que, mesmo sem o querer, estava a viver.

Subi a Rua do Carmo. No prédio que teve o nr. 5 e hoje é 97 (foi promovido?) viveu e faleceu o meu bisavô e homónimo; em frente da porta parei uns instante lembrando dele, que não conheci mas muito tenho feito para que não caia no esquecimento. Continuei a subir, ainda vi a Pastelaria Bernard, fundada em 1868 e que forneceu o esplêndido “repasto” no nosso casamento (em 1954), a Livraria Sá da Costa onde gastei, bem gastos, uns poucos escudos quando os conseguia arranjar, faltou a bela loja Ramiro Leão onde a minha mãe comprava tecidos e lã para nos vestir. Lá está ainda o Café “A Brasileira do Chiado” com o Fernando Pessoa submerso no meio de tanto turista.

Fui cumprimentar o velho poeta António Ribeiro, o “Chiado”, franciscano, satírico, século XVI, contemporâneo do grande Camões que “mora” ao lado no largo com o seu nome, mas também estava bastante esmagado também pelo peso do turismo, pelas transformações de uma cidade que foi minha e hoje é de outros, pelo pouco que guarda da sua história e segui pela rua da Misericórdia para me ir queixar ao bom São Rocque, jesuíta, que deu a sua vida para curar doentes, e eu estava a sentir-me baralhado da cabeça.

Enquanto subia a rua da Trindade parei para respirar um pouco em frente ao famoso e luxuoso Restaurante Tavares, o Tavares Rico, onde as minhas posses nunca permitiram que adentrasse, fundado em 1734, com histórias curiosas, hilárias, sempre com gente de posses que o animavam.

Mas... o Tavares “Rico” também morrera, em 2018! A aura de opulência do Tavares remonta a 1861, quando Vicente Caldeira e seu filho Manuel compraram um velho botequim de ambiente taciturno para o transformarem num lugar chique de Lisboa. O interior foi totalmente renovado a cozinha preparada para servir refeições. Foi retirado o velho quiosque que existia no meio da sala passando a chamar-se "Café - Restaurant, Tavares".

Do original, “Café Tavares” onde se reuniam “Os Vencidos da Vida”, pouco mais se aproveitou do que os vidros das portas, onde ainda se veem as letras originais.

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O “Tavares Rico” agonizando, abandonado (vejam os vidros das portas) e o” Café Tavares” em 1803. Só mesmo as portas são originais.

 “No Tavares, ainda solitário àquela hora, um moço areava o sobrado. E enquanto esperava o almoço, Ega percorreu os jornais sorriu, cofiando o bigode. Justamente o bife chegava, fumegante, chiando na frigideirinha de barro. Ega pousou a Gazeta ao lado, dizendo consigo: "Não é nada malfeito, este jornal!"

O bife era excelente: - e depois duma perdiz fria, dum pouco de doce de ananás, dum café forte, Ega sentiu adelgaçar-se enfim naquele negrume que desde a véspera lhe pesava na alma.

O relógio do café deu dez horas. "Bem, vamos a isto", pensou Ega.

Eça de Queirós, Os Maias, 1888.”

 Aquelas letras nas portas, as originais, de 1734, estavam a dizer-me alguma coisa. Saía dali uma energia que me estava a confundir.

De repente senti uma tontura, pensei que ia cair, fecho os olhos e quando os abro vejo-me em frente ao velho Café Tavares, gente dentro, os vidros limpos, e eu com outra roupa que jamais tinha vestido. Avancei, titubeando, para ver se estava sonhando, sem acreditar em nada.

Abri a porta, dentro um pouco escuro, mas luz suficiente para ver uma mesa com três homens barbudos que pareciam saídos do romance de Dafoe, Robinson Crusoe, mas não era náufragos, só barbudos, barbas até ao peito, roupas decentes.

Os três tomavam café, conversa amena, mas quando viram um velho, barba bem branca, mas curta, que ali nunca tinha entrado, calaram-se, entreolham-se, todos abanando a cabeça indicando que não conheciam o intruso.

Foto preta e branca de rosto de homem visto de perto

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O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.       Foto preta e branca de homem sentado em frente a uma cerca de metal

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         Guerra Junqueiro            Antero de Quental              Thomás da Fonseca

Cumprimentei-os; aquelas caras não me eram desconhecidas! De um deles eu sabia até com quem se parecia, com Antero de Quental. Os outros acabei também por reconhecer.

Sentei-me numa mesa pedi um café, um deles tomou a palavra e diz-me:

- Muito estranho. Uma pessoa de idade entrar aqui sem que nem um de nós jamais o tenha visto. Não quer sentar-se aqui nesta mesa conosco. Tem lugar, e certamente nos dará prazer e nos poderá esclarecer-nos sobre a sua pessoa.

- Obrigado. Aceito. É uma honra. E o mais curioso é que os reconheço e saberei dizer o nome de cada um, mas a todos terei que tratar por Mestre.

- Mestre? Não tem mestres. Tem três amigos. Mas diga-nos, por favor como se chama, e como chegou até aqui!

- Como cheguei não saberei dizer, até para mim que estou meio tonto neste meio. Chamo-me Francisco Gomes de Amorim.

- Francisco Gomes de Amorim, eu conheço bem. Um grande dramaturgo, poeta, sempre doente, deve estar em casa, e até é careca! Quem é você, afinal?

- Mestre Guerra Junqueiro, eu sou bisneto desse Francisco Amorim. Só que, por impossível que vos possa parecer ainda não desencarnei, por isso os reconheci a todos, porque o que deixaram são lições de liberdade que aprendi com um interesse sempre crescente. Parei aqui em frente do Café, tive uma tontura, entrei numa dimensão fora da terra, num encontro etéreo, e mais idoso do que qualquer um de vós, sinto-me um menino no vosso meio.

- Já sei até qualquer coisa, Francisco. Grande amigo do meu neto Henrique.

- É verdade. Temos até escrito algumas coisas sobre liberdade, cultura, etc., baseando-nos nas lições dos que consideramos Mestres. A anarquia tal como os três a discutiram são a base para uma vida decente em todo este planeta, que não precisa de normas, nem religiões, muito menos de governos. Um único Homem em poucas palavras disse-nos tudo: Amai-vos uns aos outros. Só assim se resolvem os problemas, insolúveis, do mundo. E muito disso aprendi com cada um de vós. Anarquista de verdade é aquele que ama o próximo, que se interessa por ele, e eu sei que na frente de três grandes figuras da bondade.

- Francisco, o que estás a dizer, toca-nos bem fundo. Eu lutei pelo bem estar dos mais desfavorecidos. Fui até para fora de Portugal tentar aprender a viver como vive o trabalhador pobre. Queriam aproveitar a minha vontade mas que não saísse fora da política do governo. Sofri muito. Era grande a luta que travava comigo mesmo. Não consegui vencer-me. Queria ser humilde e queriam que eu fosse uma bandeira arrogante. Achei que estaria melhor no “eterno” e despedi-me.

- Antero que falta nos fizeste, e quanto sofremos com a tua partida. Talvez uma das mais fortes personagens que souberam o que era ser humilde. Todos chorámos.

- Mas também apreciei muito a determinação, teimosia, retidão e consciência do Mestre Thomas. Constantemente perseguido, tinha nos guardas da prisão admiradores que lhe pediam autógrafos dos seus livros. Nunca baixou os braços e até lhe chamaram comunista o que sempre negou com veemência, mas que serviria aos hipócritas sugadores do erário público. Deixou, profunda a marca do verdadeiro socialista, o que se preocupa, em primeiro lugar com o Outro.

- Olha Francisco, todos os que nos atrevemos a lutar contra a mentira, onde está a falta de liberdade, fomos perseguidos, maltratados, incompreendidos. As críticas contundentes, absurdas, que fizeram ao meu livro “A Velhice do Padre Eterno” veio mostrar o espírito de ignorância e falta de capacidade de pensar da maioria do povo. Como já estou no Além há muito tempo, mesmo que lá não haja tempo, gostaria de saber se a opinião pública evoluiu.

- Mestre Guerra Junqueiro, não só não evoluiu como parece estar a regredir! Se antigamente havia ganância, hoje isso é o que domina. Ganância e inveja. E daí a pobreza não diminuir e as guerras vão crescendo. Eu estou perto de ir ter convosco lá onde não há tempo, mas o mundo está a caminho de uma imensa revolução.

- Francisco, vieste dizer-nos o que pensam os jovens no tempo atual, o que foi muito agradável e ouvir?

- Infelizmente não. Os jovens pensam cada vez menos, ignoram a história e sua cultura, e só procuram subir na vida profissional e financeira. Para a esmagadora maioria o Outro é um degrau em que ele vai pisar para subir.

Prezados mestres, sinto que alguma coisa se está a passar na minha cabeça. Talvez tenha chegado o fim que me foi dado para estar aqui. Foi um honra imensa ter estado convosco. Obrigado por me acolherem tão bem e, até breve.

Senti uma vez mais a cabeça tonta, uma profunda escuridão, duas pessoas que passavam na rua viram que eu passava mal, seguravam-me nos braços preguntando se precisava de ajuda, ambulância, etc.

Agradeci muito, mas disse que já me sentia bem.

Pensei ir direto contar a São Roque o que tinha “visto”, mas precisava de repousar a cabeça. Fui à magnífica Cervejaria da Trindade, no antigo refeitório do antigo Convento da Santíssima Trindade fundado em 1294, destruído em 1704 por conta de um incêndio, outro em 1755 devido ao terramoto e em 1756 devido a um novo incêndio. Com a extinção das ordens religiosas em Portugal no ano de 1834, o convento foi extinto. Em 1835, Manuel Moreira Garcia comprou o edifício e montou na Igreja, claustro e antigo refeitório do convento a Fábrica da Cerveja da Trindade e, no ano seguinte, em 1836, a Cervejaria Trindade. Aproveitando o revestimento azulejar do antigo convento para decorar o espaço. Para complementar, em 1863, encomendou painéis de azulejo da Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego, que pintou painéis alegóricos, na medida em que representam as quatro estações (Verão, Outono, Inverno, Primavera) e os quatro elementos (Ar, Fogo, Água, Terra).

Ali, naquele ambiente magnífico, dois copos de cerveja “lavaram-me” a cabeça baralhada.

Dali fui então ver o São Roque, muito calmo, santo, fez-me saber que tudo quanto eu estava a precisar era de algumas horas de sono.

Fui então dormir. Mal.

 01/12/2025